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Isabelle Cristina: “O que está a acontecer no Brasil é um movimento massivo de alienação”

Isabelle Cristina na conferência Mudar, Culturgest | Pedro Jafuno
Isabelle Cristina na conferência Mudar, Culturgest | Pedro Jafuno

Isabelle Cristina nasceu e cresceu no Grajaú, um dos bairros mais pobres da periferia da cidade de São Paulo, no Brasil. Hoje, com 19 anos, trabalha na multinacional tecnológica Oracle e é embaixadora do programa “Um Milhão de Oportunidades Generation Unlimited”, da Unicef. Para além disso, lidera a organização não-governamental Instituto Meninas Negras – um projeto que fundou com a mãe, aos 13, com o objetivo de fazer com que mais meninas negras tenham acesso a oportunidades de se tornarem líderes femininas proeminentes e cidadãs globais.

“A minha mãe foi uma menina negra, cheia de sonhos, mas que viu muitos deles acabarem por não se realizar por falta de acesso e de informação, portanto, barreiras estruturais, que socioeconomicamente são colocadas na nossa realidade (…)”, conta-nos. “Quando nasci, ela determinou que eu teria um futuro diferente.” E assim foi. Mesmo tendo crescido numa região conhecida pela vulnerabilidade social, a jovem foi incentivada desde pequena pela mãe, Regiane, a estudar e a ter um hábito de leitura.

Isabelle frequentava a escola pública. Mas, continua, desde os dois anos e meio que a mãe fazia também ensino em casa com ela. “Infelizmente, no Brasil, ainda é muito precário o ensino básico. Vamos para a escola e não temos aulas ou falta o professor. Existe uma série de lacunas que dificultam muito o processo de aprendizagem (…). Ela sabia que a única forma de eu ter um futuro diferente, sabendo do lugar de onde parto socialmente, seria através da educação de qualidade.”

Com o auxílio da Internet, aprendeu inglês, sem o apoio de um professor, e começou a estudar sobre as condições de vida da mulher negra no país. A sua dedicação e potencial valeu-lhe uma bolsa de estudo num dos colégios privados mais caros de São Paulo, onde começou “a ver realidades muito distintas” daquele que era o seu contexto social. “Saía da extrema pobreza, ia para a extrema riqueza, ia para a elite”, relembra.

A então adolescente estudava no Colégio Bandeirantes, um dos “mais elitistas do Brasil” e lá se deparava com todas as oportunidades. “Lembro-me de, às vezes, saía para o intervalo. Aí tinha Harvard, Stanford, a falar sobre como conseguir uma bolsa de estudos.”

Nessa altura, começou a perguntar-se: “Como [é que essa oportunidade] chega aqui e não chega ao meu bairro, não chega às pessoas com quem convivo?”. Uma angústia e inquietação foi-se acumulando, ao longo do tempo. “Sempre fui a única menina negra em todos os contextos.” E conforme foi tendo acesso a mais oportunidades, com um nível social cada vez mais mais elevado, o cenário ficava ainda mais discrepante. “Comecei a questionar-me por que é que só via mulheres negras no banheiro ou na cozinha?”

Foi depois de ter, aos 13 anos, concretizado o “grande sonho” de fazer um intercâmbio para os Estados Unidos da América – onde, mais uma vez, “era a única estudante negra” – Isabelle percebeu que queria mudar alguma coisa, e ajudar as suas pares a alcançar o mesmo tipo de oportunidades. “Mãe, está vendo? Sou, de novo, o único grão de feijão numa imensa panela de arroz. Precisamos mudar isso!”, escreveu à mãe numa mensagem.  

Primeiro, pensaram criar um blog para empoderar meninas negras. “Ia trazer perspectivas legais, mas não ia mudar a vida de ninguém”, e Isabelle queria transformar a vida das pessoas. Foi então que, em setembro de 2017, criaram o projeto Meninas Negras, que pretende transformar a realidade de jovens vulneráveis.

