"O meu pacto é com a palavra, não é com uma cultura específica", Rico Dalasam

December 9, 2024
Rico Dalasam entrevista
Rico Dasalam 📸 Carol Curti

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É quase 15h de uma terça-feira, 14 de novembro. Enquanto os técnicos do Sesc Campinas, cidade do interior de São Paulo, ajustam os equipamentos, Rico Dalasam descansa no seu camarim. Ele ainda passaria o som para o concerto que faria cinco horas depois. Quando subiu ao palco, Rico fez todos dançarem, darem beijos apaixonados e se emocionarem. Quando chegou o momento de apresentar o single “Cartazes”, que estava sendo lançado naquele mesmo dia, ele decidiu fazer de uma forma diferente. Não seguiu a cadência da versão original; declamou de uma forma poética. Isso fez as lágrimas descerem pelos rostos.


Antes de cantar para o público, Rico falou sobre quais são os seus planos daqui para frente. Pretende dar uma pausa no fazer música, se dedicar ao livro que está escrevendo e ao seu retorno ao rap, gênero que o fez conhecido. A conversa era para ser de 20 minutos, porém nos estendemos por quase 50 minutos. Dalasam tem repertório ao compor, mas também quando compartilha suas ideias. Entende onde está e as dificuldades que enfrenta por não seguir receitas. Por isso, faz com que você preste atenção em cada palavra dita, porque também serve como direcionamentos que vão além do campo artístico.

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Calema Natal

Os três álbuns, “Fim das Tentativas”, ‘’Dolores Dala Guardião do Alívio” e “Escuro brilhante, Último Dia no Orfanato da Tia Guga”, foram pensados para fazerem parte de  uma trilogia ou eles foram se complementando depois?


Cara, a demanda do tipo de poema, a demanda da lógica estética, a demanda da narrativa para onde ela estava se mostrando ir, dizia que era uma história contínua. Eu resolvi encerrar a trilogia porque não queria talvez levar seis ou oito anos da minha carreira dentro dessa mesma história, sabe? Tem alguns singles que ainda estão atrelados à mesma estética e estilo de poema, mas eu precisava pôr um ponto de conclusão nesse jeito e nessa lógica que eu desenvolvi do poema confessional. Tem outras coisas que eu quero fazer, mas quando vejo a caneta está orbitando no mesmo território ainda. Isso não muda desde “Braille” porque eu estou dentro do sistema que desenvolvi pra poder, inclusive, voltar pro jogo de alguma maneira, né? Depois de ter ficado fora um ano e meio, quase dois, pretendo muito, por exemplo, continuar com essa turnê mais esse ano, mas descansar o "fazer musical". Eu preparei mais dois singles e consegui ficar uns oito meses sem ir pra esse tipo de escrita. Também, com o efeito do tempo, eu gostaria de fazer rap novamente, como foi lá no “Modo Diverso”, porque no próximo ano completa-se dez anos que eu entrei pra fazer música... E não dá, o poema confessional tem uma demanda que nunca acaba. Eu quero fazer uns raps, tô com uns beats legais, mas pra eu entrar em raps com temáticas riquíssimas. Eu preciso reencontrar esse corpo e essa grafia. Se dou continuidade a essas densidades, essas coisas duras, não é possível fazer isso.



Tem que ir deixando aos poucos para entrar em outro ambiente? 


Eu preciso reorganizar as coisas agora porque a continuação da trilogia vai dar num livro, mas não em outro álbum, sabe? Assim, uma possibilidade de música para o futuro é o rap. Vou fazer raps e raps divertidos, como foi o que me trouxe para o jogo. Esse é meu desejo. 



Eu ia exatamente perguntar se você tinha abandonado o rap de vez, porque ficou um bom tempo sem fazer. Foi para outros caminhos, mas o rap está de alguma forma ali, né? 


