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Do quarto para o MAAT. Filipa Bossuet, uma artista revelação em descoberta

Filipa Bossuet
Foto: João Cachola

A vivência familiar aproximou-a, desde logo, ao mundo das artes, mas acabou por seguir o caminho da comunicação. Já o primeiro confinamento trouxe o tempo de que precisava para se descobrir enquanto artista. Num processo autodidata, Filipa Bossuet apresentou, em novembro do ano passado, uma instalação online, montada a partir do seu quarto – tal como é, uma janela aberta para o seu mundo e um espelho de si mesma. Mas “Mankaka Kadi Konda Ko” foi só o começo de algo maior, o ponto de partida para outros espaços e linguagens – um início que terá já continuidade no próximo dia 30 de março, no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), onde a artista luso-angolana participará na exposição coletiva “Interferências”.

“O meu quarto é o meu lugar no mundo, ele vai sempre refletir os meus pensamentos, sensações e estados de espírito. Nas paredes, na cama, nas plantas, nos livros, na pintura, e na disposição de tudo isso. Neste momento tudo se movimenta, não tem lugar e todos os dias procura-se um lugar para estar, talvez ficar – que revigore ou intensifique”. Foi com estas palavras que Filipa convidou o público a conhecer a sua primeira exposição a solo, uma imersão no seu espaço criativo físico e mental.

A instalação “Mankaka Kadi Konda Ko” surge da necessidade de juntar, num só espaço, as diferentes expressões a que se dedica: fotografia, vídeo e pintura. “Mas também de uma vontade de expulsar tudo aquilo que sentia e que senti ao longo dos anos”, partilha a artista, que, desde os 13 anos, tem um canal no YouTube, onde publica vários vídeos experimentais. “É sempre nesse sentido que produzo, dessa necessidade de expulsar o que tenho em mente”.

Desta vez, fê-lo de uma forma mais técnica, através de uma instalação 360º. “A pessoa entra e tem uma visão sobre o quarto – que até já me disseram ser muito voyeurista.” Mas porquê no quarto? “Porque foi onde comecei”, explica. “É no meu quarto, precisamente, por ser um trabalho identitário. E também por ter arquivo familiar. Faz sentido ser um espaço que é casa, que lembra a família, que lembra os primeiros momentos de quando somos crianças. Sinto que o nosso quarto também é o espaço em que começamos a desenvolver opiniões e a refletir; a sofrer e a festejar. Acho que não faria sentido se não fosse lá”.

Um vinil de Bob Marley, a edição comemorativa do jornal O Negro, o livro Notas sobre o Luto, de Chimamanda Ngozi Adichie, a revista Shifter, várias pinturas suas, ou uma conga, são alguns dos objetos que nos é permitido descobrir nesta exposição imersiva, que conta ainda com vários ícones onde é possível ter a acesso a outras fotografias, vídeos e texto. “[O meu quarto] Tem as minhas origens familiares, tem as minhas reflexões diárias, tem o meu trabalho de interpretação sobre aquilo que está ao meu redor, ou seja, é uma junção dos factos reais com a interpretação que tenho sobre esses factos”, explica a artista.

A sua identidade é sempre o ponto de partida: “Questiono a minha identidade, para transmitir algo que pode ser refletido por outras pessoas de uma forma que vá para além da minha identidade. Então, quando perguntas o que é que o meu quarto tem da minha identidade, [a resposta é] tem tudo.”

Entre o claro e o escuro, nasceu uma pintora

“Mankaka Kadi Konda Ko” não tem uma tradução literal. “É uma expressão em quicongo [uma língua africana] que quer dizer ‘coisas que acontecem’, imaginemos, ‘imprevistos”. Ou seja, coisas de que não estamos à espera, mas que, quando acontecem, fazem todo o sentido.” O título reflete o percurso da jovem no mundo artístico. “As artes surgiram num momento em que não estava nada à espera, não foi nada programado. E tudo o que coloco dentro da exposição são coisas em que vou refletindo, sem intenção de colocar numa dimensão artística. Essa naturalidade que tenho a trabalhar tem muito a ver com essa expressão”, clarifica. 

