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Mayra Andrade: “Não sou aquela pessoa que precisa da tristeza para criar”

Mayra Andrade
Mayra Andrade | Foto: LucasOwnView

Alguns momentos antes de conversarmos, Mayra Andrade disse que se atrasaria alguns minutos. Quando apareceu na câmera do Zoom, logo pediu desculpas pelo atraso – que não foi tão grande assim. A artista estava com uma camiseta estampada com diferentes tons de marrom [castanho] que combinam com o batom, a pele dela e também o abajur que está ao seu lado direito.

O ambiente está ornamentado com a moldura de uma grande fotografia de uma mulher de costas (provavelmente a própria Mayra) num lugar alto olhando a cidade que está no horizonte. Há também o livro fotográfico “Ever Young”, do ganense James Barnor.

Na conversa que tivemos por mais de 20 minutos, falámos sobre produção musical, criatividade, experiências musicais, conexões e a turnê que Mayra fará no Brasil. Serão oito shows em seis cidades diferentes, com início no dia 3 de setembro no Rock In Rio, no Rio de Janeiro, e término a 24 de setembro no MADA Festival, no Rio Grande do Norte (Estado na extremidade nordeste do país). 

Queria saber um pouco dessa sua conexão com os brasileiros, tanto com os artistas com que você fez parcerias, quanto com o público do Brasil.

É uma conexão que surge de parte a parte de uma forma muito orgânica. Existe uma identificação e reconhecimento mútuo de sonoridades, de temáticas, de um DNA até certo ponto. E, ao mesmo tempo, existe essa atração pela diferença porque, apesar de tudo, venho de outro lugar. São diferenças substanciais que se complementam.

Mas o que mais te atrai na música brasileira?

O que mais me atrai é a sua beleza e diversidade. É uma música que, na sua maior parte, é feita de emoção, que conta histórias, que toca as emoções mais profundas. E quando não é pelas palavras é pela harmonia, quando não é pela harmonia é pela melodia e quando não é pela melodia é pela batida. Então, é uma música que sempre serviu para mim de referência quando estava a formar-me como ser humano. Foi um farol interessante no horizonte.

Quais foram os artistas que você ouviu durante a sua formação musical?

Ouvi muito Caetano (Velozo), Djavan, Elis Regina, (Maria) Bethânia, Gilberto Gil, Vinícius, Tom Jobim… os clássicos. Tive a sorte de ter acesso a eles, mas também muita música popular que vinha através das novelas brasileiras que chegavam a Cabo Verde (na minha infância). Essas novelas contavam histórias bem peculiares… a gente conhece a realidade do nordeste, por exemplo, através de algumas novelas. E rola uma identificação também com Cabo Verde por causa do clima árido, essa dureza de vida, mas que faz pessoas muito resilientes e muito genuínas. Aí está a questão de se reconhecer. Você reconhece no outro algo muito parecido com você, mas também diferente. Por isso, soa aquela novidade. E isso sempre chamou muito a minha atenção quando eu era criança.

Nesse seu retorno ao Brasil, você vai passar por diversos lugares com culturas diferentes. Vai para o Rock In Rio, no Rio de Janeiro, depois vai para São Paulo, Distrito Federal, Belo Horizonte, Bahia, volta para o Rio e fecha a turnê no Festival MADA, no Rio Grande do Norte. Cada apresentação tem a sua particularidade ou todos os shows seguem o mesmo roteiro? 

Assim, tem um ‘tronco’ que é a estrutura do show. Depois a gente adapta. Para começar, nenhum show é igual ao outro. Então, se você faz um show num teatro com pessoas sentadas e [ourto] em um festival com todos em pé, já são dinâmicas diferentes, né!? E para isso você precisa ter músicos que te acompanhem nessa viagem. Ela tem sempre que ser o retrato de um instante, mesmo quando você está repetindo um repertório, porque está defendendo um projeto. Só que vai haver algumas mudanças porque nem todos os shows vão ter a mesma duração, uns mais longos outros mais curtos. E tem uma parte do show que é nova para mim, porque vai ter músicas de projetos dos quais eu participei, mas que nunca cantei e integrei no meu show. Então, também vou ter algumas novidades para mim (risadas).

Com as suas várias experiências musicais, sem um único padrão e que se encaixa em vários ambientes. Como você define o seu estilo musical?

Eu bebo de uma raiz cabo-verdiana, que é a minha identidade, essa raiz não necessariamente significa que é a tradicional, porque embora eu venha da música tradicional, uma identidade pode ser reinventada um milhão de vezes e estar na modernidade também. Isso não faz dela algo menos cabo-verdiano. Então estou nesse espectro um pouco amplo, que vai da tradição à modernidade, a uma sonoridade também mais pessoal e estou bem conectada com a contemporaneidade do mundo. É um som afro contemporâneo, que bebe de coisas diferentes. (…) É mais interessante para mim ouvir como é que pessoas diferentes definem o meu som, como é que esse som ecoa em cada pessoa do que eu ficar a tentar definir uma coisa que é híbrida para mim e que está em constante movimento.

É uma transformação, né!? Cada disco ou participação que você faz traz nuances diferentes. Consegue se encaixar na proposta de cada trabalho. Isso acontece de que forma?

Eu nunca aceito fazer uma colaboração que não tenha provocado um eco. Eu às vezes até quero, mas não consigo porque a proposta não abriu alguma coisa em mim. É como uma chave secreta que encaixa e provoca uma vontade de movimento. Gosto de desafios, de propostas que me tirem da zona de conforto. Acho que a minha voz se presta para coisas muito distintas e que ela se encaixa bem em sonoridades menos óbvias. Às vezes o desafio é exatamente você pousar a sua voz num ambiente diferente, quase hostil e criar uma alquimia nova. Não é uma coisa de ‘como é que eu me adapto’, é o que fez sentido para mim naquele momento. Sentir que posso acrescentar alguma coisa à música com a minha voz, com a minha personalidade ou com a minha escrita. Às vezes a música é linda, maravilhosa, você até quer fazer alguma coisa com aquele artista, mas você sente que não vai somar nada ali. Então, você não faz.