Começaram com um grupo de dez meninas que já conheciam. “Entendíamos o cenário de cada uma, fazíamos um diagnóstico e, a partir daí, íamos orientando os caminhos e fazendo pontes.” Aliada ao acesso a programas de orientação, do ensino básico à universidade e mercado de trabalho, a mentoria acontece a partir de três parâmetros: o académico, o profissional e o cultural. “Não adianta desenvolver só profissionalmente, sendo que a pessoa viveu uma vida inteira de lacuna académica. É preciso dar essa base e, ao mesmo tempo, a parte cultural é muito importante. Entender o seu lugar no mundo, como você se encaixa? Porque é que a sua realidade é dessa forma? Como você vai a partir da sua vivência, explorar o mundo, realizar seus sonhos?”

Atualmente, Isabelle lidera a organização não-governamental Instituto Meninas Negras, que ambiciona impactar meio milhão de jovens até ao ano de 2030, acreditando no poder da tecnologia como ferramenta para a transformação em escala e na inovação como motor do desenvolvimento social. A BANTUMEN entrevistou-a, em Lisboa, onde esteve a participar no ciclo de conferências “MUDAR”, realizado, nos dias 26 e 27 de outubro, na Culturgest.

O que precisamos é desse choque de realidades para que os conflitos surjam no sentido positivo, para que a partir desses conflitos construtivos, consigamos achar as melhores soluções

Isabelle Cristina

Educação, empreendedorismo e empoderamento. É esta a chave para a igualdade de oportunidades? 

Acredito que sim. Principalmente no mundo em que vivemos hoje. Sempre falo que vivemos tempos muito estranhos. Não sabemos o que pode acontecer no futuro, porque estamos a viver num caos generalizado em todos os aspetos. Desde a questão ambiental, como isso nos afeta socialmente, economicamente… As populações mais afetadas por tudo o que está a acontecer no mundo são as mais vulneráveis. São as populações pobres, as negras, as mulheres. Então, entendo que a educação, o empreendedorismo e o empoderamento social são os três caminhos que devem andar em conjunto para que consigamos criar essas oportunidades de transformação.

Quando falo em transformação é num viés pessoal, de as pessoas conseguirem ter acesso às oportunidades e transformarem isso numa condição de vida, ascenderem-se socialmente. Mas, além disso, como é que elas, dentro desse cenário, também são agentes de transformação.

Não dá para criarmos uma solução, para o cenário em que o mundo está hoje, sem que todas as pessoas estejam incluídas. E, ao mesmo tempo, quando falamos de diversidade e de inclusão, há ainda uma visão muito errónea sobre como é que vamos colocar o que está fora dentro de um padrão que já existe. É esse mesmo padrão que não está a ser suficiente para gerar soluções. O que precisamos é desse choque de realidades para que os conflitos surjam no sentido positivo, para que a partir desses conflitos construtivos, consigamos achar as melhores soluções.

Então, sim! A educação é a base de tudo, sempre. Mas empreendedorismo também. Não estou nem a falar só no sentido de abrir novos negócios, mas a essência do empreendedorismo, que é, basicamente, ver um problema, entender como posso criar uma solução e como é que faço isso acontecer.

O empoderamento social acredito que é uma grande consequência desses dois outros fatores, porque estamos empoderando uma pessoa no seu eu. Como é que, como indivíduo, com este corpo, com a minha identidade, me coloco socialmente? Como é que me relaciono com as pessoas ao meu redor? Como é que juntos criamos um ecossistema de transformação ao nível da nossa comunidade, mas principalmente do nosso país, por exemplo?

É uma visão que começa muito micro, mas tem um potencial macro gigantesco. Particularmente, acho que, quanto mais as pessoas entenderem esse potencial do pequeno para o grande, do de dentro para fora, mais vamos conseguir gerar oportunidades, porque existe lugar para elas existirem. Mas como estamos muito enviesados num olhar muito único de como fazer as coisas, de como resolver os problemas, não conseguimos enxergar essas oportunidades. E há espaço para para muita coisa, muito boa, acontecer, e realmente vamos mudando o mundo cada vez mais.

