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Os “ismos” e os sismos da poeta Alice Sousa

Alice Neto | ©André Ferreiro
Alice Neto | ©André Ferreiro

Alice Neto de Sousa viu o seu poema “Terra” dar título à coletânea “Do que ainda nos sobra da guerra”, publicado no Brasil em 2021, pela Editora Ipêamerelo e declamou, pela primeira vez, na 1ª edição da PowerList 100 da BANTUMEN, “Poeta”, o poema que tem conquistado mentes nas redes sociais.

Resgatámo-la do turbilhão mediático de que é protagonista e em conversa com a BANTUMEN, chegou à superfície a questão do ser-se poeta, a gerência das suas emoções, a escrita às prostitutas do metro de Martim Moniz, “os ismos e os sismos” que a inquietam, a inspiração numa gota de chuva bem caída, Mágoas de Florbela Espanca, entre outros assuntos.

Alice Neto de Sousa é poeta e não poetisa. Sente-se mais confortável que a denominem assim, porque frisa que o termo poetisa, historicamente, é usado de uma forma pejorativa. 

Além de ser poeta, tem outros ofícios. Quando não está a escrever ou declamar poemas, está a trabalhar: “quem me dera a mim viver apenas da poesia, mas eu tenho sido poeta entre outros ofícios desde sempre”.

A poeta portuguesa com raízes angolanas diz ter três “Ps” que mais a definem: “Pessoa, Poeta e Psicomotricista.”

Já quis ser muita coisa. Jornalista, contabilista, mas acabou por seguir Ciências e Tecnologias, porque gostava das áreas da educação e da saúde e “pronto, era boa aluna, pode-se dizer”. Segundo a Poeta, a indecisão da altura deve-o aos 18 anos, idade em que não se sabe bem o que se quer e em que, no entanto, é-se obrigado a traçar um futuro longínquo. 

Licenciada e mestre em Reabilitação Psicomotora, Alice conta que a  psicomotricidade foi uma descoberta “muito mais instrumental, menos romântica”. Bastante curiosa, tinha vontade de entender a ligação entre a psicomotricidade e a psique.

Enveredar nessa área foi o que de melhor poderia acontecer-lhe, embora sinta um certo desafio pelas raras oportunidades que vai encontrando no mercado de trabalho. No entanto, profere com ênfase que seria uma pessoa diferente se estivesse numa outra área. Mais ainda, a reflexão vai até à união de dois pólos da sua vida: “Acho que a psicomotricidade obrigou-me – obrigar não é bem a palavra, mas levou a que tivesse mais consciência daquilo que também é a minha emoção, o meu sentimento e faz de mim melhor poeta, sem qualquer dúvida. Por isso, daí os meus três Ps: Pessoa, Poeta e Psicomotricista.”

A alma de poeta esteve sempre presente em si. Quando era criança, conta-nos que não via muito bem. “Não por o mundo estar mal, mas porque eu realmente sempre precisei de usar óculos.” Recorda-se que tinha de ir ao encontro de outros estímulos, algo que lhe permitisse reconhecer as pessoas. Uma condição que faz parte do seu lado Poeta, pois o usufruto foi a invenção das suas “idiossincrasias e isso também está ligada à poesia.”

Viveu, relembra, no mundo da fantasia e não é, sublinha, por chamar-se Alice. É, segundo a poeta, uma forma de olhar o mundo e ressalta que quando se é criança, é-se muito maleável e a capacidade criativa é “inacreditável”.  

Agora, aos 28 anos, acredita que essa imaginação genuína de criança é subvertida pela alienação do mundo adulto e capitalista: “ A nossa criatividade é muitas vezes castrada em vários momentos da nossa vida adulta e por isso é que nos sentimos mais inibidos em mostrar o nosso lado criativo e claramente nem tudo o que faço é altamente poético, principalmente, porque a sociedade requer de mim algum lado mais mecânico.” 