Sim, você sabe que é um rapper se movendo, se desafiando esteticamente. Isso é inegável. Sempre deixo porque, enfim, é como a música veio pra mim na vida. E é o que eu tento manter esteticamente. Em algum lugar, o estudo fonético ainda é de rap. Ainda que eu faça melodias e canções, não caio diretamente pra Música Popular Brasileira, que tem um modelo, ou pra um pop, porque tem um conjunto de acordes, uma sequência de coisas que determina a estética desses processos, tanto artísticos quanto mercadológicos também. E aí, pra fazer rap de novo, do jeito que tem passado pela minha cabeça, eu preciso muito dar descanso pra essa linha de escrita e voltar com os flows, com as brincadeiras fonéticas, com os trava línguas, deixar um pouco as melodias de descanso pra poder fazer músicas que têm retidão de rima.



Como é seu processo de composição, de juntar todas essas histórias e colocar pra fora umas coisas mais duras? 


O poema confessional foi o que me salvou e me botou de volta no jogo, depois de 2017, 2018. Então, esse período meio de molho fez a gente ir testando outras coisas que me ajudaram a desenvolver outro exercício de escrita que me fez migrar do lugar que existia, de hitmaker, pra condição de poeta. E a condição de poeta me rendeu coisas maravilhosas. Agora, fico muito animado vendo a Ebony, a Duquesa, Ajuliacosta, a N.I.N.A, a Luana... As meninas, as mulheres no rap, sempre foram um ponto de referência diante da curva que eu propus, porque elas eram o que tinha de mais próximo a esse outro modelo de poema. Tô aqui pensando, 'mas eu preciso descansar disso'. Dessa densidade super adulta pra poder brincar... porque, tipo, toda vez que eu fiz rap eu brinquei, brinquei com as palavras. Agora que eu organizo palavras, organizo histórias densas, eu dou nome a coisas difíceis de nomear. É um processo muito, muito mais duro. Agora eu quero brincar de novo com as palavras. Então, pra fazer isso preciso adentrar esse universo, das ironias, dos deboches e das temáticas, da crítica irônica debochada que sempre houve quando aparecia com rap. E é isso, até descansar um pouco da coisa que envolve amor pra poder ferver outras coisas. Brincar mesmo, ser sarcástico, sabe? Esse poema de agora não dá, não permite, é outra coisa.

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Fotos de Carol Curti

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Várias MCs e pessoas LGBTQIA+ que fazem rap sempre pegam você como referência, um dos que abriram a porta para a comunidade dentro do rap, que mostrou a cara. Por que depois deu uma desacelerada no rap para entrar em outros ambientes?


O rap é igual a você começar a tocar em São Paulo e aí a circulação aumenta. Quando você vê, está indo no Rio, está indo em Salvador, está indo no Ceará, está indo no Rio Grande do Norte... Você está conhecendo praias, está conhecendo outras coisas. Ou você está indo em Lisboa, Londres, em Nova York, está indo em Paris. Foi assim que o poema começou a andar, porque o meu pacto é com a palavra, não com uma cultura específica. Então, a canção brasileira é um lugar que eu danço. Em algum momento, o pop também existiu ali no pouco do que eu estava testando e que deu bom. Como me relaciono com a palavra, eu não estou construindo algo pavimentado num gênero, né? Tipo... se eu estivesse fazendo uma história no rap talvez agora eu estaria cansado ou migrado para as atualizações estéticas, do Drill, do Trap, do Jersey,


 Estaria preso a algo…


Eu estaria experimentando outras coisas, mas precisei fazer minha canção porque foi o que a música pediu no tempo. Eu adoro isso, acho legal, sigo estudando flow, sigo estudando métricas, e talvez por isso precise tirar um tempo desse jeito de fazer, porque pra eu botar em prática os estudos de métrica, de rítmica que eu tenho pensado pra rap, eu preciso fazer exatamente isso. Rap é uma coisa que demanda...você precisa trazer o corpo MC pra poder fazer o rap, tá ligado? Tipo, tem pessoas que são da canção, da MPB, do Jazz... e ela flerta com o rap. Aí você vê que ela é alguém de outra coisa que flerta com o rap. Agora, quando você é um rapper mesmo... pode ir lá longe, mas quando voltar pra ser rapper, você vem com todas as suas insígnias, e a pessoa fala: ele é um rapper. O rap está presente no pop, mas são artistas que conversam com o rap. É a cultura drag que conversa com o rap. É tal coisa que conversa com o rap. É a MPB que conversa com o rap. Agora, os rappers são os rappers. São pessoas que têm algo que é específico da linguagem, e têm atributos maiores dentro dessa linguagem.


