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Fábio Silva: “A história da minha mãe é a história de muitas mulheres cabo-verdianas”

Uma mulher cabo-verdiana está deitada na cama. Aparentemente, vislumbramos as suas memórias ou um sonho que está a ter. No meio do mato, corta-se a carne do porco, faz-se um tacho de arroz e feijão. Ouve-se um tema das Batukaderas de Fontiano. Cruzam-se imagens nítidas com filmagens analógicas, captadas em Super 8. É assim Mudjer, a nova curta-metragem do cineasta português Fábio Silva, que foi lançada em formato de Reels esta sexta-feira, 28 de abril, na página de Instagram da produtora Cedro Plátano. 

“A minha mãe aparece no início e no final, como se fosse um sonho dela. Queria que aquele lugar fosse uma espécie de limbo. No sentido em que aquilo não pertence a ninguém, não está na cidade mas também não está no campo… Não é Portugal, mas também não é Cabo Verde. Queria que remetesse para uma memória da minha mãe. É uma forma de estas comunidades estarem cá mas ao mesmo tempo estarem lá. Mas não estão bem num sítio nem noutro, estão ali num limbo. A minha mãe está ali naquela horta, mas no fundo gostava de estar em Cabo Verde. Mas não dá, porque já está aqui enraizada, tem aqui a sua família, os seus hábitos”, explica Fábio Silva à BANTUMEN.

As filmagens aconteceram numa horta urbana na Margem Sul do Tejo. “Os meus pais são cabo-verdianos e eu nasci em Portugal. Mas parece que só nos últimos anos é que comecei a ter mais interesse em descobrir a cultura cabo-verdiana. Se calhar, todos os imigrantes são assim, mas os cabo-verdianos criam quase uma ilha em Portugal. Por exemplo, se andas nas estradas e vês pessoas africanas a trabalhar na agricultura — vê-se muito no IC19 — de certeza absoluta que são cabo-verdianas. Isso sempre me interessou muito. E, agora, nos últimos anos tenho descoberto algumas hortas cabo-verdianas nas periferias, muitas delas à beira da estrada. São quase não-lugares. No sentido em que não têm dono. Muitas delas são em terrenos que as fábricas meio que deixaram ao abandono. E eles: ai é? Então vamos semear batatas, couves, tomates ou morangos. Sempre achei muito interessante, já passei meses lá sem nunca gravar, mas achei que agora era interessante fazer uma pequena curta-metragem.”

Eventualmente, a ideia de enaltecer a condição da mulher cabo-verdiana — daí ter escolhido o título de Mudjer — veio ao de cima. “Há momentos em que sei exatamente o que fazer, mas ali estava meio que à procura. E quando cheguei e vi aquelas imagens é que me apercebi — porque às vezes na montagem é que tens um certo distanciamento do processo de construção do filme — de que as mulheres é que estavam ali a fazer quase tudo. O homem também estava a cortar a carne, mas a mulher estava a cortar a carne, a pôr as coisas na panela e eu percebi: bem, na comunidade cabo-verdiana a mulher… Continua a ser como num Portugal antigo, nesse aspeto. Decidi chamar-lhe Mudjer para ser uma dedicatória à minha mãe e à mulher cabo-verdiana.”

A produtora Cedro Plátano está a celebrar o 10.º aniversário e convidou uma série de realizadores com quem tem colaborado para fazerem estas pequenas curtas-metragens para o Instagram. Fábio Silva conheceu a cineasta responsável pela produtora, Renata Sancho, enquanto procurava financiamento e apoios para a sua futura longa-metragem documental, que tem estado a preparar. As Tuas Costas Ainda Ardem, assim se vai chamar, tem uma ligação direta ao seu filme anterior.

Em 2021, o cineasta, que hoje tem 30 anos, apresentou Fruto do Vosso Ventre, curta-metragem documental que se estreou no IndieLisboa e que viria a ser distinguida em diversos festivais, arrecadando galardões como o Prémio do Cinema Novo, do Porto/Post/Doc; ou a Melhor Curta-Metragem Internacional do festival espanhol Play-Doc. O filme é profundamente íntimo. Fábio Silva mergulhava nos arquivos de vídeo da família para contextualizar o afastamento do pai e como as suas relações extraconjugais tinham afetado a dinâmica familiar — e, sobretudo, a sua mãe.

