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Solange Salvaterra: “Quando veem que os filhos das empregadas já não vão servir os filhos delas, isso assusta”

March 10, 2024
Solange Salvaterra: “Quando veem que os filhos das empregadas já não vão servir os filhos delas, isso assusta”

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Solange Salvaterra Pinto é uma ativista antirracista e defensora dos direitos das mulheres. Nascida em São Tomé e Príncipe, meses antes da independência do país, a também empreendedora social rumou para a Europa após terminar o 11.º ano. Ganhou uma bolsa de estudos para concluir a sua formação em França, mas o facto de não ter conseguido cursar Direito ditou que visse em Portugal a oportunidade de acabar os estudos e recomeçar a sua vida. 

Vinda de uma família de classe média – ambos os pais eram professores -, Solange cresceu rodeada de livros, informação, cultura e não esconde que o despertar para as questões raciais surgiu, numa primeira fase, através de relatos de familiares e amigos que já viviam em terras lusas. Quando vim para Portugal, já tinha cá muita gente, tios, amigos e primos, e eles contavam-me os episódios que viviam aqui, e isso foi despertando em mim esse sentimento de injustiça, de revolta”. Para a empreendedora social ficavam evidentes aqueles que considera serem os “resquícios” de um tempo que se esperava passado, mas cujo presente teima em repetir. Solange acredita que, apesar dos avanços, continua a haver um sentimento de superioridade e, para quem cresceu a saber que era “igual a toda a gente”, esse é motivo mais que suficiente para as lutas que trava hoje.

“O microfone e o voto são os dois únicos poderes que nós, imigrantes e afrodescendentes, temos em Portugal”

Solange Salvaterra

“Tenho que lutar por mim, mas não vale a pena eu lutar por mim, sabendo que há outras pessoas que querem lutar, mas não têm voz, não têm coragem, não têm possibilidades, nem sequer têm oportunidades. Então, tendo eu essa voz, bora juntar-me a pessoas que saem à rua”. Assume que nunca teve medo de pegar no microfone, de se fazer ouvir e o ativismo pulsou ainda mais no sangue depois de sentir a discriminação na pele. Ao ser questionada se tinha dado a morada da “patroa”, para que o filho frequentasse uma escola localizada numa das maiores artérias da sociedade, Solange percebeu o olhar de desconfiança da “elite”. Numa sociedade que tende a associar os afrodescendentes aos subúrbios, quão estranho é ver mulheres negras a frequentar os grandes centros urbanos para algo que não seja trabalho? Solange admite que a elite não está preparada e vai mais longe: “essa suposta elite não concebe que as filhas das empregadas, que é o que elas pensam, que as filhas das empregadas possam frequentar o mesmo ensino que os filhos delas, que possam ter a mesma qualidade de ensino que os filhos delas. Quando veem que os filhos delas frequentam a mesma escola que os filhos das empregadas, e que os filhos das empregadas vão ter oportunidades, vão para a universidade, e que os filhos das empregadas já não vão servir os filhos delas, assusta.”

Para a ativista, os tempos atuais são de luta e resistência, cabendo aos pais e educadores o papel de fazer tudo aquilo que for necessário para que as futuras gerações prosperem, sobretudo numa altura em que admite olhar com preocupação para o crescimento dos movimentos de extrema-direita. Que devem fazer os afrodescendentes perante o aumento do discurso de ódio? Que olhar devem ter as minorias sobre si próprias? De que forma reagir? Ainda que não existam fórmulas concretas, acreditar que “estamos num lugar de igualdade” e fazer valer os direitos enquanto cidadãos podem ser encarados como solução. 

Portugal elege os deputados para a Assembleia da República neste domingo, dia 10 de março, e para Solange essa é altura ideal para que a comunidade se faça ouvir. “O microfone e o voto são os dois únicos poderes que nós, imigrantes e afrodescendentes, temos em Portugal”, confessa acrescentado que essa é a única maneira de estancar o racismo. Não esconde que falta literacia política no seio da comunidade, mas acredita que a mesma deve ser uma falha colmatada pelos movimentos anti-racistas. “Se Maomé não vai à montanha, a montanha tem que ir a Maomé”, afirma. É, nas palavras da empreendera social, necessário que os coletivos e associações se organizem e deixem de lado aquilo que considera ser um ativismo elitista para dar lugar a um ativismo feito com e para a comunidade. Privilegiar o bem comum é o primeiro passo para a organização da comunidade. O segundo passa por definir linhas de atuação comuns e agir em conformidade. Se a luta é a mesma por que razão cada um faz a sua parte, quando as associações e coletivos todos juntos têm mais impacto? “Parece que estamos a competir para ver quem faz mais e quem faz melhor. Isso não nos favorece.” Há primeiro que tudo, a necessidade de “descentralizar o discurso” e levá-lo até aos lugares onde a vida das pessoas “realmente acontece”.