E o rap, querendo ou não, furou a bolha, de estar só dentro da comunidade, no hip hop. Como você mesmo disse, todo mundo está bebendo um pouquinho da fonte do rap. O que você acha que aconteceu para que ele furasse essa bolha, foi a autenticidade de conseguir conversar com todo mundo? 


Eu acho que a história da sociedade urbana, a história moderna e pós moderna vai trazer uma série de signos novos e inquietações sociais de grupos. Antes mesmo de a gente acessar esses entendimentos sobre grupos minorizados, que dão alguns entendimentos até políticos que se tem no tempo hoje, você vê mobilizações e desejos sociais de um grupo se manifestar, mas com recursos artísticos, que é a cultura Hip Hop. Não teria como isso não mudar o mundo, não impactar o mundo depois do rock, depois de outras movimentações jovens que questionam e propõem culturas novas. E como o Hip Hop é uma produção afrodiaspórica, ela ia conseguir ter retorno de diálogo com toda a diáspora do mundo. E aí, o rap é o que é no mundo hoje. Até em culturas que não tem o reflexo afro diaspórico, mas a cultura Hip Hop se materializa ali, através do break, do DJ, através do grafite, através dos MC's. E isso impactou o mundo e nesses agora 50 anos dessa cultura você vê que isso já é posto na sociedade moderna com seus dobramentos. Hoje já tem o que é clássico, já tem o que é moderno, já tem o que é futurista, já tem o que é experimental, já tem o que ainda não é nomeado, desconhecido... isso quer dizer que a cultura está vivíssima porque ela continua se desdobrando, recombinando códigos e tudo mais. Ela inclusive consegue atravessar até a perspectiva de início dela, que é uma cultura de total propriedade das pessoas pretas, né? E hoje não, o rap se mostra de mil formas.


É como se fosse o Jazz, que também veio nessa linha e se desdobrou para vários elementos. O Rap também tem seguido por esse caminho…



Sim, eu acho que toda vez que as produções afro diaspóricas, pretas, ganham expressão, elas também começam a ser disputadas quanto o domínio, né? E aí, a gente vê isso acontecer de maneira industrial, artística e mercadológica, como é de natureza do capitalismo, né? Alguém vai querer deter aquela produção. Nada aqui é pra ser igualitário. E não seria diferente com o rap. Mas o que é de sua natureza primeira segue vivo, segue muito especial. Os grandes mestres ainda estão produzindo. As pessoas ainda  estão olhando pra esse lugar. Tem alguém hoje ainda buscando ser um rapper da estirpe do Marechal, do Kamau.... tem alguém ainda falando: mano, eu quero fazer rap porque eu ouço Black Alien ou porque eu gosto do Common. Ou porque me toca como Missy Elliott, como Queen Latifah. A gente tá extremamente vivo. 


Há quem diga que o rap está pasteurizado, porque tem muito mais do mesmo. Mas eu acho que hoje as pessoas só olham para o que tá lá em cima, só números e não observam o que está aqui na margem ou abaixo dessa margem... 


… mas tem vários artistas que estão cada dia se mantendo atualizados e além daquilo que a gente espera deles…

Rico Dalasam entrevista

Foto de Carol Curti

Você acha que as pessoas hoje olham muito para números e estatísticas, e esquecem que existe uma galera fazendo um trabalho autêntico?