O filme serviu-se muito de eu alertar a minha mãe para o seu estado físico e psicológico. Ela ainda estava com o meu pai. E eu disse: ‘Essa relação já há muitos anos que não funciona, mas agora mais do que nunca o teu estado de saúde está a deteriorar-se e tens de fazer alguma coisa em relação a isso. Ele não tenciona terminá-la, por isso terás de ser tu, mãe’. E ela, felizmente, encheu-se de coragem e ao fim de 40 anos de relação disse: isto acaba aqui e agora. Foi todo um processo, a questão das partilhas e tudo mais. Mas ela finalmente conseguiu. A casa ficou para a minha mãe, ela ficou a viver sozinha e o meu pai foi-se embora. Mas, como é natural, estás a viver com uma pessoa há 40 anos e de repente era como se ela tivesse estado quase adormecida… Quando terminou e ele se foi embora, parece que tudo lhe caiu em cima. Ficou super revoltada, magoada, chateada.”

A mãe do realizador Fábio Silva, imagens do filme “As Tuas Costas Ainda Ardem” | DR

Não há receitas para fazer filmes. Cada realizador tem a sua fórmula e cada filme tem a sua especificidade

Fábio Silva

Fábio Silva partilhou o que se estava a passar com um professor que tem acompanhado os seus trabalhos, Vítor Gonçalves. O orientador aconselhou-o a fazer um filme sobre a sua mãe — mas tinha de começar rapidamente para captar todo o processo que estava a acontecer.

“E eu sou muito de pensar bem no que vou fazer antes de começar a filmar, e sei que o meu professor também é assim, mas para ele me ter dito para ir já, é porque havia uma certa urgência. Não há receitas para fazer filmes. Cada realizador tem a sua fórmula e cada filme tem a sua especificidade. E pensei: OK, para ele me estar a dizer isto, é porque há uma urgência no processo de captação. Naquele período, simplesmente estive com a minha mãe e a câmara e os microfones. Durante imenso tempo, estive simplesmente a filmá-la e a fazer-lhe perguntas. No fundo, a tentar perceber que filme é que dali vou construir. Durante muito tempo, foi só ela a libertar-se para a câmara. A dizer ‘o teu pai fez isto, fez aquilo, magoou-me assim, deixa-me mostrar-te aqui coisas que tenho escritas há mais de 20 anos’… Aí foi puxar a corda e descobrir coisas do passado de que não fazia mesmo ideia, e que vão ser contadas ao longo do filme.”

Com aquelas imagens, chegou a preparar uma montagem, para se poder candidatar a processos de financiamento. Mas, com a ajuda de colaboradores próximos — como a produtora Renato Sancho e o assistente de realização João Pedro Soares — percebeu que o filme ainda não estava pronto. Que precisava de identificar melhor um ângulo específico.

“A história da minha mãe é a história de muitas mulheres cabo-verdianas. Aquilo que a minha mãe viveu, de ter uma relação complicada, é a história de muitas mulheres cabo-verdianas. Faltava essa perspetiva global. E aí tive que parar, depois de ter horas e horas de filmagens e conversas, para pensar: que filme estou eu a construir? Qual é o foco? Precisava de perceber, se eu não fosse filho dela e a tivesse descoberto na rua e começasse a conversar, o que me levaria a pensar: esta senhora, realmente, daria um filme interessante? Não basta ter carisma e uma personalidade vincada.”

O mais difícil, admite, foi criar um “certo distanciamento”. “A questão da infidelidade do homem cabo-verdiano sempre foi uma coisa que vi, porque a minha mãe sempre teve imensos irmãos, então para mim sempre foi uma coisa normal.” Precisava de alcançar um “olho de realizador” e perder a “perspetiva de filho”. Para isso também conversou com investigadores e sociólogos sobre estas dinâmicas.

“Tento mesmo não julgar. É quase como… Não sei se a palavra antropólogo é a mais indicada, mas é a minha personalidade. Sou o tipo de pessoa que, se alguém comete uma atrocidade à minha frente, não arremessa pedras. Eu tento pensar: o que é que te levou a fazer isso? Porque é que és assim? E vou quase ao passado da pessoa, tentar perceber, ‘ah, OK, houve um trauma de infância que te levou a fazer isto e o teu pai maltratou-te e por estes motivos todos é que estás a cometer esta atrocidade’. Aqui tentei fazer o mesmo.”

