Zia Soares e a travessia das sementes: uma conversa sobre "Arus Femia"

March 26, 2025

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Para a encenadora e atriz Zia Soares, falar sobre a sua arte é falar com a paixão de quem constrói mundos. Não apenas espetáculos, mas universos inteiros, repletos de história, memória e transformação. A peça "Arus Femia" é um desses mundos, um palco onde o passado ressurge, onde a resistência toma forma e onde a natureza e o corpo se fundem numa dança de sobrevivência e, sobretudo, de reinvenção.


A peça renasce de uma história enterrada nas tranças das mulheres que partiram da Guiné-Bissau rumo ao desconhecido, levadas à força pelas rotas do tráfico de escravizados. Nas suas cabeças trançadas, escondiam-se sementes de arroz. Um gesto de esperança, um pacto silencioso com o futuro. Ao chegarem às Américas, essas mulheres encontraram um solo estranho, mas, com o conhecimento ancestral que traziam consigo, souberam como adaptar a terra ao seu alimento. O arroz cresceu ao redor dos quilombos, espalhou-se, e, ao perceberem o poder dessas mãos femininas, os colonizadores tomaram-lhes a sabedoria e transformaram-na num império de monocultura. Hoje, hectares de arrozais na América do Sul têm a sua origem nesse ato de resistência invisível.


Zia soube desta história por acaso, contada por um amigo guineense. "Achei fascinante", confessa. A partir daí, embarcou numa pesquisa que a levou repetidamente à Guiné-Bissau, às bolanhas salgadas onde o arroz cresce num equilíbrio cada vez mais frágil entre a água do mar e a água da chuva. Ali, encontrou mulheres que perpetuam esta tradição, mas que agora enfrentam um novo inimigo: a crise climática. "A subida do nível do mar está a salinizar os solos. Há campos que já não dão nada. E quando pergunto a essas mulheres o que farão se as águas engolirem a terra, elas respondem simplesmente: ‘Vamos morrer’." A resposta é uma certeza fincada na ausência de soluções concretas, seja pela inação face às alterações climáticas - provocadas na sua maioria pelos países do Norte global, seja pelas barreiras impostas à imigração.


A urgência dessa realidade ecoa em "Arus Femia" mas Zia não quer contar apenas uma história de lamento. O espetáculo propõe um mundo onde essa comunidade de mulheres não se rende. Em vez disso, transforma-se. Continua a plantar arroz, mas agora debaixo de água. Elas não se afundam, adaptam-se, tornam-se parte desse novo ciclo, reinventam a existência.


Questionada sobre a forma como absorve ou se protege da carga emocional que estas histórias movimentam, Zia é muito direta: “Eu não fico presa no emocional. Quando crio um espetáculo, estou a criar um mundo que funciona. Não se trata de chorar o passado, mas de propor novas formas de existir." Essa lucidez molda "Arus Femia" como uma obra de geometrias rigorosas, onde texto, som, movimento e imagem coexistem sem hierarquias. A música de Xullaji nasce das águas gravadas na Guiné-Bissau, as coreografias de Vânia Doutel Vaz evocam os caminhos geométricos dos arrozais, e a cenografia de Neusa Trovoada recria esse universo submerso.


No elenco, juntam-se vozes de cá e de lá. Artistas negros portugueses e guineenses, unidos por uma narrativa que desafia fronteiras temporais e espaciais. "Esta comunidade que criámos no espetáculo não existe no passado, no presente ou no futuro. Ela atravessa todos esses tempos", explica Zia.


"Arus Femia" não se fecha apenas no palco, uma vez que a peça integra conferências, diálogos e encontros com especialistas, que irão acontecer entre Lisboa e Porto. O espetáculo estreia a 2 de abril no Teatro do Campo Alegre, no Porto, e segue para Lisboa, no dia 2 de abril no Centro de Arte Moderna Gulbenkian, e de 7 a 11 de maio, no Teatro do Bairro. Em maio, ali, onde tudo começou, onde o arroz ainda cresce entre a água salgada e a doce, a peça encontrará o seu regresso, durante a Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau. 


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