Tudo é feito na sociedade ocidental para produzir esquecimento. A produção do esquecimento é a grande questão do que a gente está falando aqui. Então, os alcances massivos, as lógicas de marketing, enquanto para se fazer lembrado, parece que precisa fazer outras coisas serem esquecidas. Inclusive, as que têm alguma característica duvidosa. Um campo de estética, enfim, de verdades. Mas você vê que é uma cadeia, porque, por exemplo, eu performo, toco pelo Brasil, vivo, faço shows, tal… não fiz o rolê dos charts, das paradas, de entrar pra essa lógica. Também não vivo experiência de empresariamentos e de relações com majors e gravadoras. Então, eu faço meu próprio investimento. Mas isso não me faz menos referência para o Baco (Exu do blues), para o Felipe Ret, para o Emicida...  todos eles são pessoas que quando eu coloco alguma coisa na rua, eles param pra ver, porque tem um frescor também, que é de quem não atinge determinados lugares. Tem lá sua maldição, como de linha de chegada, sabe? Linha de chegada é uma perspectiva de tempo, que é ocidental e europeia, que tange as coisas como começo, meio e fim. Então, se você atinge tal linha de chegada, você chegou. Você vai pra onde agora? O mercado vai dar esse toque para as coisas. E, enfim, na perspectiva, banto a noção de tempo é outra. O chegar é infinito, ou porque é começo, meio, começo, começo, meio, começo, como diz o Mestre (Antônio) Bispo. É o que orienta de fato a vida encarnada ou a espiritualidade, e as noções que a gente precisa ter sobre as coisas. Então... as pessoas trabalham com reinvenção. Eu penso: cara, os motivos que fazem eu descrever porque eu faço música estão muito mais ligados ao trabalho de desenvolvimento espiritual. Não estou falando espiritual do estilo místico não. É tipo: o que eu estou fazendo aqui na terra? Parece que a música ainda é um lugar de trabalho, assim como até algumas perspectivas de pessoas de espíritos desencarnados que se pensarem está estudando lá no mundo dos desencarnados,está trabalhando numa busca, num desenvolvimento, e acho que aqui também. Ainda mais quem tem a chance de não estar dentro de uma perspectiva exploratória, de exploração. Tipo, poder desenvolver. Quando eu me vejo fazendo as canções, as coisas, eu sinto que eu tô dando continuidade ao desenvolvimento espiritual que tá me sendo possibilitado, inclusive, porque eu poderia estar em outras jornadas que não me desse essa possibilidade. E isso me faz, de alguma maneira, me desenvolver.


Tem uma certa liberdade também… pra trabalhar e seguir, porque você a cada disco traz uma coisa diferente, não segue uma linha. E aí, inevitavelmente, as pessoas pegam como referência porque tem uma coisa ali. Você tem um tempero, um molho que indica  caminhos. É tipo: o Rico conseguiu mais uma vez. Você pensa nisso?


Acho que estou chegando num tempo que vou, de novo, virar a chave estética, tanto da grafia quanto das outras coisas. Passei também ao longo dos últimos anos mudando a minha imagem, como me apresento. Isso também constitui uma coisa. Então, é demanda, porque tudo já é muita repetição. Ir pra estrada é uma repetição. Fazer esse show que é o mesmo, que já tem mais de um ano, é repetição, sabe? E alguma hora você precisa de uma quebra pra que haja um renovo artístico. Esses próximos singles ainda vão dar extensão a isso, porque eu acho que como é um grand finale dessa temporada estética, ela vai durar mais de dois anos ao todo. E tô colocando minha cabeça pra não pensar em um próximo trabalho sonoro, porque quando ela não tá pensando, ela tá descansando, né? Eu queria descansar, porque depois quero me debruçar sobre raps, ainda que eu faça singles, faça um EP, mas quero fazer rap. Eu tô curioso pra saber o que aconteceu com o rapper. O que aconteceu com o rapper nesse tempo, sabe? Eu tô me perguntando isso.


Você acha que o público vai estranhar quando você voltar com rap?


