“A propriedade intelectual tem dono”, Solange Cesarovna

April 9, 2025
solange cesarovna clip
📸: Eddie Pipocas - BANTUMEN

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Solange Cesarovna, cantora, compositora e ex-presidente da Sociedade Cabo-verdiana de Música (SCM), tem-se destacado pela defesa dos direitos dos criadores musicais e pelo seu percurso artístico que cruza Cabo Verde, Brasil e Europa.

Filha de mãe cabo-verdiana e pai russo, nasceu na cidade de Ulyanovsk, antiga URSS, e mudou-se para Cabo Verde aos dois anos de idade. Não esconde que teve uma infância marcada por um forte cunho artístico - aos 7 anos conquistou o seu primeiro prémio no "Festival de Pequenos Cantores" e aos 8 anos passou a representar o país em festivais internacionais. Apesar de ser formada em Comunicação Social, a relação com a música nunca se perdeu. Em 2013 co-fundou a Sociedade Cabo-verdiana de Música e através do cruzamento entre arte, legislação e revogação de direitos autorais que conseguiu impor as mudanças que considera necessárias para o setor.

Durante uma conversa conduzida no âmbito da edição de 2025 do festival Atlantic Music Expo, a acontecer até 10 de abril na cidade da Praia, Cesarovna sublinhou as mudanças no setor, nomeadamente depois da criação da SCM, uma entidade que assegura "a documentação, o licenciamento e a distribuição dos três pilares fundamentais para nós dizermos que a propriedade intelectual dos nossos autores e compositores está salvaguardada e está a ser remunerada a partir do território nacional".

Antes da fundação da SCM, Cabo Verde não dispunha de uma estrutura autónoma para gerir os direitos dos seus criadores. “Cabo Verde estava totalmente dependente da tutela portuguesa para o processo de licenciamento e arrecadação de direitos autorais”, recordou. Na prática, isto significava que autores e compositores nacionais tinham de registar e proteger as suas obras através da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), o que não só dificultava o acompanhamento, como tornava mais lento e distante o processo de remuneração. Para Solange, era “necessária esta união” e hoje considera que o país deu um passo importante na proteção dos seus artistas.

Considera que os primeiros passos foram significativos e serviram de base para “dizermos que a propriedade intelectual dos nossos autores e compositores está salvaguardada e está a ser remunerada a partir do território nacional”, mas não esconde que, mesmo com o progresso, continuam a existir desafios. Um deles está relacionado com a necessidade de acelerar a compreensão da importância dos direitos de autor: “ainda dentro desta questão dos direitos autorais, nós temos que acelerar a compreensão de que há realmente uma necessidade de todos serem muito mais parceiros”.

Solange vê o trabalho de entidades como a SCM numa ótica transversal e sublinha que o mesmo não pode ser feito apenas de cima para baixo: do mesmo modo que é necessário salvaguardar a propriedade intelectual dos artistas, é necessário criar pontes com os utilizadores de música – bares, rádios, promotores de espetáculos, canais televisivos e plataformas digitais – para promover o entendimento de que o uso de obras protegidas implica responsabilidade. “É um trabalho que exige muito diálogo, mas também exige regulamentação e exige compromisso.”

À parte das questões legais, aponta para o investimento envolvido na produção musical, muitas vezes suportado pelos próprios artistas. “Temos de pagar o estúdio. Temos de pagar as gravações. “Temos de pagar a distribuição, seja física, seja digital, temos de pagar os videoclipes. Temos de pagar o plano de marketing”, enumerou, acrescentando que esse investimento só é viável quando há retorno financeiro, o que depende da valorização e remuneração do uso das criações musicais. Mas isso não exclui aquele que considera ser o papel dos artistas na gestão de todo o processo: central. Cesarovna considera urgente que os criadores compreendam os seus direitos e assumam um papel mais interventivo na proteção das suas propriedades. “Temos de entender como é que funciona a questão dos nossos direitos. Como é que funcionam os contratos que fazemos com os demais parceiros?”, questiona.

Para Solange, “a propriedade intelectual tem dono” e, por isso, o seu uso requer autorização e compensação financeira: “Temos de solicitar esta autorização, saber quais são as condições e fazer o devido pagamento”. Acrescentou ainda que o respeito pelo direito autoral não é apenas uma obrigação legal, mas também uma questão de ética profissional.