Há também a questão das referências. Se ela conseguiu, eu também consigo…

Exato. Falo por mim. Tive uma grande sorte em ter uma mãe que já tinha essa consciência de me direcionar e a consciência social do contexto onde estava inserida. Porque senão, provavelmente, viraria mais uma estatística de evasão escolar ou subemprego, que é o que mais há. 

Olhamos para os subempregos e a maioria [das pessoas] são pessoas que vêm da minha realidade. Empregadas domésticas, no Brasil, o que mais há. São mulheres negras, que não têm acesso à educação e, consequentemente, os filhos também não. E assim, vai continuando.

Então, a minha mãe teve essa consciência de me direcionar para despertar esse potencial que tenho, assim como essas outras pessoas também têm. E hoje consigo olhar para ela e falar: Qual é a escolha que quero fazer? Onde quero estudar? Onde quero trabalhar? Ter as condições de acesso a lugares com base académica, que eu tive, e que faz toda a diferença. 

Mas muitas pessoas não têm essa referência! Dei esse exemplo, da minha mãe, mas, além disso, ela foi uma mulher negra que ainda assim, com as barreiras dela, correu atrás do mercado de trabalho, conseguiu colocar-se onde conseguiu. 

É lógico que hoje, já estou numa condição em que, com pouca idade – vou fazer 20 anos daqui a exatamente um mês – com 19 anos, já consegui alcançar coisas que a minha mãe está a começar a ter acesso agora. E quando tiver os meus filhos, naturalmente, vai ser muito mais rápido. E assim de geração em geração. Acho que essa é a nossa missão, como ser humano, sempre a evoluir. 

Mas ouvia a minha mãe a ler, a procurar trabalho… Tinha essa referência da minha mãe enquanto profissional, sempre houve essa conexão mais próxima. Claro que, conforme o tempo foi passando e me fui projetando em lugares diferentes, sentia muita falta dessas referências. 

Por exemplo, quando era pequena sempre quis ser médica, porque achava que era a única forma de mudar a vida das pessoas. Mas não via médicas negras. E não havia pessoas negras na medicina. Mas, na minha cabeça, dizia: “Não! Vou ser médica porque preciso descobrir a cura de tudo para salvar tudo do mundo. Vou para África…” Esse meu despertar social sempre foi muito importante, mas acabei por ir para a área de tecnologia, para fazer engenharia da computação. Vejo que é um mundo muito masculino, muito branco… totalmente discrepante da realidade.

Vejo o quão importante são essas referências de mulheres, principalmente mulheres negras. Tenho algumas referências, inclusive na empresa onde trabalho, que fazem toda a diferença no meu dia a dia, inclusive são grandes mentoras. E hoje consigo entender que, até as escolhas profissionais que comecei a fazer, foi porque olhei para o lado e falei: “Putz! Se ela conseguiu fazer e ela foi por aqui, deu certo, acho que vou tentar também.”

É engraçado porque é inconsciente. Fazemos o exercício do pescoço, que é do tipo, cheguei ao lugar, olhei para o lado… “Ah, tem alguém igual a mim!”Já há aquele sentimento de pertença, e isso faz muita diferença. 

Sou privilegiada por ter tido o apoio da minha mãe, que já está nesse contexto. Se isso faz um peso para mim, e vai continuar fazendo sempre, imagina para outras pessoas. Então também quero ser essa pessoa. [Quero] que as meninas, as mulheres, os jovens, a periferia em geral, olhem para mim e falem: “Poxa, se a Isa consegue, consigo um caminho similar…” Não para fazer a mesma coisa, mas se descobrir.

O sonho é, até 2030, trabalhar com meio milhão de jovens. Que balanço é que fazes até agora?

Na verdade, começámos em 2017 com um grupo de dez e depois foi-se potencializando. Hoje temos uma média de 120 jovens. Porque nos formalizámo, enquanto ONG, só no ano passado. Antes éramos um projeto social independente, que fazia tudo de coração. Só que o coração não paga as contas e tudo o que é preciso fazer para ter um resultado legal. 

