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Jup do Bairro: “Quero voltar a sonhar e sonhar junto, sonhar coletivo”

Jup do Bairro | ©Isac Oliveira
Jup do Bairro | ©Isac Oliveira


Depois de um show emocionante no Lollapalooza Brasil, a cantora brasileira Jup do Bairro apresenta pela primeira vez fora do país o seu EP de estreia, Corpo Sem Juízo, com dois concertos em Portugal. Ao lado da produtora do disco, DJ BADSISTA, ela vai estar sábado no Pérola Negra, no Porto, e no Musicbox, em Lisboa, em duas noites que segundo Jup prometem não só a performance desse álbum como também um verdadeiro baile funk.

Esse é o primeiro projeto musical solo dela, mas a sua carreira multi artística já conta com mais de dez anos, incluindo diversos projetos, sendo muitos deles ao lado da amiga e parceira Linn da Quebrada – com quem subiu aos palcos por cerca de três anos e colaborou na criação do álbum Pajubá, lançado em 2017, e dividiu o programa de entrevistas TransMissão, no Canal Brasil. Assim como Linn, Jup parece transitar com facilidade entre o marginal e o mainstream, criando através de parcerias o espaço necessário para a sua arte florescer.

Com sete faixas de uma fusão musical que funde rap, hardcore, funk carioca e momentos solenes que se aproximam de uma prece, ou mais precisamente de um manifesto, Corpo Sem Juízo nos fala a partir do olhar de um corpo negro, trans, grande, periférico, cheio de uma potência que o faz transbordar qualquer limite que se tente impor ao seu redor. Ao mesmo tempo, quer saber sobre todos os corpos e o que fazemos com eles. Que não nos enganemos, Corpo Sem Juízo não busca a representatividade uniformizada que muitas vezes se espera de artistas como Jup, mas procura um cenário onde todas as  singularidades são possíveis. 

Vinda do Capão Redondo, na periferia da cidade de São Paulo, Jup carrega seu bairro no nome enquanto atravessa as margens que muitas vezes restringem o futuro de quem ali nasce. Com um jeito matreiro que só ela tem, Jup nos dá um vislumbre da sua juventude na região, que já foi conhecida nos anos noventa como parte do  “triângulo da morte”, devido ao índice de violência, na faixa “O Corre”: “Não, não foi tão ruim assim / Mas tinha uns porco planejando meu fim”. Como em todas as letras de Corpo Sem Juízo, conhecemos a complexidade do universo da artista que narra a própria história, pautando as dificuldades do passado sem deixar que definam o futuro. 

No refrão contundente de TRANSGRESSÃO (Parte II), repete “Me deixa voar, me deixa voar” e, de fato, ela parece dar voos cada vez mais altos. Em uma conversa com a BANTUMEN, Jup do Bairro conta um pouco mais sobre o disco e essa nova fase da sua carreira, além das expectativas para os shows em Portugal.

Corpo Sem Juízo foi seu primeiro single e ouvi em uma entrevista você comentando que escreveu essa letra quando era bem jovem. Letra essa que traz questões profundas sobre o corpo em um tom um pouco autobiográfico, posso dizer? E agora, você trouxe ela de volta para o seu primeiro EP, inclusive como faixa que dá nome ao disco. Como é voltar pra esse tema em momentos diferentes da sua trajetória: quando você escreveu a letra; depois quando lançou o single e agora quando trouxe ele pro título do seu EP? 

Acredito que as composições (e decomposições) de “CORPO SEM JUÍZO” sejam tão viscerais pra mim justamente por não serem um fim, mas uma trajetória. Esse single inicia uma jornada de autoconhecimento antes mesmo de virar música, poesia. Foi uma forma de eu conversar comigo mesma e entender o que estava acontecendo comigo para além das exclamações que impuseram sobre meu corpo; assim como o poema de Victoria Santa Cruz, “Me Gritaram Negra”, me gritaram negra, “feia”, “desviada”, “não pertencente”… E eu queria pertencer. Acredito que todo mundo quer pertencer a algo ou alguém, e foi aí que resolvi me sentir pertencente a mim mesma, transformo aquelas exclamações em interrogações e me pergunto: o que pode um corpo sem juízo? Um corpo tão grande que não cabe na régua judaico-cristã e não é vista como possibilidade de existência, até então, para as armadilhas do capitalismo. 

Eu não quero viver nesse paraíso que não foi pensado pra mim, para o meu corpo, eu não acredito nesse deus. Eu preciso acreditar na existência de um deus que também acredite na minha. Desde que venho me conhecendo e me reconhecendo, escrevo um lugar pra mim. E claro, nesse caminho abrir mão de músicas e lugares que já não me pertenciam mais, mas ser um corpo sem juízo é um exercício e é onde eu quero estar.

Jup, nesse seu exercício ao longo do álbum, e especificamente na letra da faixa O que pode um corpo sem juízo?, você faz uma coisa que não é só exaltar esses corpos marginalizados pela sociedade (de pessoas trans, negras, periféricas, femininas, gordas…), mas você propõe um imaginário sobre as possibilidades desses corpos, das suas potências.  Ao mesmo tempo, você convida quem te escuta pra esse auto questionamento também. Você acha que precisamos de mais espaço pra imaginação quando a gente propõe novas narrativas para a sociedade? Em contraponto ao discurso em que a gente fica só reagindo quando tem uma notícia de algo ruim que aconteceu?