Cara, eu não tenho muito isso... linearidade faz a gente pensar no consumidor. A não linearidade não se atém a essa perspectiva, porque ela não é linear, então, inevitavelmente, ela é não industrial. Então, eu apareço e performo no mercado, mas eu sou mais desobediente do que obediente e talvez por isso a arte ainda me segure, me sustente. É um negócio que continua fresco. E dez anos se manter fresco.... todo mundo que eu conheço e está fazendo há dez anos entrou numa repetição, numa repetição, e alguns já entenderam que a repetição pede, tipo, mano, não tem mais nada pra mostrar. O que, não sei se é triste, mas é um esgotamento. Não sei se todo esgotamento é triste, tem coisa que precisa esgotar mesmo e encerrar, mas pode ser que sim. É sempre uma repetição, e o que não é repetição, tá ali não produzindo de si, tá já chupinhando, tem o grupo de pessoas trazendo matéria prima fresca pra produzir esses produtos, e todas essas coisas eu estou apartado delas, porque eu sigo fazendo meu negócio. Ele me dá respostas. Isso me contempla no meu desenvolvimento. 


É bom porque você se diferencia do todo, da maioria…


É consequência se diferenciar, né? Não dá pra ficar buscando se diferenciar também...


Mas não é uma busca, é algo que acontece naturalmente.


É, você tá pensando em outras coisas. E se você tá pensando em outras coisas, você tá fora do senso comum, e se aparta dele para poder fazer a sua própria jornada. E aí, seus conjuntos de referências, os lugares para onde você vai, as coisas que você come, as coisas que você aceita vestir ou não. Tudo é reprodução... ainda mais a gente que vive um efeito colônia, da perspectiva mais próxima que é os Estados Unidos. Então tudo é uma repetição. Todo mundo que eu acho válido e tá aí trabalhando e tal, eu sei, tipo, a versão brasileira do que que tá sendo, sabe? Sejam os meninos, sejam as meninas. Eu sei. E as pessoas estão super de boas com isso. Eu não estaria, mas as pessoas estão super de boas em tipo, saber: pô, mas essa música aqui é aquela do fulano, essa música aqui é aquela do cicrano, esse flow é aquele do fulano, esse beat é aquele do ciclano, e... Ok, tudo bem. Quem tá feliz com isso, tá no seu processo. E o meu processo e inquietações têm outros sabores.


Mas entra numa zona de conforto também. Mas no seu caso você não está pensando somente no mercado, está pensando na arte. 

Eu tenho que pensar um pouquinho no mercado, sim, porque eu preciso vender, e às vezes me ferro, porque faço algo que é muito estranho, que tem dificuldade de vender. Mas tudo isso porque eu já fiz o que é exatamente a lógica que a massa acolhe. Eu sei o que é isso, só estou aqui enquanto há tempo fazendo outras coisas, porque em algum momento também meu tempo pode se encurtar, um tempo útil de fazer coisas, aí eu preciso ser obediente. E também não sou burro. Se eu achar que essa década aqui eu vou só ser obediente, eu vou só, já sei qual é o presset e vamos vender, vamos construir patrimônio.

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Foto de Carol Curti

“Cartazes” vai pra uma outra estética musical meio descolada do disco, mas segue na mesma linha de crítica...


Você não acha que tem a ver com o DDGA? Com o "Fim das Tentativas? 


Líricamente sim. Musicalmente eu acho que já foge um pouco. 


Tirei o (auto) tune da voz. 


Percebi. 


Deixa a melodia mais brasileira quando você tira o tune. Esse beat é essa brincadeira do afro, desse afro que tá aí tocando em tudo, assim, né? E que a gente é próximo e gosta e cai bem, e o Brasil tem entendido de alguma forma. Todo mundo tem essa música de Lagos (Nigéria) que pegou o mundo, esse ritmo gostoso. E tentei deixar o poema mais nítido, sem ser MPB em questão de harmonias e melodias, mas que ele fosse a canção. Tem esse sabor. Então, o rapper está meio descansando nessa música, porque no "Expresso Sudamérica" você vê o rapper, no "Tarde Demais" você vê o rapper, no "Braille"... mesmo no "Quebrados" que é uma canção R&B. Nessa, o rapper está descansado. É uma canção que podia ser do Luiz Melodia, do Itamar Assumpção, sabe? Uma canção brasileira reflexiva que podia ser de vários caras desses que faz uma música popular brasileira mais densa, né? 


