Querida Déborah: Como posso recuperar a minha criatividade e imaginação agora que sou um adulto?

January 23, 2025
Querida Déborah: Como posso recuperar a minha criatividade

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Querida Déborah, é uma coluna de cartas para criativos em crise.

Envia a tua pergunta para deborah@bantumen.com, menciona os teus pronomes, contexto e como queres ser chamado. Todas as perguntas são respondidas anonimamente. 

 

Recentemente encontrei textos que escrevi há 10 anos num portátil antigo e fiquei completamente surpreendido com o quão activa era a minha imaginação. Eram pelo menos 50 textos, cada um com um enredo único. Era como se cada ideia que me despertava a imaginação se transformasse numa história.

 

Hoje tenho 24 anos e mal consigo escrever (excepto duas histórias que tenho vindo a criar desde 2013). Ainda não terminei nenhuma delas e já quase não tenho ideias para continuar. Sinto como se a minha imaginação tivesse sido sugada até secar. Lembro-me de ler muito quando estava no secundário, o que provavelmente inspirou muitos dos meus trabalhos criativos. Só que agora, estou a equilibrar um trabalho como publicitário das 9 às 18 e já não tenho tempo para ler, nem interesse nenhum, uma vez que leio as notícias o dia todo para escrever os conteúdos para os clientes.

 

Só queria que a minha imaginação para a escrita criativa regressasse.


Querido M,


A tua criatividade e a tua imaginação nunca te deixaram. A diferença é que, como adulto, tens de reaprender a acedê-las. De certeza que aos 14 anos não tinhas o stress de um trabalho a tempo inteiro, não sentias tanta falta dos amigos porque eles estudavam contigo e a ansiedade ao pensar no futuro limitava-se ao desejo de passar de classe e tirar boas notas. Além disso, como mencionaste, a leitura era o gatilho que te levava para o mundo da imaginação. Sendo que agora ela já não faz parte do teu dia-a-dia, precisas de reencontrar a porta que te dá acesso ao teu lado mais criativo, talvez até, ousar seguir um caminho diferente. Pergunta-te: o que te faria, hoje, voltar a ser criativo? Uma das razões de sentirmos que os nossos recursos imaginativos se estão a esgotar é a racionalização.


A imaginação selvagem da infância e da adolescência agora está sujeitas ao filtro “do que faz sentido”. É surpreendente a quantidade de vezes que deixamos que competências como a lógica, a casualidade e a autocensura (tão úteis para navegar a sociedade na vida adulta) restrinjam o desejo de nos expressarmos criativamente. Lembra-te que as tuas circunstâncias mudaram. Sê mais compassivo contigo.


A vida adulta raramente te dá espaço para a importância de ter tempo pessoal, de brincar, do lazer. E não digo alienares-te à frente da televisão depois de um dia cansativo, mas sim fazer uma actividade que te recarregue as baterias, que mal podes esperar para executar, que te faça sorrir. Às vezes desejamos ter mais tempo livre para fazer tudo o que fica em segundo plano, mas a verdade é que se tivéssemos iríamos preenchê-lo com mais afazeres, porque há sempre algo por fazer e o lazer, é a primeira coisa a ser posta de lado. Passaste pela infância e pela adolescência imerso num ambiente de aprendizagem onde a experimentação era, de certa forma, encorajada. O teu cérebro era diariamente bombardeado com factos diferentes, de História, ciência, linguagem... Obrigando-o a criar conexões entre vários assuntos, a pensar mais além. Actualmente, estás num trabalho no qual pegas num conjunto de elementos e reutilizá-os continuamente dia após dia. Provavelmente hoje, usas a tua criatividade e imaginação mais do que há dez anos, a diferença é que o fazes de forma mecanizada, das 9 às 18, nos dias úteis, na tua função como publicitário. Há que se descobrir uma porta de entrada no meio dessa rotina; criar tempo para te focares em algo que poderá parecer frívolo no meio de tanta coisa séria para te preocupares, mas que claramente te faz falta. De certeza que já ouviste a frase “a criatividade é um músculo, só tens que exercitá-lo”.


Ora, para exercitá-lo é preciso prática. E como qualquer tarefa que nos propomos, no início, se almejarmos alto de mais pode ser que tudo seja arruinado antes mesmo de começar. Por essa razão, proponho-te um mês para cultivares um estado de relaxamento que te permita imaginar livremente. Não te preocupes, não te vou pedir para ficar sentado a olhar para uma parede na expectativa que a imaginação se sinta forçada a socorrer-te e se manifeste no vácuo, nada disso. Mas antes, quero avisar-te que este mês pode exigir confiar no processo, sem saber se ele trará resultados. Pode também exigir ir contra a maré, principalmente contra as tuas expectativas pessoais e romper as barreiras do autojulgamento, a autocensura e a lógica. Dar-te oportunidade (ou pelo menos tentar) de deixar um pouco o M adulto que trabalha das 9 às 18 e abrir espaço para o M de catorze anos que escreveu 50 textos. Preparado?


Começa por juntar as tuas ferramentas, um caderno antigo com algumas páginas em branco ou um caderno novo à espera de ser rabiscado. Esse é o teu diário. Utiliza-o para registar, por cinco minutinhos, o teu antes e depois durante este mês. Não menosprezes esta actividade! Estás a ver quando alguém quer emagrecer e tira uma foto do seu antes para depois comparar com o seu depois? Pois bem, esta é a tua fotografia. A memória humana é uma sacana, esquece muito facilmente, então regista a tua evolução. Não leias! Apenas escreve.