Isso é um esforço diário para conjugar a vida artística, que salienta que é real, com a vida real, no sentido de “que é dura. Temos uma renda para pagar, temos luz para pagar…”

É da vida real e de uma das suas frequentes idas à capital portuguesa que a artista nos conta a génese do seu novo trabalho, escrever às prostitutas do metro do Martim Moniz, uma realidade subvertida pela distância geográfica e pelo receio de olhar. “Ser-se poeta é conseguirmos também realmente perceber o que é que está à nossa volta e tomar consciência do que está a acontecer, ao invés de ignorar.”

Mas acho que a parte deste poema de identificação é que temos todos muitas dores comuns e não falamos sobre elas, não é?   

Alice Sousa

Ganhou coragem e um dia olhou para uma prostituta no metro. “Olhei… nunca mais me saiu o olhar, porque eu não vi nada naquele olhar. Não vi nada. Tu, às vezes, olhas para a pessoa…  Não dizem que os olhos são o espelho da alma? Eu não vi nada, mas, se calhar, era o meu espelho…” 

O primeiro poema dedicado às prostitutas do Martim Moniz chama-se “Capital”, mas é ainda incerto se este será o nome final. 

É um dos poemas, quando vai a palco, que melhor é recebido, diz a artista. O “Poeta”  foi o poema que mais notoriedade lhe garantiu, no entanto, “na realidade, o meu primeiro poema de estreia, assim em grande, foi às prostitutas do metro do Martim Moniz.”

Nada na sua poesia sai para breve. Diz que a demora é uma das características do seu processo de criação. Não sabe se são resquícios dos tempos da faculdade mas a Poeta diz escrever melhor numa moderada pressão. Em relação ao processo criativo da sua obra mais recente, declamada na primeira edição da PowerList das 100 Personalidades Negras Mais Influentes da Lusofonia, tem conquistado as pessoas.

“A parte do escrever foi uma coisa muito ansiosa”, recorda. Por norma, sente-se mais confortável a escrever poemas curtos. “Poeta” foi um poema que a fez sair um pouco da sua zona de conforto, tanto pela sua extensão como pela sua temática. Sentiu que a sua voz era precisa e que ficou muito tempo em silêncio. 

A reflexão que quis passar é que as verdades quando são tão cruas podem ser difíceis de mastigar e que “há coisas que nos doem de uma forma tão grande que não queremos falar.”

“Mas acho que a parte deste poema de identificação é que temos todos muitas dores comuns e não falamos sobre elas, não é?   

Soltou o seu grito. “Não tem a ver com ser pessoa negra, como pessoa, vi muitas coisas que me tocaram, que me inquietaram e estes sismos ismos inquietaram-me…”

“Fui poeta no sentido em que procurei transformar aquilo que estava a sentir em algo mais digerível para as pessoas. A questão é: podemos ter medo, mas o silêncio – vou citar o Martin Luther King,  péssimo”, ri-se. “O silêncio dos bons é péssimo”, continua. 

“Vasculhei muito pouco isso [do racismo] e durante este ano no Bem-vindos tem sido uma aprendizagem, porque tenho falado de tantos temas que tenho mantido de alguma forma camuflada.”

Como a autocrítica na questão do ser-se poeta, Alice pergunta-se a si mesma: “Afinal de conta ser poeta é falar de emoções, mas bem podia citar Luís de Camões sem citar um poeta preto”, não é ? Ou seja, quero falar sobre as minhas emoções, mas sobre este tema não falo, não é? Não é bem assim. O poema é uma reflexão gigante e uma reflexão enorme sobre mim mesma e sobre vários clichés.”

Alice Sousa nasceu e cresceu em Portugal. Nunca esteve em Angola, mas anseia de um dia poder lá ir. Clichés sempre estiveram atrelados às suas vivências, como o falar bem português ou o saber dançar Kizomba, exemplifica. “As pessoas têm que perceber que agora somos todos muito híbridos, quer queiram quer não.”

