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Sara Maldoror: A mãe do cinema africano em retrospetiva

Sarah Maldoror

Filha de pai antilhano e de mãe francesa, Marguerite Sarah Ducados nasceu em Guadalupe em 1929. O seu nome artístico surgiu já na fase adulta, numa homenagem ao poeta franco-uruguaio Lautréamont, autor da obra “Os Cantos de Maldoror”. Desde sempre apaixonada por poesia e cinema, Sarah foi uma das primeiras mulheres a dirigir uma longa-metragem no continente africano.

Casada com o poeta e político Mário Pinto de Andrade, fundador e primeiro presidente do MPLA, Maldoror tinha Angola no coração e recordava com saudade os tempos que lá passara. “Para mim voltar a Angola é regressar ao passado e ver o resultado daquilo pelo qual os jovens da minha geração lutaram e os grandes sacrifícios que fizeram pelo seu país”, disse numa entrevista em 2008, numa das suas últimas viagens ao país.

Apesar do amor pelas terras de Agostinho Neto, era na Europa que viria a dar os seus primeiros passos na cultura e na arte. Em 1956, Sarah fundou a companhia de teatro Les Griots, uma instituição, à época, pioneira no que dizia respeito à representatividade, uma vez que se tratava da primeira companhia de atores africanos e caribenhos em Paris. Fê-lo, acima de tudo, para lutar contra uma narrativa estereotipada onde os “papéis de serva” eram as únicas opções para atrizes negras que quisessem vingar na representação. Na companhia Les Griots, privilegiavam-se autores africanos e uma das primeiras produções da companhia foi “A Tragédia do Rei Christophe”, de Aimé Césaire, um dos fundadores do movimento “negritude”, corrente literária que viria a marcar os meados do século XX em virtude dos movimentos anti-colonialistas.

Cinco anos após a fundação da sua companhia de teatro, Sarah ruma a Moscovo para estudar Cinema, através de uma bolsa atribuída pela União Soviética. É no Studio Gorki que conhece o senegalês Ousmane Sembène, que viria mais tarde a ficar conhecido como o pai do cinema africano. Da sua breve passagem pela Rússia, assume ter ficado com um ensinamento, que passou a usar também como método de trabalho: “estar sempre pronta a descobrir o que pode estar atrás da nuvem”.

Já dedicada à sétima arte, Sarah esteve por trás do filme A Batalha de Argel (1965), onde foi assistente de realização de Gillo Pontecorvo. Filmado na capital argelina, a película foi distinguida com o Grande Prémio de Veneza, tendo um forte impacto na formação de movimentos estudantis e anti-colonialistas europeus. Para a cineasta, era o início perfeito daquela que depois se afirmou uma carreira consagrada no cinema em particular, e na cultura em geral.

Em 1969 assinou o seu primeiro filme com Monangambém, uma produção inspirada numa novela de José Luandino Vieira, escritor e nacionalista, que à época se encontrava preso no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. O trabalho desenvolvido, sobretudo que deu a conhecer a luta pela libertação de Angola, fez com que os músico do célebre grupo de jazz Chicago Art Ensemble aceitassem fazer gratuitamente a banda sonora do musical.

Três anos mais tarde, 1972, e novamente inspirada numa novela de Luandino Vieira, estreia Sambizanga. Para realizar a produção que conta a história de Maria, uma rapariga que percorre as cadeias da cidade de Luanda à procura do seu marido Xavier, Maldoror foi auxiliada pelo marido Mário Pinto de Andrade na construção do guião. O filme, que constitui uma das maiores obras do cinema africano, viria a ser amplamente reconhecido ao mesmo tempo que reconfirmava a reputação de Sarah.

Já instalada em Paris, passa a dedicar-se ao formato de documentário que lhe permite definir através de retratos de artistas o alicerce necessário para a reabilitação da História Negra e das suas figuras mais marcantes. Sarah Maldoror foi sempre uma voz ativa contra a intolerância e preconceito. Para a cineasta a solidariedade e cultura eram tidos como os únicos meios de progresso de uma sociedade.

Aquando da sua última intervenção no Museu Rainha Sofia, em maio de 2019, ressalvou a importância da literatura e da cultura, afirmando que as crianças deviam ir ao cinema e ler poesia desde cedo, para construir um mundo mais justo.

Sarah Maldoror, que desde sempre viu o seu compromisso com a arte como um ato de libertação, faleceu a 13 de abril de 2020, vítima de covid-19. Para trás fica o legado indiscutível daquela que é, para alguns, considerada a mãe do cinema africano.

“Ela sempre disse: Nós somos responsáveis (…) nós somos os únicos que devemos comunicar a nossa história”, afirmou a filha Annouchka de Andrade. Maldoror assim o faz num diverso grupo de filmes que permeiam a afirmação da negritude, como em Et Les Chiens Se Taiseient (1978); filmes que olham para a identidade e cultura negras após as independências dos respectivos territórios – À Bissau, Le Carnaval (1980), Cap-Vert, Un Carnaval Dans Le Sahel (1979), Fogo, L’Île De Feu (1979) – e as psicogeografias parisienses das experiências migrantes – Un Dessert PourConstace (1980), Scala Milan A.C. (2003), Le Passager du Tassili (1986), entre outros.

Uma outra vertente apresentada dá voz às mulheres negras, agentes da mudança, em filmes profundamente anti-racistas, que transpiram solidariedade. De Portrait D’Une Femme Africaine (1985), Écrivain Public (1985), a Point Virgule (1986), Premiére Recontre Internationale des Femmes Noires (1986) ou Assia Djebar (1987), vislumbra-se o gesto feminino, mas também sublinha-se uma agitação que se sente um pouco por todo o resto da obra.

Do outro lado do espectro, olha-se para a sua obra de fora por autores como Chris Marker, William Klein, Anne-Laure Folly, ou Mathieu Kleyebe Abonnec – este último filme, Préface à Des Fusils Pour Banta (2011) é uma elegia ao filme perdido de Sarah Maldoror, Des Fusils Pour Banta (1970), que se centrava numa mulher envolvida na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde. 

De 1 a 8 de setembro o IndieLisboa – Festival Internacional de Cinema, em conjunto com a Cinemateca Portuguesa, vai exibir os filmes de uma artista que dizia pertencer ao lugar onde estava naquele momento e que olhou para o cinema Africano de dentro para fora e que fez do cinema uma arma-instrumento, que levanta tantas questões quanto aquelas que pedem a sua discussão.

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