A violência obstétrica está cada vez mais no centro do debate público. Apesar de ser uma forma de violência que afeta genericamente as mulheres, o racismo é um fator que se sobrepõe a este tipo de violência, tornando as mulheres negras mais vulneráveis a maus tratos durante o período de gestação.
O coletivo Saúde de Mães Negras (SaMaNe), agrega diversas mulheres, entre elas: Carolina Coimbra, Karla Costa, Diana Santos, Ninfa Lopes, Rita Correia e Laura Brito. Juntas, visam investigar o racismo obstétrico em Portugal: a conjugação de violência obstétrica e o racismo, através de um inquérito online, direcionado a mulheres negras e afrodescendentes sobre a forma como são atendidas nos cuidados de saúde maternos.
Quase um ano após terem lançado o inquérito, em conversa com a socióloga e doula Carolina Coimbra, foi-me revelada a situação que os dados já obtidos representam sobre a saúde de mães negras em Portugal.
Existindo a Associação Portuguesa de Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto (APDMGP), porque é que sentiu a necessidade de criar o coletivo SaMaNe?
Faço parte desta associação, trabalho lá como voluntária e sinto que apesar de tentar, esta associação não chega a todas as mulheres e sobretudo às mulheres negras. Sendo a única pessoa negra que faz parte da mesma, sinto que seria bem mais benéfico que esta causa seja direcionada só para as mulheres negras ou até mesmo mulheres racializadas, do que esperar que a associação só por si chegue a todas as mulheres.
Como é que o racismo afeta a saúde de mulheres negras no período da gestação ?
Deve-se ao racismo estrutural, que no fundo são as pessoas no sistema de saúde que têm os seus preconceitos e as suas ideias pré-concebidas. Muitos deles acreditam que as mulheres negras são mais tolerantes à dor, portanto não oferecem tão rapidamente analgésicos como a epidural. Pode acontecer que deem medicamentos mais suaves através do soro porque acreditam que elas aguentam e são fortes. Como mulheres negras também crescemos ao ouvir que somos fortes, por isso também acreditamos nisso. Toda gente acredita no mesmo, que quando chegamos ao hospital vamos estar dispostas a aguentar mais. Mas nem sempre queremos estar nessa posição, principalmente na hora de ter um filho, quando temos realmente muitas dores e depois temos os profissionais a dizer que não, que estamos a exagerar e é mentira.
Pode mencionar alguns dos testemunhos que têm recebido?
Temos pessoas que dizem que já estiveram em situações onde as mulheres eram agrupadas em salas de acordo com a raça. Quando entraram no hospital, foram separadas em salas onde só havia mulheres negras, em outras salas encontravam-se apenas mulheres brancas portuguesas e em outras mulheres indianas e muçulmanas. Depois também temos relatos de pessoas que disseram que os próprios profissionais de saúde acreditavam que elas não conseguiam ter os seus filhos por parto vaginal porque eram mistura de muitas etnias. Diziam a mulheres brasileiras que o seu país de origem tinha a tendência de fazer muitas cesarianas justamente porque o corpo destas mulheres foi afetado pela junção de muitas culturas, o que é ridículo.
Temos várias estórias em que as mulheres antes de dizerem alguma coisa são logo colocadas num canto sem hipótese de falar o que for mas, depois quando começam a falar, por vezes, a forma de lidar com elas muda, que é ainda mais assustador. O que nós percebemos é que basta ser uma mulher negra que não fale bem o português de Portugal, que a probabilidade de sofrer racismo é ainda maior do que de uma mulher negra que fale corretamente o português de Portugal, sem sotaque no fundo. São essas as coisas que temos visto e ouvido.
De acordo com os resultados que têm recebido do inquérito, que momento é mais crítico para a mulher negra? O pré natal, o parto ou o pós parto?
O parto e o pós parto porque a forma como corre o parto vai influenciar o pós parto. Pode levar à depressão, pode afetar o vínculo da mãe com o bebé e até mesmo a relação da mulher com o parceiro (se houver parceiro). São coisas muito importantes porque têm a ver com a saúde mental da mulher. A nível físico, o bebé pode ter sequelas, depende de como foi o parto, mas pode haver sequelas físicas e emocionais.
Qual é forma de violência obstétrica mais comum, segundo as respostas ao inquérito?
A negação de analgesia, quando negam a epidural neste caso. Não acontece de uma forma óbvia, não dizem diretamente que não lhe vão dar a epidural. O que acontece é que elas pedem e os médicos dizem que ainda não está na hora ou que devem esperar mais um bocado. Vão adiando até que chega a hora do expulsivo e já não é possível dar a epidural, porque já não há tempo dela fazer efeito. Muita das vezes, elas nem se apercebem que na verdade lhes foi negada.
A situação financeira destas mulheres, respetivamente a capacidade de acesso a hospitais privados, influencia a probabilidade de sofrerem racismo obstétrico?
Também existe violência obstétrica nos hospitais privados. Elas seriam bem tratadas porque estão a pagar por este serviço, mas não quer dizer que não sofreriam violência obstétrica. Seria apenas de uma forma mais subtil ainda, mas poderiam sofrer na mesma. Não temos um desenho de como é a população negra em Portugal, não podemos dizer se realmente as mulheres negras têm pouca capacidade financeira, isto é o que acreditamos de acordo com o que temos visto. Influencia a forma como vão ser tratadas porque, para além de serem discriminadas por serem negras, podem ser também pela sua capacidade financeira.