Comecei a entender que precisavámos de nos formalizar enquanto entidade para podermos receber apoio de empresas, para podermos receber doações. No ano passado formalizamos o pedido. Agora estamos nesse primeiro momento de, realmente, colocar as coisas a funcionar nesse formato. A partir daí, é uma coisa que a minha mãe sempre me falou e, como realmente me vejo: com essa missão de ser uma cidadã do mundo, mas fazer com que outras pessoas o sejam também. 

Porque é que nesse trabalho colocamos [a meta] de meio milhão [de jovens] até 2030? Acho que dá. acho que dá mais! Não estou a falar só de São Paulo. Falo do Brasil, falo do Mundo.

Entendo que trabalhamos com uma causa, que o Brasil é o país mais latente dentro disso, é o país que tem mais população negra fora de África, mas ainda assim é o país mais racista do mundo. Não faz sentido, mas é essa a realidade. Vivemos num mundo de racismo. Enquanto não conseguirmos resolver o cerne do racismo e começarmos a promover oportunidades igualitárias, para que as pessoas se desenvolvam e cresçam, vamos continuar a barrar o desenvolvimento da democracia, o desenvolvimento socioeconómico, o desenvolvimento político. 

Acho que temos um potencial muito grande de transpor barreiras, mas volto ao mesmo: vejo-me como cidadã do mundo e o meu propósito é transformar a vida das pessoas, através da geração de oportunidades. Porque se você entende que consigo fazer isso, que está dando certo e é um propósito do coletivo, então há espaço para tal. Então acredito que o meio milhão vem aí. 

Tens conseguido o apoio de empresas e empreendedores, como gostarias, interessados em financiar este projeto?

Estamos a começar a entrar mais efetivamente nessa parte. Quando éramos um projeto social, já havia algumas empresas interessadas. Trabalho voluntário e tudo mais. Só que [a necessidade] transpôs essa parte do trabalho voluntário. O que precisamos agora é de apoio efetivo, principalmente no cenário económico, em que o mundo está, mas principalmente falando do Brasil, um cenário muito precário, onde as pessoas precisam de emprego e precisam de educação e desenvolvimento para conseguir empregos. 

É um cenário onde voltamos para o mapa da fome, coisa que não se via há muito tempo. Quando falamos com as empresas, é muito nesse sentido da urgência. Não é um trabalho de caridade, é uma ONG? Sim! É um projeto social, é uma instituição que visa o bem social, o bem-estar coletivo. Mas, sobretudo, é uma urgência e, infelizmente, quem deveria ter isso como prioridade – que são os políticos, as pessoas que tomam as decisões, ao nível mais complexo, corporativo, político – não está a ter. Então fazemos sempre essa urgência, porque, até falando de tecnologia, o mundo está muito acelerado. Os empregos que existem hoje não vão existir mais. E as pessoas da periferia não sabem sequer o que é isso.

Precisamos ser formadores de opinião e não repetidores de informação

Isabelle Cristina

Daí também a aposta na área, especificamente, da tecnologia?

Focamos muito em tecnologia, mas não para que a pessoa vá trabalhar em empresas de tecnologia. Mostramos como é que o mundo está a mudar, pela tecnologia, e elas é que vão decidir o caminho. Vou para o mercado financeiro? Vou para o empreendedorismo? Vou trabalhar com tecnologia? Vou para medicina? Não sei… Importante é saberem que a tecnologia está por trás disso. O nosso desenvolvimento é baseado nisso e, a partir daí, fazem o que elas acharem que devem fazer. 

Mas nessa parte empresarial, estamos a começar a ter mais apoios efetivos agora. Esta criação de um ecossistema de impacto… Porque, na minha visão,  para conseguir esse meio milhão de pessoas impactadas, precisamos de um ecossistema de pessoas e empresas que acreditem que estamos nesta construção para começar a escalar cada vez mais.

Como é que olhas hoje para a maneira como a sociedade brasileira encara o racismo e a desigualdade de oportunidades? 

Enquanto o mundo, mas, especificamente, o Brasil não entender que a raiz de todos os problemas que temos é o racismo, não vamos conseguir andar. É muito emblemático dizer isto, até porque estou aqui em Portugal e por toda esta discussão que estamos a ter aqui durante as conferências de acessibilidade na Culturgest.