Se dependesse da compreensão do nosso idioma, não teríamos carreira

Mayra Andrade

De que forma nascem as suas composições, até mesmo nesse processo de troca com outros artistas? Isso flui naturalmente ou tem aquela rotina de trabalho?

Cara, vou te dizer: aquele ‘negócio’ que flui naturalmente (que cai do céu) aconteceu algumas vezes, mas foram poucas. Geralmente, as melodias são coisas que vêm muito naturalmente para mim. É uma coisa mais intuitiva. Às vezes, tento escutar o que a melodia está contando, qual é a história que ela ’tá contando. Muitas vezes nem sei o que ela está tentando dizer. São processos longos, esforçados, muito embora, graças a Deus, quando você senta e pega geralmente vem uma coisa interessante. Mas na maioria das vezes é uma deadline que te obriga a falar: bom, agora é um corpo a corpo, eu e você, você e eu. Alguma coisa vai ter que nascer. Eu não vou te falar que tenho uma rotina de escrita cotidiana. Não tenho, gostaria de ter, mas ainda não consegui chegar nesse nível de disciplina. E às vezes você pode estar aqui olhando pra parede e nascer uma música, música e letra tudo junto… Já teve músicas que nasceram como (perdoe a expressão) um vômito emocional. De você precisar furar um abcesso e botar para fora para conseguir dar o passo seguinte. Essas são músicas que nascem de urgência. Cada processo é um processo. Cada caso é um caso.

Os momentos mais complexos e difíceis da vida são os que mais inspiram?

Acho que a gente aprendeu a falar mais facilmente da tristeza do que da felicidade. Parece que existem mais recursos estéticos, há mais palavras e elas soam melhor quando a gente fala de um coração partido, uma tristeza. Eu não vou negar essa realidade, mas não sou aquela pessoa que precisa da tristeza para criar. Tenho colegas que são ‘deprê dependentes’ para poder criar arte. Eu não curto muito. Abraço a tristeza porque depois dela, geralmente, vem a alegria, porém não faço culto dela para criar. Gosto de ter a energia de uma coisa vital, de uma coisa para cima e ver o que nasce dali.  Até no Manga é assim. É um disco bem solar. Fala de coisas tristes, mas fala de coisas alegres, sensuais, histórias, da minha origem. Então, não é só tristeza.

A tristeza faz parte da vida, mas não é o todo…

Acho que não deve ser o motor de tudo, porque senão complica. A gente vive para ser feliz. Não devemos esquecer que a vida é um presente e a gente veio para sermos felizes. Se conseguirmos ser mais felizes do que tristes, a missão estará concluída com sucesso.

A arte gera essa felicidade e nos leva para outros caminhos, outras viagens. Tira a gente daquele momento ruim e tem o poder de conectar as pessoas. E falando da nossa língua portuguesa, como é que se faz essa conexão com públicos de lugares que não têm o português como língua principal? Muitos artistas brasileiros acreditam que a língua é uma  das grandes barreiras que os impedem de entrar em mercados internacionais.

Eu venho de um país que tem meio milhão de habitantes. Cabo Verde tem 500 mil habitantes, e um milhão na diáspora. Então, isso forma um total de pouquíssimas pessoas no planeta que entendem o que eu digo quando eu canto em crioulo cabo-verdiano, que é a maioria do meu repertório. O que eu estou querendo dizer é que se dependesse da compreensão do nosso idioma, não teríamos carreira. Não faríamos música fora de Cabo Verde e olha que o meu país é um pontinho [um grão de areia no oceano]. Nem podemos dizer que temos um mercado. O cabo-verdiano sabe que para viver da sua arte, ele tem que ir à conquista do mundo. Já faz parte do nosso programa, do nosso condicionamento. Então, a gente não pode deixar que o idioma seja uma barreira. Quando dizemos que a música é uma linguagem universal, temos que colocar isso em prática. E o que é universal? É o coração, o sentimento… Você pode estar contando uma história e hoje tem mil formas de você disponibilizar a tradução de uma letra, porque acho que é muito importante para quem quer ter acesso às histórias. Através disso tem muito aprendizado, muita troca. Felizmente, a emoção, o sentimento prevalecem. É por isso que eu posso fazer um show em Tóquio, outro na Arábia Saudita, África do Sul, outro no Brasil e as pessoas chorarem. Pronto! Estão chorando por quê? Pode ser que alguma coisa tenha dado espaço para a própria história da pessoa se manifestar, a sua própria herança e isso já é um ganho.

O seu último disco, Manga, é de 2019. Já possui outro projeto no radar?

Estou trabalhando mas sem uma data, sem um compromisso de lançamento. Estou vivendo uma fase interessante da minha vida e querendo aprender algumas coisas e também contá-las. Tem muita coisa que fiz e escrevi nos últimos dois anos, que ainda não lancei e me questiono um pouco se quero lançar. Sei lá, ’tá um processo interessante e tem coisas bem legais já criadas e não partilhadas. Mas, por agora, estou muito feliz de apresentar o Manga no Brasil, porque, embora tenha saído há um tempo aqui, eu sei que é um disco que foi muito acolhido aí (muito embora não tenha apresentado nenhum show). E acho que merece esse momento com o público brasileiro e os brasileiros merecem esse momento com a gente também, para vivermos essas músicas juntos.

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