Angola entrou em 2020 numa grave crise económica, que acirrou uma tensão social palpável. Em março do mesmo ano, essa crise foi agravada pela pandemia de covid-19, que empurrou a população mais desfavorecida para o limite da sobrevivência. Falámos com Ready Neutro, um dos rappers e empreendedores por trás da produtora Yebba, sobre este estrangulamento económico vivido pelos angolanos; como a covid afectou e continua a afectar a indústria cultural e quais as suas perspetivas de escapatória dessa encruzilhada social, política e económica.
Com a efetivação das medidas de restrição social de combate à covid-19, tal como aconteceu um pouco por todo o mundo, Angola viu as suas salas de espetáculos, bares, restaurantes, discotecas e clubs noturnos fecharem. Como diz Neutro, “Angola é um mercado de festas. Não há concertos, é um ou outro” e com as restrições, acabou por se asfixiar a liberdade financeira dos artistas. “É um momento dificílimo para os artistas angolanos em particular”. Contudo, é preciso também reforçar que a pandemia “ensinou as pessoas a criar meios alternativos de subsistência”.
E se a covid é responsável por metade desse asfixiamento, a culpa dos restantes 50% advém da falta de organização das estruturas culturais do país. “A economia mundial está a sangrar e acaba por escorrer mais sangue nos países onde não existe um painel de cultura. Nós não temos indústria, não temos mercado. Eu costumo chamar a isto de uma praça, onde cada um põe a sua banca e faz acontecer. É uma desordem. Seguindo essa linha de pensamento e o estado atual do mundo, é tudo mais difícil num país onde não há indústria, onde não há mercado. É claro que, em termos de abundância, os mais vivos em termos de educação financeira, com alguma visão, conseguiram manter alguns negócios mas a maioria da população é desinformada financeiramente”.
Apesar de não se incluir no lote dos visionários que conseguiram antecipar a crise, Ready explica que foi compreendendo os sinais do tempo. “Não vou dizer que sou mais vivo, mas também não estou à sombra da bananeira. Sou empreendedor desde que me conheço. Tenho 34 anos e nunca trabalhei com nada além da Yebba”, explica o rapper. E se, na altura, recebia muitas criticas da mãe porque Neutro não tinha um emprego convencional, hoje, a progenitora entende a componente de negócios que o filho viu na música.
O artista explica: “Não estou no mundo a gerar dívidas. Consigo gerar emprego. Não tem sido fácil, mas tenho o privilégio de conhecer outras pessoas que são peritas nesta matéria do empreendedorismo. Uma delas é o meu sócio Balduíno Fio, que me fez ver a vida de outros ângulos. Eu sempre empreendi, mas de forma empírica. Hoje em dia tenho mais organização e mais sapiência e as coisas têm corrido muito bem.”
“Quando Deus te dá um poder, de fama ou de algo grandioso, não é para você se lambuzar sozinho”
Para sustentar a sua visão, o artista sublinhou por exemplo o facto de a Yebba estar agora também no ramo da literatura, com a abertura de uma livraria, que faz muito mais do que vender livros. “Temos agora a Livros.com, quem é um selo cultural recreativo privado. Temos uma biblioteca, epsaço de co-working, salas de reuniões, áreas de leitura para alunos estudarem, é uma casa de cultura e nós estamos aqui abertos para novos empreendedores e para os mais antigos também. É uma casa de soluções, estamos aqui para ensinar mas também para aprender.”
E para quem pensa que o facto de ser artista ativa todos os “facilitismos” para empreender e gerar rendimento, desengane-se. “Gajos como eu, que têm discursos contestatários, não têm tantas coisas de mão beijada. Vamos tendo de contornar as muralhas. Não estamos aqui para gastar vida, estamos aqui para impactar a vida da sociedade e por melhor que sejamos, somos melhores juntos”, explica.
Ready Neutro acredita realmente que, para mudar o rumo político e social angolano atual, é necessário expor, debater e procurar soluções, juntos enquanto uma sociedade única, sem separatismos por estatutos sociais.