As artes surgiram na sua vida de uma forma muito “espontânea” e quase umbilical. Os pais foram, durante largos anos, bailarinos no Ballet Nacional de Angola. O irmão dança hip-hop, embora não profissionalmente, e a irmã, Cirila Bossuet, é atriz. “A cultura africana sempre teve presente, e está muito relacionada com as artes”, acrescenta Filipa, ao facto de ter crescido rodeada de artistas.

Quando ingressou no ensino secundário, optou pela área das artes visuais. Mas, na hora de escolher um curso superior, escolheu ciências da comunicação.Queria ser designer de moda, mas abandonei [a ideia], porque percebi que, na realidade, a comunicação era algo que me chamava muito mais a atenção.” 

Diz não lidar muito bem com datas e, talvez por isso, não terminasse sequer os exercícios artísticos no secundário. “Se calhar não senti que aquele era o espaço propício para desenvolver qualquer coisa, não sei.”

No início de 2020, a pandemia e o, consequente, confinamento marcaram o ponto de viragem. “Estávamos todos fechados em casa. Não havia nada para fazer. Estava tudo parado. Não se sabia no que isto ia dar. Então peguei nas minhas coisas do secundário, nos meus materiais de artes visuais, e decidi experimentar fazer alguma coisa.” Foi aí que surgiu algo de que não estava à espera: um autorretrato, feito a partir de uma fotografia, cujo resultado a impressionou. “Fiz a pastel de óleo, assim a traço rápido, só com uma cor”, relembra. Foi a primeira pintura, a que se seguiram muitas outras – uma das últimas tornou-se capa do livro Sempre que Acordo, de Lara Mesquita. “Depois é que fui trabalhando com outras cores, outras formas”, conta. Mas sempre partindo de uma fotografia ou de imagem de um vídeo. “O ato de fotografar ou de filmar já tem um conceito. Então, a pintura, quando é feita, já tem uma carga de significado e de simbolismo”, acredita.

Sem qualquer formação específica na área, Filipa explica-nos a sua técnica: “Só penso no claro e escuro. Penso na luz. Olho para a fotografia e penso ‘esta parte é mais escura e esta é mais clara’. E vou jogando nesse sentido.” Para a jovem, cada pintura é uma experiência e um desafio: “Sei que quero pintar uma imagem, mas nunca sei se vai sair bem. É um risco que estou a correr. Mas acho que também é interessante por isso, porque nunca sei se vai correr bem, nem sei o que vai sair exatamente.”

Descobrir-se nas artes visuais, é descobrir-se a si própria: “Estou num processo de descoberta enquanto artista, e num processo de descoberta enquanto ser-humano. Porque faço esse processo dentro das artes. Por isso é que é tão intenso, para mim. Porque trabalho a minha identidade. Começo de mim e, depois, é que vou para o externo. E o externo é sempre o resultado da reflexão que fiz internamente”.

“É muito interessante também estar nesta fase da descoberta enquanto artista, e ser uma artista autodidata”, acrescenta. “Começo a pintar, porque tenho muita necessidade de pintar qualquer coisa. Depois, à medida que vou pintando e que a pintura vai surgindo, vou tirando várias outras conclusões. E é isso que quero que as pessoas tenham na minha arte, pelo menos por enquanto, esta liberdade de questionarem o que está ali”. 

Esse é o motivo pelo qual a maior parte das suas obras não tem título. “Não quero restringir o pensamento das pessoas”, afirma. Levá-las a questionarem-se é o objeitvo. “Aquilo que quero passar interessa, mas não interessa tanto, porque não conheço a pessoa que vai ver”, considera. “Interessa-me fazer as pessoas questionarem, pensarem e refletirem sobre as suas existências através do meu trabalho.”