O título, As Tuas Costas Ainda Ardem, tem um duplo significado. Por um lado, claro, simboliza a dor da sua mãe perante anos e anos de “abusos conjugais”. Por outro, tem uma ligação direta ao seu pai. “O meu pai trabalhou na construção civil, penso que nos anos 80, e caiu de um poço do terceiro andar. Ao cair, raspou as costas e ainda hoje tem uma cicatriz enorme. Então tem um sentido quase literal, mas também metafórico: que dor é esta, o que se passa aqui no homem cabo-verdiano para que ele tenha este tipo de comportamentos? E com isto não estou a vitimizá-lo nem a defendê-lo. Só estou a tentar compreender o que se passa na sociedade cabo-verdiana para que estes casos ainda aconteçam. Se bem que nos últimos 30 anos a coisa já começa a desaparecer, já não é como nos anos 70. Mas ainda existem casos.”

“Antigamente havia uma poligamia informal, como no caso da minha avó.” Não era algo completamente aceite a nível social, até porque era reprovado pela igreja católica, mas era um fenómeno comum. “O homem tinha várias mulheres e as mulheres cuidavam dos filhos do mesmo parceiro, mas também não era algo propriamente assumido e aceite como nalguns países muçulmanos. Também posso dizer que existia em Portugal, sobretudo antigamente. Mas há uma grande diferença entre haver um tempo em que os homens eram muito mais infiéis e havia uma maior permissão, digamos, para a infidelidade do homem e era mais aceite; e uma poligamia informal. São coisas distintas. E é nessa fase que estou. Estou a tentar perceber essas diferenças, essas nuances. É quase um trabalho de detetive… Perceber como é que era possível. O meu avô estava na casa com a minha avó, depois ia a casa de outras mulheres, depois a minha mãe conhecia os outros filhos dele de criança e brincava com os irmãos que eram filhos de outras mulheres. Isso interessa-me muito perceber. Até que ponto é que estas dinâmicas familiares em Cabo Verde não afetaram a tolerância para a minha mãe deixar que o meu pai tivesse casos extraconjugais?

Fábio Silva sublinha, contudo, que houve transformações ao longo dos anos. E que a imigração para Portugal de muitos cabo-verdianos levou a que algumas dinâmicas sociais se alterassem. “Porque, enquanto a minha mãe não via nada de errado com o meu avô, ‘era normal na altura, a minha mãe aceitava’, aqui já dizia ‘isso aí não, mexia comigo’, e sofreu uma depressão. O tempo e o espaço faz com que a mudança de paradigma e mentalidade também mudasse. Passamos quase de uma poligamia para uma infidelidade. Quando o cabo-verdiano sai do seu contexto de anos 60 e 70 e vem para Portugal tenta de alguma forma transportar os mesmos hábitos culturais, mas a mulher cabo-verdiana diz que não. ‘Isso morreu, isso era no passado. Estamos em Portugal, uma sociedade monogâmica, já não estás na poligamia’. Isso interessa-me muito explorar. E há quase um combate, de a mulher dizer: ‘vais ter que deixar esses hábitos se quiseres continuar nesta relação’.”

O realizador Fábio Silva e a mãe, imagens do filme “As Tuas Costas Ainda Ardem” | DR

Foi quase um expelir de muita coisa intensa que tinha aqui guardada ao longo dos anos. Chorei em todas as sessões

Fábio Silva

O cineasta assume que cada vez mais tem um “fascínio profundo” pela mulher cabo-verdiana. “Há vários casos de mulheres cabo-verdianas que estão sozinhas a cuidar dos seus filhos. Não podemos generalizar, porque há muitos casos de abandono, do homem que deixou a mulher a cuidar dos filhos; mas também há casos da mulher que diz: ‘ai é, estás com outras mulheres? Sai desta casa que cuido sozinha do meu filho’. Estaremos a falar de um matriarcado, porque a mulher está sozinha a cuidar dos filhos? Mas é um patriarcado no sentido em que o homem está numa posição de poder e não deixava, por exemplo, que as mulheres tivessem outros namoros e tinha uma última decisão em muitas coisas em relação ao filho. Ainda estou a descobrir, é muito complexo.” 

No fundo, o filme passa por uma desconstrução destas dinâmicas conjugais da sociedade cabo-verdiana para que o realizador apure o que se passou, então, no caso dos seus pais e da sua família. É uma forma de chegar às suas raízes, ao seu âmago, mas também há uma homenagem declarada à sua mãe. 