Semana um: Durante os primeiros sete dias vais fazer uma actividade no período pós-laboral, para descarregar toda a energia e frustração acumuladas, para relaxar mesmo. Pode ser a mesma actividade todos os dias ou algo diferente cada dia, tem apenas de ser algo que te exija foco e que não te sobrecarregue de informação, ou seja, sem ecrãs. Eu proponho um desporto de baixo impacto, como yog, pilates, tai-chi ou algo que te desafie fisicamente como natação, dança, krav magá (escolhe de acordo com os teus gostos e possibilidades).


Podes também optar por concluir uma tarefa doméstica—lavar a loiça, cozinhar, estender a roupa, engomar, limpar os sapatos. Ou optar por algo que seja feito com as mãos, como colorir, cuidar de um bichinho, marcenaria ou cerâmica, montar um puzzle, ou uma das minhas favoritas, costurar. Não te esqueças de registar o teu estado emocional e de relaxamento antes e depois da actividade, religiosamente, nos sete dias.


Semana dois: Continua com a actividade e depois de um bom banho, uma refeição saborosa e um belo copo d’água, pega num dos 50 textos que escreveste aos 14 anos ou até numa campanha publicitária que fizeste para um cliente e escreve sobre. Durante 15 minutinhos altera a estória: adiciona um elemento, cria um novo ponto de vista, muda as personagens, expande os cenários... Solta-te no papel! Além de continuares a registar o teu antes e depois (cada actividade precisa de uma entrada diferente), é provável que nessa semana algumas ideias avulsas surjam. Não as ignores. Não importa o quão inusitadas, tolas ou simples te pareçam, regista-as. Escreve-as no teu diário. Parece óbvio, mas para treinar a imaginação é preciso imaginar. Então, imagina e regista.


Semana três: Vais dar-te mais cinco minutos (20 minutos no total), escolher uma das estórias que tens estado a escrever desde 2013 e desenvolvê-la. Deixo ao teu critério decidir se vais fazê-lo após a tua actividade de relaxamento e o exercício da semana anterior, ou substituir o exercício de escrita da semana dois por este. Entendo que uma certa apreensão se pode manifestar aqui, afinal, agora as coisas estão a tornar-se sérias, estás a retomar a tua escrita. Mas olha, desenvolver uma estória não é exclusivamente escrevê-la; existem tantas etapas no processo de escrita: ideação, pesquisa, leitura, releitura, revisão, edição...


Utiliza os vinte minutos para te tornares íntimo da tua estória novamente, lê-a e vai sublinhado pontos a revisitar ou corrigindo erros ortográficos, redescobre-te novamente no teu texto e verás que continuá-lo será uma acção espontânea.


Desta vez, peço-te que trabalhes no mesmo texto durante a semana toda. Semana quatro: Esta semana, gostaria que experimentasses apenas trabalhar na tua estória. Talvez tomar um banho e comer antes, mas focar mais na escrita do que nas outras actividades. No fim deste mês, lê as entradas do teu diário; não só para perceberes como foi a tua evolução, mas mais importante, para compreenderes o que resulta para ti e o que queres continuar a fazer. E, claro, para responder à pergunta de milhões: a imaginação e a criatividade, foram recuperadas com sucesso? Após o primeiro mês, observa-te um pouco mais, o fim do dia é o melhor horário para escreveres? Experimenta outras horas do dia, talvez escrever por menos ou mais tempo. Como está o ânimo? Se os básicos (descanso, alimentação, movimento e relaxamento) estiverem a ser bem feitos, mas ainda assim te sentires fatigado, sugiro consultar um médico pois pode ser que estejas com um desequilíbrio físico.


No ano passado, eu sentia-me constantemente exausta, não importava o quanto descansasse ou cuidasse da minha saúde. Fiquei meses assim, até que após umas consultas descobri que estava com uma intoxicação de metais pesados. Então, não ignores os sinais que o teu corpo dá, pois, ele e a mente funcionam como um só e precisam um do outro. Para concluir, não podia deixar de te recomendar livros, afinal, eu sou a tia que em vez de te oferecer bolo quando vens visitar oferece livros. Eu sei, eu sei, na tua carta mencionas que além de não teres tempo para ler, já não tens interesse; e apesar de ler isso ter sido uma facada no coração da tia dos livros que habita em mim, aprecio a tua honestidade. Não te vou obrigar, muito menos recomendar recuperar o hábito da leitura (isso fica para outra carta), mas quero sugerir três livros para potencializar a tua retomada ao mundo mágico da imaginação.


Não precisas de os ler de cabo a rabo, lê apenas as partes que te interessam, quando e se fizer sentido: A Imperfeição é uma Virtude de Brené Brown, um livro sobre coragem e recomeços.


O Caminho do Artista de Julia Cameron, um livro que te ensina a importância de te manteres criativo na vida adulta. Becoming a Writer de Dorothea Brande, a bíblia para qualquer criativo que escreve. A origem de todas essas teorias popularizadas actualmente: páginas matinais, crítico VS criativo, escrever todos os dias...


Com carinho, Déborah

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