Longe de rótulos, o único que a representa é ‘poeta’. Como diz, os seus poemas são díspares e não quer criar nenhuma expectativa de que agora vai fazer “poesia só interventiva. Não é real. Eu escrevo sobre as minhas inquietações, tenho várias inquietações.” No entanto, o que a inquietou foram, prossegue, “estes ismos e estes sismos e daí surge o poema “Poeta” e que fico muito contente de ter ido por aí, principalmente neste registo mais de slam que não é sempre o meu registo, mas num registo mais de poesia para ser dita, não tanto para ser no papel.”

Posso sentir e ter essas emoções tão fortes e estar aqui e, ao invés de deixar que elas me consumam, posso libertá-las, transbordar em versos e a Florbela Espanca faz isso de uma forma brilhante, para mim, porque foi a primeira pessoa que li

Alice Sousa

Tudo inspira Alice, as experiências, “o cair da gota de uma chuva – se cair no sítio certo”. Na literatura, como diz, hão de existir muitos outros poetas que lhe serão referência e que a poderão ajudar a melhorar a sua escrita. Dos que já estão nas suas referências bibliográficas, destaca-se, “naturalmente”, Florbela Espanca. A primeira obra poética editada da autora, O Livro de Mágoas, leu-a, releu-a e sabe vários sonetos de cor. O livro, que centra-se nos temas de mágoa, dor e saudade, faz Alice recuar no tempo, na infância e no momento em que a poesia invadiu a sua vida. 

Considera que viveu, ou pelo menos, sentia tudo de uma forma “demasiado intensa”, sentimento que se mantém na sua vida adulta. Recorda-se de que quando criança naturalmente não sabia como gerir tantas emoções. Era fechada sobre si e com a poesia a antese aconteceu. “Posso sentir e ter essas emoções tão fortes e estar aqui e, ao invés de deixar que elas me consumam, posso libertá-las, transbordar em versos e a Florbela Espanca faz isso de uma forma brilhante, para mim, porque foi a primeira poeta com que me identifiquei.”

Um autor mais contemporâneo que admira é Mia Couto. Confessa que só começou a folhear os livros do autor moçambicano já na idade adulta. Começou a aperceber-se que a poesia era o sentir, a emoção e que era “muito também as palavras que não escolhemos, porque as palavras têm sabores.” É uma noção que encontra nas palavras de Mia Couto, no primeiro livro que leu do autor, Jesusalém. “Cada frase, poesia pura”, elogia. 

Inusitadamente, quando leu Mia Couto , pela primeira vez, deparou-se com a semelhança da escrita do autor com a sua: “Está a imitar-me, é assim que eu escrevo. Claro que, pronto, eu na minha bolha intelectual”, ri-se. 

A propósito desse episódio hilário, Alice faz menção ao seu antigo professor da faculdade, Gonçalo M Tavares, que disse “quem nunca viu, quem nunca leu muito, quem nunca fez muito pensa que tudo o que está a fazer é inédito. Muitas coisas que nós estamos a fazer não são inéditas.”

Para as suas futuras referências, tal como a poeta Raquel Lima que admira, Alice Sousa pretende mudar um pouco as “cores da sua biblioteca” [frase da autora Gisela Casimiro e que reteve]. Quer navegar mais no mundo literário. “Estou abertamente a fazê-lo, cada vez que vou ao programa ‘Bem-Vindos’, isso é algo que também tenho em mim e quero explorar e quero mesmo conhecer o que é que nós [afrodescendentes] também escrevemos e dar valor a isso e também inspirar-me por aí.”

Este ano pretende assumir o papel de poeta que escreve, quer pesquisar mais sobre spoken Word poetry, spoken Word (palavra para ser dita) e investir nisso. Simultaneamente, quer “continuar a pensar poesia, refletir, partilhá-la, dizê-la e declamá-la.” Num futuro próximo, não descarta a possibilidade de “investir seriamente em começar a escrever para publicar.” 

“Porque a poesia vem de todos os corpos, a poesia não tem cor ou tem todas as cores.” 

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Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

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