“Uma pessoa que trabalha de manhã à noite para meter comida na mesa não tem tempo para se informar, não tem tempo para ver debates. Não está sequer preocupada em perceber de política. Temos que ser nós, que temos acesso, a levar informação até elas. É importante que essas pessoas, que fazem o país acontecer através das obras, limpeza, restauração e muitas vezes trabalhos precários, se sintam queridas. Quem tem informação, tem que ir à frente para desbravar caminho. É importante que essas pessoas se sintam queridas, que alguém olhe para elas. Nenhuma mulher que se levanta às 5 da manhã tem disposição para no final de um dia de trabalho se arranjar para vir a uma gala no centro da cidade. Ela vai achar, em primeiro lugar, que não pertence ali. Mas e se os coletivos se organizassem e criassem esses eventos fora do centro da cidade? Estamos no centro da cidade a falar de problemas de pessoas dos chamados subúrbios. Não é mais fácil falarmos sobre esses problemas junto de quem realmente sofre com eles?”, indaga. Admite que a ausência de referências é um dos motivos pelos quais a comunidade se dispersa, mas é na lógica de tentativa-erro que o caminho deve ser feito e, mesmo que isso signifique uma luta mais difícil, há que começar a trilhar o caminho para quem vem atrás. “O que seria de nós se a Rosa Parks se tivesse levantado naquele autocarro, se não tivesse resistido?”, questiona a título de exemplo.

Solange assume-se como feminista e admite ser uma voz ativa na luta pelos direitos das mulheres, mas não deixa de ver o termo como uma construção ocidental, fazendo um paralelo com algumas sociedades africanas cuja base é até hoje matriarcal. Nessas sociedades, as mulheres são maioritariamente vistas como motor e é comum estarem na linha da frente, mas será que o mesmo acontece na Europa? Até que ponto o feminismo ocidental protege a mulher negra? Para a ativista a luta pelos direitos das mulheres negras é solitária: enquanto a maioria das mulheres luta por trabalho igual, salário igual, as mulheres negras ainda lutam pela oportunidade de trabalho fora dos estigmas já enraízados. 

“Onde é que nós estamos, afinal? Parece que há uma agenda para continuarmos nestes lugares escondidos”, afirma. É tempo de pessoas negras reconhecerem o seu potencial e entenderem a necessidade de ocupar todos os espaços. Há quem lhe chame furar a bolha, mas o que fazer quando furamos a bolha e ela não nos quer? Solange assume que é necessário continua a lutar, extrair o melhor da luta dos antepassados, levantar os ombros e ir furando tantas bolhas quanto possível. Não há, nem pode haver “barreiras intransponíveis, até porque “no dicionário do black não há impossíveis”.

Mulher de causas sociais, o seu envolvimento com a comunidade valeu-lhe uma distinção como uma das 100 pessoas mais influentes da Lusofonia em 2023, pela PowerList. E o seu discurso aquando da distinção valeu-lhe uma ovação de pé perante uma sala cheia de pessoas. É que além do ativismo, Solange Salvaterra é também apaixonada por comunicação. Autora do “Perguntas Incómodas”, programa de debates e entrevistas que começou a desenvolver em plena pandemia, recebeu e entrevistou figuras políticas como a deputada socialista Ana Gomes e vê na plataforma um meio de fazer chegar a mensagem que pretende passar. Apesar de ter dado uma pausa, admite querer retomar a produção e continuar a trazer ao seu público “temas e pessoas interessantes”. 

Atualmente, está ligada à Comissão Instaladora do Fórum da Diáspora de São Tomé e Príncipe e planeia, um dia, ser Presidente do seu país. “Por que não ser Presidente de São Tomé? E se tiver que ser uma mulher, por que não ser eu a primeira? Não sou convencida, não sou arrogante. Simplesmente estou segura daquilo que quero. As pessoas que me conhecem e sabem o trabalho que faço e que sabem do meu caráter, se acharem que a Solange pode ser uma boa Presidente, então bora lá. Se acharem que não, votem no candidato oponente. É tão simples quanto isso”, reitera.

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