“No final do dia também é um filme um pouco egoísta, no sentido em que é uma forma de eu a querer imortalizar, de criar uma peça bonita, para a guardar quando ela já aqui não estiver. De poder ter este filme e mostrar a toda a gente que esta é a minha mãe e como para mim é uma heroína. Tem esta dupla coisa: querer mostrar uma face da mulher cabo-verdiana e a minha mãe. É de um amor muito grande que tenho por ela. Mas também, claro, de conhecer as minhas raízes. De que árvore genealógica é que venho? Quem são os meus pais, quem são os meus avós, quem são os meus bisavós? Porque esta questão das dinâmicas das relações familiares cabo-verdianas não começou nos anos 60. É algo muito, muito antigo, que se calhar vem do tempo da escravatura.”

Pelo que se julga, Cabo Verde era um arquipélago não habitado antes de os portugueses lá chegarem em 1460 — tal como a Madeira e os Açores. A terra foi colonizada e acabou por funcionar como um interposto comercial de escravos. “E as comunidades que eram capturadas em África já tinham a sua cultura. E uma das teorias possíveis desta questão da poligamia é que esses povos ancestrais já eram poligâmicos. É algo que ainda vou investigar, mas interessa-me muito perceber, no limite, de onde é que eu venho.

Perguntamos-lhe se, para si, é um processo de alguma maneira terapêutico. “Embora não tenha tido a intenção de ser terapêutico, o Fruto do Vosso Ventre foi. E só me apercebi disso depois da construção do filme. Foi quase um expelir de muita coisa intensa que tinha aqui guardada ao longo dos anos. Chorei em todas as sessões. Neste aqui, acho que terapêutico não é a palavra. Acho que está a ser muito mais uma forma de conhecer a minha mãe. Às vezes nem pensamos nisso, estamos num processo de crescimento e de lidar com adolescências, e depois somos adultos e saímos de casa, e os nossos pais conhecem-nos sempre muito bem. Mas não sei se, enquanto filhos, nós verdadeiramente conhecemos… Conheço inúmeras histórias de pessoas que, por exemplo, o pai morreu, deixou dívidas e depois descobre-se que tinha outras mulheres… ‘Como assim, quem é o meu pai?’ Há vários casos assim. Para já, está a ser uma forma de conhecer muito bem a minha mãe.”

O processo de gravações começou de forma crua, com Fábio Silva, com uma câmara, a captar a exteriorização da revolta da sua mãe, em casa. “Mas numa segunda fase foi quase a sua vontade de contar a sua história de vida. E começou a gostar do próprio processo de ser atriz, o que foi muito bonito. Se no início houve uma certa espontaneidade a determinada altura comecei a perceber: se calhar podemos mesmo trabalhar uma encenação das coisas. E aí ela já está a ser atriz: ‘entra por aquela porta, senta-te e imagina que estás a pensar nas tuas memórias de infância’. E ela fazia-o muito bem. Então também começou a gostar desse processo: ‘o que tenho de fazer mais?’ É uma série de etapas interessantes e agrada-me muito estar com ela, vê-la feliz e saber que ela está no processo de contar a sua própria história, da sua família e história de vida.”

As Tuas Costas Ainda Ardem é um processo em andamento. Fábio Silva está a terminar o guião, mas aquilo que desejava mesmo era obter financiamento para que a rodagem prosseguisse em Cabo Verde. “Sei que já tenho história, muita matéria para ser trabalhada e uma excelente protagonista que está disposta. Esse é o processo difícil, bater às portas. Temos tentado. Mas também não gostava de demorar muito tempo a ir lá. De uma forma ou outra, tenho que ir porque quero filmar a minha avó — ela já está com 93 ou 94 anos. Eu diria que a grande fatia de captação é lá em Cabo Verde. Gostava de ter os meus tios, os meus avós e ter lá a minha mãe. É aquilo que mais me preocupa no sentido em que é preciso financiamento para o fazer.”

Fábio Silva acredita que se tem “dado foco” às “minorias étnicas” e às “comunidades periféricas”. “O cinema é especial neste sentido. De fazer com que estas comunidades, muitas vezes marginalizadas, em que as pessoas não reparam, como o cabo-verdiano que está a trabalhar nas hortas e as pessoas passam lá todos os dias, e estão tão focadas no seu trabalho e nas suas vidas que nem reparam, e o cinema diz ‘vocês já repararam nisto?’ E coloca aquilo num eixo central. As pessoas estão muito viradas para o entretenimento. Como se o cinema fosse bom ou mau tendo em conta o nível de entretenimento. Mas para mim o cinema tem de ser uma experiência de a pessoa sair mais rica da sala.”

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