Acho que tem rap em “Vicioso” também…


“Vicioso” é um jeito de fazer trap, assim, não sei se eu acertei não, mas eu gosto.


Ficou bem, e é uma das minhas preferidas…


É porque as rimas são boas, não sei se é o teu refrão, não sei o que eu ali, mas é... Porque na verdade ela é um arrocha. E eu tenho esse dilema porque as minhas músicas têm claves brasileiras, que é do meu estudo. Todas as músicas, toda vez que você vê eu fazendo essas músicas, esses beats de rap, que tem melodia... todas essas músicas no meu estudo é algo muito brasileiro. Mas algo muito brasileiro que não faz sentido, tá ligado? Eu sou jovem da periferia de São Paulo. Faz sentido eu fazer o “Vicioso” como ele aparece pra mim em clave sonora. Quando eu tô fazendo, ele é um arrocha, mas na hora que eu vou pôr uma roupa nele, eu preciso pôr uma roupa que combine comigo, tá ligado? Eu não posso sair atravessando as culturas, as questões complicadíssimas que tem com o mercado fonográfico, o mercado da produção cultural brasileira, a centralidade do recurso que fica no Sudeste e ainda assim eu ir lá... tipo “Tarde Demais” é um samba reggae, mas eu não posso ir no samba reggae, sabe? Tem inúmeros mestres no samba reggae que talvez não colheram ainda o que merecem sobre o seu mérito. Não precisa, sabe? Não é massa. Isso está no histórico das minhas coisas. Assim como a gente critica os artistas brancos que conectaram-se com os blocos afros e construíram suas carreiras milionárias diante de produções culturais que nunca acharam exatamente um grande conforto financeiro com suas criações. A coisa que a gente critica é difícil, não dá pra gente ir lá e ser o da vez que faz isso de novo, mesmo eu sendo um homem retinto que me credencia em muitas coisas.


Mas você tem essa visão, esse pensamento de não atravessar, mas a grande maioria acaba atravessando..


É, fica ruim, inclusive, porque é difícil você fazer as coisas com ranço do local. Ranço cultural é ranço cultural. Tipo, o rap é o único que não tem isso. Se o cara fizer um rap no Pará vai ser foda. O cara fizer um rap... onde ele fizer, vai ser foda. Tanto que nos últimos anos os raps mais legais nem são os de São Paulo, nem do Rio. Isso que é foda. Mas as outras coisas não. Tem o ranço que tá em como a língua se assenta naquele lugar. O bagulho do Recife mesmo original tem um ranço linguístico que não adianta eu vir com minhas experiências em São Paulo, periferia de São Paulo e pôr no meu corpo. Pôr na minha boca, aquilo vai ficar estranho. 


Falando do livro, tem alguma previsão?


Não, o ensaio literário está rolando… isso me pôs numa relação com as artes visuais.Tem as coisas no Instituto Moreira Salles… é uma relação com as artes visuais, através da palavra. E eu estou esperando respostas. Preciso escolher uma editora. Achar uma editora, alguém, um companheiro pra tocar esse barco. Uma coisa que eu nunca fiz, não sei quanto tempo leva. 


Mas tem tudo escrito?


Tem muita coisa escrita já há bastante tempo. Vamos organizar isso, organizar esteticamente. Tem uma história, que é essa dança, que é uma história da minha mãe, duas pessoas que têm uma experiência de orfandade, que dançam sem mãe e filho, ao longo da vida. Tem essa narrativa, tem muita pesquisa também. Agora, se isso vai cruzar com o poema, se isso vai acontecer, talvez um bom editor consiga direcionar 


Não tem uma linha definida? 


Com a editora isso vai aparecendo. O que eu não queria era fazer um livro de poemas, porque acho que não era pra isso. Meu tempo não é pra isso. Mas que eu contasse uma história e que daí se conta de ter um pouquinho de reflexão no meio. Então, é meu grande desejo conseguir no ano que vem me dedicar a isso. Continuar a turnê, pôr um single aqui, outro ali e continuar sem ter que pensar em música. 


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