No Brasil existe uma coisa muito ruim que se chama o mito da democracia racial. A narrativa usada afirma que, quando o Brasil foi descoberto pelos portugueses, existiu uma política de trazer imigrantes europeus para o Brasil, para tentar embranquecer a população, depois da abolição da escravatura. Existe também o mito de que, cada vez mais, as pessoas foram fruto dessas relações. [Elas] são chamadas de “pardos” – ou seja, quando os europeus se envolveram com africanos, negros, enfim, originaram os “pardos”. Existe esse mito de que foi uma relação saudável e que o racismo não existe porque estamos todos misturados. Há indígenas com brancos, com negros… Por isso existe esse mito de que somos todos iguais. É algo em que as pessoas realmente acreditam, mas não! 

Isso está no cerne das nossas relações. E é tão enraizado que a própria população negra reproduz isso inconscientemente e conscientemente também. Então, acho que precisamos ter ações afirmativas. Quando se fala de acesso à educação, por exemplo. Não passou muito tempo desde que as cotas raciais foram instituídas e, a partir disso, conseguimos ver uma grande mudança. 

Mas ainda assim, existem pessoas que discutem se faz sentido ou não. São discussões que precisamos de ter e que estão a ser trazidas à tona cada vez mais, mas precisamos de olhar para elas, da forma que devem ser olhadas, de uma forma estrutural. Como é que isso pode transformar estes mundos?

É o tema da conferência de amanhã [27 de outubro], como é que podemos transformar o nosso mundo, ou seja, o mundo ao nosso redor, tendo a consciência de onde partimos e para onde vamos. Falando da criação de oportunidades, existe muito esse mito da meritocracia. As pessoas, às vezes, olham para a minha história e falam: “Poxa, ’tá vendo. Se a Isabelle conseguiu, qualquer pessoa da realidade dela consegue…” Mas não é bem assim! Resumi a minha história aqui, mas tive vários percalços pelo meio, que não deveria ter tido e [ainda para mais] numa idade muito jovem. 

Por exemplo, quando consegui a bolsa no Colégio Bandeirantes – que foi aquilo que mudou a minha vida, ter estudado nesse colégio elitista – morava na periferia, mas tive de ir morar para o interior de São Paulo. Para me inscrever nessa bolsa de estudos no Colégio Bandeirantes, tive de mudar de casa. Mas assim muito rápido, senão ia perder o prazo de inscrição. Então, a minha mãe encontrou uma casa à frente de um ribeiro, sem saneamento básico, e fomos morar para lá durante alguns meses, sem nenhum móvel. Eram duas camas e um colchão. Eu dormia no colchão, a minha mãe dormia na madeira. Mas porque? Por causa de um comprovativo de endereço; para dizer, que morava em São Paulo. 

Todo o mundo achou que a minha mãe estava louca. Mas ela sabia o que estudar naquele colégio iria significar para mim. E foi o que aconteceu. Foi só entrar ali. A minha vida mudou da água para o vinho, e tenho a certeza de que a condição social de onde venho não vai voltar mais por causa das oportunidades que se abrem. Foram muitas coisas que foram feitas, que não tinham que ser feitas. Deveriam ter sido oferecidas, garantidas essencialmente. 

Deveria ser na escola pública…

Exato, deveria ser na escola pública! Na minha turma eram 22 estudantes, nesse colégio. Para se conseguir essas 22 vagas, os 22 competiram com quase 11 mil candidatos – pessoas da minha realidade – e ainda assim era a única menina negra. Dentro dessa população vulnerável, ainda tem várias camadas.

Conto essa história para mostrar que esse é o cerne, se não resolvemos o racismo, de uma forma… teria de ser estratégica, ser prioridade do governo.

Como é que posso mitigar o racismo e criar essas oportunidades de desenvolvimento? Já que o governo não faz, alguém tem que fazer… Vejo-me muito nesse papel. A minha missão, que vem das histórias das pessoas que são transformadas, é criar um ecossistema de impacto forte.