Entre as artes e o jornalismo, uma só Filipa

Aluna no mestrado de Migrações, Inter-etnicidades e Transnacionalismo, a jovem formou-se, em 2020, em Ciências da Comunicação. Desde então fez já alguns estágios, mas nunca exerceu profissionalmente. “Digo muitas vezes que não existe a Filipa que estudou jornalismo e a Filipa que é artista”, refere. “Primeiro, porque estudo a minha identidade, então essa reflexão é feita no todo. E também porque acho que existe uma influência muito grande em tudo o que fazemos. Acho que, por exemplo, tenho um olhar muito artístico dentro do jornalismo, e também tenho um olhar muito jornalístico dentro da pintura, das artes visuais”, nota. Por isso, pretende continuar nas duas áreas. “Não sei se me vai ser possível por causa da precariedade, e também porque são duas áreas que exigem muita entrega”, pondera. “Mas eu gostava. E acho que vou continuar, porque uma coisa não existe sem a outra.”

Do quarto para o MAAT

Inserida no site fbossuet, a instalação online da artista tem o custo de 3,90 euros e pode ser vista quantas vezes o público quiser.  “A ideia é mesmo que a pessoa, se quiser, vá ver a exposição várias vezes, que reflita e que tenha uma interpretação diferente nas várias vezes que vir.” Isto porque “Mankaka Kadi Konda Ko” não é apenas uma exposição. “A ideia é que seja uma história que vou contando em vários atos (…). Aconteceu e vai-se desenvolvendo em vários espaços, em várias outras linguagens. Por isso é que a exposição online é para sempre. Porque é o começo de algo que é maior.” 

Como diz, “há uma continuidade já a acontecer.” Filipa Bossuet participará numa exposição coletiva no MAAT, com curadoria de Alexandre Farto (Vhils), Carla Gomes e António Guterres. “Interferências – Culturas Urbanas Emergentes” será inaugurada no próximo dia 30 de março, na galeria principal do museu. “É uma exposição que afirma diferentes expressões da cultura urbana, explorando itinerários narrativos da cidade [de Lisboa] através de um diálogo que privilegia o museu enquanto espaço crítico, lugar de encontro entre várias comunidades e sensibilidades – as instaladas que o frequentam e as subalternizadas que o desconhecem –, ponto de partida para novos começos”, é dito no website do MAAT.

Procurando dar visibilidade à diversidade cultural que caracteriza a cidade de Lisboa, “Interferências” colocará em diálogo obras de artistas contemporâneos que usam as ruas como contexto de expressão e experimentação e obras de coleções institucionais e privadas, “dando relevo a narrativas alternativas que visam interpelar o público, convidando-o a refletir sobre que cidade, espaços urbanos e instituições artísticas e culturais podem ser construídas juntando novas vozes a esse processo.”

Filipa não avança muito sobre o tipo de instalação que vai apresentar naquele espaço, mas não esconde o entusiasmo: “[Vai ser muito bom], para mim, enquanto artista e também vai ser incrível fazer parte do projeto, conhecer outros artistas”, partilha. “Acho que é interessante também criar algo a partir do “Mankaka Kadi Konda Ko” – que veio de um quarto, atenção(!), e do online – e colocá-lo físico, de alguma forma, num espaço como um museu, que tem todas aquelas características clássicas. E o meu trabalho não é clássico! Então, acho que vai ser uma conversa muito interessante entre aquele que é o meu trabalho e aquele sítio.”

Na exposição, participarão também Fidel Évora, Petra Preta, ±maismenos±, Onun Trigueiros, Diogo Carvalho, Isabel Brison, Wasted Rita, Sepher Awk, Herberto Smith, Rappepa Bedju Tempu, Tristany, entre outros artistas, e estarão representadas várias coleções institucionais, nomeadamente a Coleção de Arte Portuguesa Fundação EDP – com obras de Luís Campos, Rodrigo Oliveira e Carlos Bunga –, a Coleção do Centro de Arte Moderna Gulbenkian e da Biblioteca de Arte Gulbenkian, a RTP Arquivos e ainda diversas coleções privadas.

Organizada em núcleos, a exposição abordará vários temas que estruturam o desenho da metrópole, gerando diálogos entre esse palco e os seus atores. Segundo a informação disponível, são também estes temas que dão o mote a uma agenda de eventos que contribui para a narrativa de “Interferências”, parte dos quais se pretende que gerem contributos que integrarão a exposição, tornando-a um projeto dinâmico revelado ao longo dos seis meses em que estará patente ao público.

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