Eu aprendi a imaginar o inimaginável, mas não é fácil. Um dia desses me perguntaram qual era o meu sonho e fiquei refletindo por minutos, sem resposta. A sociedade nos faz imediatistas, principalmente sob recortes femininos e marginalizados. “Precisamos fazer o hoje” e é muito comum pessoas vindas da periferia ouvirem de gerações anteriores que “amanhã a deus pertence”.  Essa esperança que nos faz tanto esperar. E me pergunto, quando foi que eu deixei de sonhar? Você que está lendo, qual é o seu sonho pra além de se manter viva? Eu quero ser um agente do presente, não necessariamente do hoje. Eu quero voltar a sonhar e sonhar junto, sonhar coletivo. Quero pensar no futuro como uma extensão do presente com reflexões do passado.

Ainda sobre esse tema, você é uma multi artista, muito talentosa e parece ter tanta consciência do seu corpo e das suas capacidades. Você sempre foi assim? Como foi pra você descobrir as suas próprias potências nesse corpo que você habita?  

Tudo começou como uma espécie de “terapia barata”, talvez eu tenha escrito a minha própria existência e ouso dizer que a Jup do Bairro inventou a Jup Lourenço Mata Pires. Eu tenho sede, eu tenho fome. Mas é uma outra sede, uma outra fome. Sou curiosa, mais arteira do que artista, confesso, e tenho muita vontade de conhecer tudo que ainda não conheci, aprender tudo que ainda não aprendi e com isso, criar tudo que ainda não criei.

Todo mundo quer pertencer a algo ou alguém, e foi aí que resolvi me sentir pertencente a mim mesma

Jup do Bairro

Já faz tempo que você sobe nos palcos e se apresentava ao lado da sua parceira artística Linn da Quebrada, mas agora é o seu voo solo. Ao mesmo tempo, você marca esse momento com mais parcerias, cantando ao lado da Deize Tigrona, Mulambo…e fez agora um show emocionante no Lollapalooza com uma banda e uma equipe majoritariamente composta de pessoas trans. Qual a importância pra você de fazer junto? Qual o lugar das parcerias na sua trajetória?

Os encontros me movem, me comovem. Preciso vislumbrar um corpo-coletivo, uma espécie de megazord, para criar. O atrito entre pessoas faz com que criemos uma terceira alternativa possível e isso se faz presente desde o começo da retomada da minha carreira a solo. Em 2019, lancei uma campanha de financiamento coletivo para a feitura do meu disco Corpo Sem Juízo e foi um ano caótico. Eleições, muita violência, nossos direitos sendo ceifados, a acessibilidade à cultura e lazer deixando de existir e uma guerra cultural estava estabelecida. E em meio a tudo isso questionei como conseguiria o dinheiro para criar e lançar esse disco. Aí que entra o corpo-coletivo. Eu precisei acreditar em pessoas e precisava que essas pessoas acreditassem em mim, no meu trabalho. Consegui bater a minha meta, comecei a produção do disco e em 2020 nos deparamos com a pandemia da COVID-19. Muitas pessoas me falaram pra aguardar esse lançamento pois poderia “flopar” ou que não teria tanto alcance. Tive medo mas lancei. Quanto você não se sente só, você geralmente vai com medo mesmo. Eu sou uma artista do presente, que sente tudo no agora. Faço exercícios para não caducar no ontem amanhã e quero sentir tudo o que eu puder sentir e canalizar em criatividade.

Falando sobre o Lollapalooza no Brasil, um dos maiores festivais que existe, seu show teve uma grande repercussão (foi lindo – Parabéns) e recebeu críticas muito positivas do público e da crítica. Como foi essa experiência? E como é pra você que já tem anos de carreira artística, e já era conhecida num circuito mais alternativo receber essa atenção do mainstream? E quais as camadas disso quando falamos da ocupação de um corpo marginalizado não só em um palco desses, mas no mercado musical?

Participar do Lollapalooza Brasil foi um desses sonhos que me foram ceifados, fiquei muito feliz e emocionada com o convite, mas ao mesmo tempo estava focada em fazer uma performance que fosse para além de mim e do meu ego artístico. Quis aproveitar esse espaço com responsabilidade e ir para além da representação da representatividade. Sei que a minha presença, a presença da minha banda majoritariamente preta e trans é a criação de imagem, principalmente por estarmos criando repertório para o mercado. Mas infelizmente somos um caso isolado e inédito. Quantas outras pessoas que se reconhecem em nós, desistiram de lutar por esses espaços pela dificuldade de ingresso ou simplesmente não enxergarem uma única possibilidade? Tentar viver de música no Brasil é quase uma utopia cansativa e melancólica. Quero que as pessoas sintam-se motivadas, minimamente, quando me veem saindo da periferia de São Paulo, Capão Redondo, para fazer o que eu sei fazer.

Sábado, você vai se apresentar no Porto e depois no domingo em Lisboa. O que você espera desses shows?

É a primeira vez que apresento Corpo Sem Juízo fora do Brasil. Estou muito ansiosa e empolgada, principalmente sendo em duas cidades que já me acolheram tão bem em projetos anteriores. Espero que todo mundo possa se divertir e vibrar comigo.

E o que é que o público pode esperar da sua apresentação?

Vou apresentar um verdadeiro Baile Punk Funk de Favela, acompanhada de ninguém menos que BADSISTA. Vou performar meu disco mas, como vai ser meu primeiro show solo, quero levar músicas anteriores e muito funk proibidão pra rebolarmos todo mundo.

Que delícia! E será que você vai ter um tempinho pra passear? Tem alguma coisa que você queira aproveitar pra fazer por aqui… algum lugar ou comida na sua lista de viagem?

Estou torcendo para conseguir dar um rolê! Tenho um carinho muito grande pela Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, que me recebeu muitíssimo bem algumas vezes. Aliás, na mesma rua (Rua da Barroca) tem um restaurante que provei o melhor Bacalhau com Natas, na minha humilde opinião. E claro que não posso ir embora sem comer uma Francesinha do Café Santiago.

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

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