É a interseccionalidade no fundo, que tem a ver com facto de que nós já somos discriminadas por sermos mulheres, sendo negras somos ainda mais discriminadas por causa do preconceito e do racismo, basta sermos pobres que somos ainda mais. Vai piorando à medida que se adicionam mais camadas.
De acordo com a sua experiência como doula, as mulheres negras têm uma relação diferente com profissionais de saúde negros? Será o racismo obstétrico algo perpetuado unicamente por profissionais brancos?
Temos que ver que os médicos negros frequentaram as mesmas escolas que os médicos brancos, portanto há muitos procedimentos que eles aprenderam em conjunto e que continuam a fazer. O que pode mudar é a empatia, por serem negros sabem o que é o racismo e podem ter muito mais cuidado ao falar com elas, podem ter mais atenção. Nos EUA existem alguns estudos que dizem que bebés negros, que foram atendidos por médicos negros, até ao primeiro ano de vida, receberam melhores cuidados em comparação aos bebés que foram atendidos por médicos de uma raça diferente.
A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto teve recentemente uma campanha de 16 dias de ativismo. A Carolina representou a SaMaNe e moderou uma conversa sobre a discriminação na gravidez que fazia parte da campanha. O diálogo foi concluído com a sugestão de que as mulheres deveriam ir sempre acompanhadas aos postos de saúde, para que possam ter alguém que responda por elas em situações de discriminação. Qual é a sua opinião sobre esta sugestão?
Quando as mulheres estão sozinhas estão ainda mais vulneráveis e acabam por estar muito mais expostas. Os médicos podem sentir-se mais confortáveis em fazer o que quiserem. Ter um acompanhante que esteja alinhado com aquilo que estas mulheres querem é uma forma de proteção. As mulheres quando estão em trabalho de parto têm de estar focadas nelas e no bebé e não a responder perguntas porque atrapalha a evolução do parto. Se elas tiverem alguém que fale por elas, mas que saiba exatamente aquilo que elas querem, é uma forma de estarem a trabalhar em equipa. Assim, ela pode ficar concentrada no bebé e a outra pessoa pode focar-se nela, em protegê-la e ajudá-la a ter uma evolução do trabalho de parto.
Para além de investigar o racismo obstétrico em Portugal, quais são os objetivos da SaMaNe?
Temos feito parcerias com algumas associações que trabalham diretamente com mulheres negras e através destes encontros queremos que as mulheres contem as suas experiências, mas também que mulheres grávidas tenham acesso a esta informação para que se possam prevenir da violência obstétrica. A informação é muito importante, para que não normalizemos a forma como somos tratadas em diversos serviços durante a gravidez e pós-parto. Às vezes, achamos que é normal falarem connosco de uma determinada forma porque pode simplesmente ser a maneira de ser daquela pessoa. Também é comum chegarmos à administração do hospital e perguntarem-nos logo pelo passaporte porque partem do princípio de que não somos portuguesas. É preciso não normalizar estas coisas e fazer reclamação porque, enquanto não fizermos, vão pensar que está tudo bem e não está.
Que medidas gostaria de ver implementadas para poder erradicar o racismo obstétrico em Portugal?
Sou a favor da criminalização da violência obstétrica. Acho que seria uma solução mais “rápida”, apesar de que não basta só estar na lei para as coisas serem cumpridas mas já seria um passo importante para que os profissionais pudessem refletir sobre as suas ações. Acredito que seria importante implementar formação, tanto nas escolas de medicina e enfermagem como formação de reciclagem aos profissionais que já estão a trabalhar, e às próprias pessoas que não são profissionais de saúde mas que trabalham nos hospitais e nos centros de saúde, os seguranças, as rececionistas, os administrativos porque, por vezes, eles também são causadores de violência obstétrica. Podem não contribuir fisicamente, mas influenciam a parte emocional da mulher grávida e portanto são parte dos causadores dos traumas de algumas mulheres.
Qual é o papel que esta pesquisa tem na resolução de racismo obstétrico em Portugal?
Neste momento somos o único coletivo que se debruçou sobre esta questão, portanto estamos a conseguir dar visibilidade a estas questões e colocá-las no debate público. Apesar de ser assunto que faça parte do grupo de violência obstétrica, ainda não tem tanta visibilidade quanto a mesma, nem tanto realce dentro da própria comunidade negra. Portanto, ainda é necessário falar mais sobre isso. Assim como é importante falar mais de racismo e discriminação de uma forma saudável, porque não se fala sobre estas questões desta forma. Temos um primeiro-ministro que não é branco, uma ministra negra e são logo estas respostas que ouvimos quando tentamos falar de racismo.
Quando é que pretendem encerrar e divulgar os resultados do questionário?
Ainda não temos uma data definida. O questionário faz parte do doutoramento de uma das integrantes do coletivo, a Laura Brito, entretanto eventualmente ela terá de divulgar os resultados. Mas acabamos sempre por fazer apanhados das respostas nos eventos em que somos convidadas a falar. Porém, temos de ter conta que é um universo de um certo número de pessoas, pode não ser representativo da amostra da realidade.