Na sua apresentação da plataforma CLIP – Creators Learn Intellectual Property, da qual é embaixadora, deu a conhecer a ferramenta de aprendizagem gratuita sobre direitos autorais e propriedade intelectual voltada para artistas e criadores.

Desenvolvida pela WIPO for Creators, um consórcio liderado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), a CLIP é uma plataforma de conhecimento acessível que visa capacitar criadores de todas as disciplinas artísticas a compreenderem os seus direitos e a tomarem decisões informadas sobre a gestão das suas obras. “É quase como uma universidade para artistas”, afirmou Solange, que é embaixadora da CLIP para os países africanos de língua portuguesa, incluindo Cabo Verde, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.

A plataforma oferece recursos explicativos sobre temas-chave dos direitos de autor, vídeos com especialistas da indústria criativa; mini-quizzes para testar conhecimentos; um dicionário extenso e acessível, com explicações simples de terminologias do ecossistema da música, pensado para criadores com ou sem formação jurídica.

Solange sublinhou que uma das grandes vantagens da CLIP é a sua linguagem acessível e próxima do criador, com conteúdos pensados por e para artistas: “É feita por criadores com experiência, que explicam conceitos de forma simples e útil para outros criadores”.

Destacou também a secção da plataforma dedicada a contratos standard, onde os artistas podem consultar modelos de contratos de agenciamento, edição, management, entre outros, alinhados com as melhores práticas do setor a nível global. “Se não temos acesso imediato a um consultor jurídico, podemos pelo menos comparar o que nos estão a propor com os standards internacionais”, explicou. “A CLIP é uma ferramenta que nos dá tranquilidade, clareza e transparência nas nossas parcerias e decisões profissionais. Se queremos ser bem-sucedidos, temos de estudar, de nos atualizar e de compreender o negócio da música.”

Solange fez ainda um apelo aos artistas cabo-verdianos: “Criem a vossa conta na CLIP, explorem a plataforma e estudem ao vosso ritmo. Quanto melhor compreendermos os nossos direitos e responsabilidades, mais preparados estaremos para prosperar na nossa carreira.”

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Além da sensibilização dos utilizadores, defende a necessidade de atualização da legislação cabo-verdiana: “Temos vindo a incentivar os diferentes agentes do setor da música, mas também os próprios governos dos países a olharem para a necessidade de termos uma atualização regulamentar”. Uma das atualizações que pontua, a título de exemplo, diz respeito ao tempo de proteção dos direitos de autores falecidos que, na sua opinião, deveria convergir com o que já se faz a nível internacional. “Aqui em Cabo Verde temos uma legislação que para os herdeiros vai até cinquenta anos após a morte dos autores dos compositores. Nós entendemos que temos que estender este prazo para aquilo que é a melhor prática internacional, que é 70 anos”.

Numa altura em que as redes sociais e a internet alteram os paradigmas de consumo e criação de conteúdo, a cantora refere a urgência de adaptar o quadro legal aos desafios colocados pela inteligência artificial. Como? Com proatividade e formação contínua dos profissionais da cultura e de atualizações técnicas ao nível dos operadores de justiça. O resultado? Um percurso onde o sucesso artistico caminha lado a lado com o conhecimento técnico e jurídico da profissão, sem descurar as adaptações que o mercado exige. “Se eu não tiver formação, se eu não tiver acompanhamento, eu não vou conseguir navegar nesse ecossistema”, conclui.

Com mais de uma década de existência, a SCM entra agora numa nova fase, marcada pela profissionalização e modernização dos seus serviços. “Estamos a investir em tecnologia, em formação e na criação de sistemas mais ágeis para garantir que os nossos membros têm acesso, em tempo útil, àquilo que lhes é devido”, explicou. Uma das apostas passa pelo reforço da digitalização do arquivo musical, pela automação dos processos de licenciamento e pela integração com sistemas internacionais de gestão coletiva, o que permitirá aos artistas cabo-verdianos monitorizar melhor a utilização das suas obras fora do país.

Segundo Solange, esta nova etapa exige também uma mudança cultural no seio da SCM e da própria comunidade artística: “Estamos num processo de transformação. Já não somos apenas uma entidade simbólica. Somos uma entidade que gere milhões de escudos e que tem responsabilidade social, cultural e económica.”

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Se eu não tiver formação, se eu não tiver acompanhamento, eu não vou conseguir navegar nesse ecossistema

Solange Cesarovna

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