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Netflix quer apropriar-se da cultura angolana? Sílvio Nascimento explica.

No fim do mês de agosto, a imprensa norte-americana revelou que a Netflix está a preparar uma série-documentário que vai trazer à luz do dia as histórias de rainhas africanas. A angolana Nzinga Mbande (também conhecida com as grafias Ginga e Njinga) e a egípcia Cleopatra vão ser os primeiros destaques deste formato, que terá apresentação e produção de Jada Pinket Smith.

Dar a conhecer, a uma audiência global, o percurso de uma das mulheres mais importantes da História de Angola na luta contra o colonialismo português poderia ser ser motivo de orgulho nacional, mas a reação do público não foi a esperada.

Sílvio Nascimento, um dos nomes mais populares da atualidade da indústria cinematográfica angolana, criou um abaixo-assinado online, onde contesta a falta de consideração da gigante do streaming pela cultura do seu país natal e a “usurpação cultural para benefício próprio”.

No documento disponível na plataforma Change.org, e que podes consultar aqui, Sílvio explica que, em 2013, a produtora Semba Comunicação levou à Netflix o filme e a série Njinga Rainha de Angola, mas a empresa norte-americana terá dito que, na altura, não teriam interesse no conteúdo produzido pelos PALOP.

Há cerca de três semanas, numa segunda tentativa de negociar com a empresa a exibição de produções angolanas e do universo cinematográfico da lusofonia africana em geral, a posição da Netflix manteve-se imutável.

“Em Angola fizemos um filme em 2012, com o qual vencemos vários prémios, como a Lesliana Pereira que ganhou um prémio da Academia Africana de Cinema, e virou material de estudo numa universidade brasileira. Quando fomos ao Panafricano, que é um festival do Danny Glover, que é um festival que dá abertura para os Óscares, o filme foi aplaudido e questionaram porque não estava a ser distribuído na Netflix. Levámos o filme à Netflix e eles disseram que não têm interesse no conteúdo e na produção PALOP. Até aí, tudo bem. Há três semanas atrás fizemos uma reunião em Durban, África do Sul, e a posição foi a mesma. Disseram-nos para não esperarmos por eles porque não pensam nisso [distribuir conteúdo produzido nos PALOP] para agora. Espanta-nos umas semanas depois vermos que há uma notícia da Jada Pinket Smith que vai produzir um documentário sobre a rainha Njinga. Nós ficámos completamente felizes com isso. A petição acontece no sentido de pedir: ‘vocês não querem conteúdo africano, tudo bem, mas nós já temos esse produto que pode permitir trabalharem com historiadores angolanos ou trazer alguma vantagem para Angola, como produzir no nosso espaço geográfico’. Não podem fazer tudo sempre sem nós. Não custa incluir. Se a grande ideia nos dias de hoje é o empoderamento africano, potencializem então aquele povo com quem não estão a trabalhar porque eles não têm o poder financeiro para produzir com os vossos estandartes. Porque é nosso. A história é do nosso país. A questão não é do nível legal, é uma questão de moral e de ética”, afirmou o ator e produtor.

Sílvio refletiu ainda sobre a necessidade dos próprios governos dos países lusófonos de língua portuguesa olharem para a forma como as suas próprias indústrias são desdenhadas no panorama internacional. “É por isso que não estamos a evoluir, porque [os governos] não financiam o nacional e o nacional tem de ir pedir sempre uma esmola aos outros”, declarou.

Questionado sobre o facto de a petição ser precipitada, uma vez que ainda não foram revelados os detalhes do casting ou dos intervenientes na produção, além de Jada Pinket Smith, Sílvio respondeu: “Por um lado posso estar a sofrer por antecipação mas somos negros e sabemos que a maioria das vezes eles fazem a festa sobre nós mas sem nós”.

A questão em causa, ainda de acordo com o ator, não é a qualidade entregue pelos profissionais PALOP. “Do que eu vejo na Netflix, nós não estamos a dever nada a ninguém. Agora, ficamos a dever por outras coisas. Como por exemplo criar um enredo que possa agradar a todos [a nível internacional]. Não temos tido filmes de grandes orçamentos, porque não temos financiamento. Mas se nos derem dez milhões de dólares, nós vamos criar conteúdo que valha dez milhões de dólares”.

Sobre o investimento nacional e a importância que o próprio governo dá a este sector cultural, Sílvio é categórico quando à necessidade de começar a diversificar e alavancar financeiramente a indústria cinematográfica, através do desenvolvimento também do sistema financeiro, que ainda é demasiado débil. Em Angola, os pagamentos online só são possíveis via referência multibanco, sendo que empresas estrangeiras, como Netflix ou Spotify, não têm opções de pagamento para quem estiver no país e não tiver opções internacionais de pagamento.

“Nós já estamos fora de certas formas de atuação existentes no resto do mundo, devido ao nosso sistema financeiro, e isto é uma mensagem para o nosso governo. Esta conversa não pode ficar para sempre na gaveta.”

Sílvio Nascimento teve presença assídua nos últimos anos em produções portuguesas, sobretudo telenovelas de horário nobre transmitidas pela TVI e foi durante algum tempo um dos apresentadores do programa Bem-Vindos RTP África. Agora, de regresso a Angola, o ator quer ajudar a elevar as produções feitas em Angola.

“O meu sonho não é Hollywood. É Angolywood. Se eu for para Hollywood serei só mais um. Mas se aqui em Angola eu e mais mil Sílvios agirem de forma a criar um sistema de produção de conteúdos nacionais e atrair investimentos públicos e privados, nacionais e internacionais, vamos conseguir provar que conseguimos produzir produto de qualidade. E em cinco ou seis anos conseguiremos criar um mercado e uma indústria onde podemos falar das nossas histórias e da nossa realidade e levá-las para fora também. Aí, não vamos mais ser dependentes de ninguém. Portanto, regressei para Angola para investir no cinema e produção. Já temos a empresa e a plataforma Tellas, para permitir que as crianças, antes de sonharem com Hollywood, sonhem em trabalhar na terra delas. E só assim Hollywood poderá respeitar-me, enquanto artista que foi representar o seu país e não como mais um que está lá a ir pedir alguma coisa”, declarou à BANTUMEN.

O ator dá ainda o exemplo de Ar Condicionado. “É o filme angolano mais visto atualmente pelo mundo no circuito independente, do Fradique, que já venceu prémios desde a China até Nicarágua. É um pessoal que se formou fora e que voltou para a banda para apoiar e para onde eu também vou-me virar para que a conversa daqui a cinco ou sete anos seja diferente.”

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