O que esperas das eleições, no Brasil, do próximo domingo (30 de outubro) e como é que as diferentes alternativas podem influenciar o futuro das pessoas negras?

No Brasil, estamos a viver um momento muito delicado. Estou extremamente tensa, para falar a verdade. Estou com uma angústia absurda, porque acho que estamos a viver num mundo… [que] é quase uma distopia.

Quando olhamos para o que o atual presidente não tem feito ao longo desses anos de mandato e ainda entendemos a possibilidade dele ser reeleito – porque tem muitas pessoas que o estão a apoiar – é muito assustador, e a população negra vai ser a mais afetada, como é sempre.

Fico muito preocupada, porque é justamente o momento em que temos de tomar a decisão de qual o rumo que o Brasil vai tomar. Pensando muito friamente, na minha visão, há dois lados. Há um que é a manutenção de privilégios de quem apoiou o atual presidente, e outro que é a mudança social. Não estou a dizer que são as melhores opções, mas dentro do cenário que temos hoje – Brasil, Lula, Bolsonaro – não tem como parar para pensar. 

Um presidente que nega a vida, é negacionista, menospreza o valor da ciência, ameaça as instituições democráticas e a democracia, e que fala isso claramente… Ele [Bolsonaro] não está a fingir nada! Está a falar claramente e já falava isso. Ele não deixou de cumprir o que disse e as pessoas ainda o apoiam, depois de tudo isso. Acho que é – digo até friamente –  um egoísmo muito grande. 

É ok pensarmos nos nossos interesses, mas até onde o meu interesse afeta o interesse coletivo do meu país, o desenvolvimento social de onde vivo, que inclusive me afeta também? Para mim não tem lógica.

Uma coisa que vejo muito no Brasil, infelizmente, pela falta de acesso à educação, são muitas populações marginalizadas. Existe muita manipulação, também há a questão religiosa, que está a ser muito confundida. Vejo que muitas pessoas estão a ser levadas pela manipulação, pela compra de votos. E principalmente pela falta de capacidade de ter uma compreensão mais ampla do cenário social. São manipuladas. É uma coisa de que falamos sempre no projeto: precisamos ser formadores de opinião e não repetidores de informação. Mas para isso é preciso ter conteúdo, para que as pessoas possam processar e, a partir daí, tirar suas próprias conclusões. 

O que está a acontecer no Brasil é um movimento massivo de alienação. As pessoas apoiam, mas não sabem o porquê, não sabem o projeto. Estou muito tensa por causa das eleições e, inclusive, vou voltar de Portugal, já em clima de eleições, para votar. Estou a torcer muito para que consigamos reverter e, a partir disso, garantir uma sociedade em que a democracia prevaleça em primeiro lugar.

Não é nem se gosto do fulano ou se não gosto. Quando ameaçam a democracia, não tem muito o que se possa discutir a partir disso. É preciso ter um presidente, um líder que garanta a democracia, que garanta o respeito aos diferentes poderes, que garanta a educação, que respeite a ciência e que incentive o desenvolvimento de todas as populações. 

O que espero é que isso se torne real. Se o cenário atual continuar – que acho que vai ser pior – a solução é realmente continuar nas ações, continuar com os projetos, para que não façam com que as pessoas vivam numa condição tão desumana (…), sem direito nenhum de comer, de ter uma garantia básica à educação. 

É nisso que precisamos de nos focar e estou a torcer para que dê certo. Mas, honestamente, estou extremamente apreensiva, porque é sobre mim, sobre as pessoas com quem convivo, sobre os jovens com quem trabalhamos, sobre muita coisa. Então é muito preocupante olhar para isso. 

Um movimento engraçado é que fruto disso muitos brasileiros que têm acesso à educação – privilegiados, claro – saem do Brasil para fugir dessa realidade. O que não quero é que isso seja uma alternativa para essas pessoas que poderiam ter ficado, por exemplo, para ajudar a construir um país melhor.

Mas precisamos de continuar a fazer este trabalho de comunicar, conversar, ensinar para que as coisas mudem. As pessoas precisam de começar a pensar e de ter análise crítica dos cenários, tanto para elas, como para a comunidade, como um todo.

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