“A partir do momento em que ficas impávido ao sofrimento de quem está próximo de ti, é desumano. Sou assim desde que me conheço. Eu poderia viver com o meu pai e teria carros, teria tudo mas sempre preferi viver na minha mãe, onde tinha mais liberdade. Consegui ter mais ligação com os meus próximos, com os meus vizinhos e nunca consegui ficar alheio a isso. Não sou ativista nem revolucionário, sou apenas um cidadão ativo. Estou a exercer o meu exercício de cidadania, agora de forma mais plena porque o tempo vai passando e o processo de maturação é contínuo. E o que estou a deixar para os meus filhos? Será que eles querem um pai cobarde? Eu nasci aqui no Rangel onde não tinha energia e o pai fica a sofrer calado? Não.”
“Os mais velhos têm de ser mais flexíveis, porque a forma como estão a conduzir o barco não é boa”
Ready Neutro salienta também a inércia de alguns dos membros da classe artística, que acabam por ter um papel preponderante na sociedade. “Têm contribuído sim para a cegueira da maioria. Ninguém é obrigado a nada mas os artistas são dos maiores influenciadores de uma sociedade. O nosso silêncio ajuda a compactuar com o sofrimento dos outros. Não sou do partido A ou partido B, mas preciso de um partido que me mostre um plano de governação eficaz. Eu quero que mais jovens no Rangel atinjam a autosuficiência e a minha luta é incessante. Eu luto diariamente em prol do bem comum, gerando empregos e em prol da minha família. Além de que, quando Deus te dá um poder, de fama ou de algo grandioso, não é para você se lambuzar sozinho. É para você impactar positivamente a vida de quem te rodeia. Eu acho que é essa leitura que falta no seio dos angolanos. Falta um pouco mais de envolvência, de empatia.”
O rapper continua a apontar o dedo aos artistas que fecham os olhos às dificuldades que a maioria dos angolanos está a enfrentar, referindo que quem está no poder tem a obrigação de tirar o país da deriva. “Deve sim haver uma maior influência de pessoas socialmente expostas. E os mais velhos têm de ser mais flexíveis, porque a forma como estão a conduzir o barco não é boa. Nós estamos há 45 anos no desgoverno. Nós não somos contra o MPLA, estamos é contra as atuais políticas de governação. Foi-nos vendido um sonho. Aliás, foi vendido nos mais leigos. Precisamos de um novo gatuno, porque quem lá está não consegue trazer a ordem, a paz e estabilidade de forma plena no seio da sociedade. As coisas vão de mal a pior. Eu preciso de um gatuno novo para experenciar outras coisas”, lamenta Ready Neutro, acrescentado que, em Angola, está-se a “discutir [como lidar com o] lixo enquanto outros países estão a comprar lixo para gerar energia” ou a discutir a falta de água, quando o país tem uma das maiores concentrações de água doce no interior do planeta, o Delta do Okavango.
Ainda sobre a questão das estruturas da indústria musical angolana, questionámos o artista sobre uma nova porta que se abriu com a disponibilização do Spotify no país. “A concorrência saudável é de salutar para qualquer mercado. Dado a estrutura do Spotify, a estrutura global de atuação, vai fazer com que as outras empresas sejam mais sérias. Não que não o sejam, mas que sejam um pouco mais responsáveis. Muitos artistas aqui na banda têm a sua cena nas plataformas há meses, mas tu não vês o kumbu e é uma série de voltas e números incriptados como se estivesses a programar um aplicativo e isso dificulta a leitura dos artistas. Vai fazer com que as empresas que já existem sejam mais dinâmicas e mais sérias na sua estrutura. Eu acho que faltava sim a presença dessa multinacional aqui para que as coisas tomem outros contornos e contornos sérios. Temos de valorizar a arte e o criador.”
De recordar que, o último lançamento de Ready Neutro aconteceu no início do mês de Fevereiro, com “Okavango”.”, com a participação de Leonardo Shankara e X da Questão, o rapper fala sobre o rio Okavango, que nasce no planalto central de Angola e que forma uma fronteira natural entre Angola e Namíbia.
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