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Soul, o primeiro filme da Pixar com um elenco negro mas com dobragem portuguesa branca

Joe Gardner
Imagem Pixar

Há dias, falámos aqui sobre o primeiro filme da Pixar com um protagonista negro, estreado no dia de Natal e, hoje, voltamos ao assunto para falar sobre a (des)interessante escolha de atores para a dobragem (dublagem, se preferirem) da versão portuguesa.

As personagens principais de Soul, Uma Aventura com Alma, são Joe Gardner, um pianista que ama profundamente o Jazz e cuja alma entra numa aventura para voltar à vida, depois de um acidente fatal; Dorothea Williams, líder da banda homónima e Curly, o baterista da mesma banda. Na versão norte-americana, Jamie Foxx, Angela Basset e Questlove são as vozes que nos imergem no drama que questiona a beleza de cada momento, a perseguição dos nossos sonhos e a importância da música, ao mesmo tempo que abre espaço para narrativas culturais de forma sensível.

Além do singular enredo, o filme despertou curiosidade por ser o primeiro da Pixar com um protagonista negro. Contudo, contrariando todas as versões internacionais, Portugal surpreendeu-nos com a escolha das vozes que dobraram Joe, Dorothea e Curly. Jorge Mourato, Mónica Garcez e Pedro Pernas são artistas brancos.

Sem em momento algum questionarmos o talento ou o mérito dos actores escolhidos, é importante questionar a motivação da necessidade de branquear a identidade destas personagens. Falta de atores negros qualificados? Todos sabemos que não. Recorrendo a um exemplo simplório, rápido e prático, basta-nos ligar a TV no horário das telenovelas da TVI e da SIC para os encontrarmos.

Por que razão despimos Joe, Dorothea e Curly das suas próprias identidades, atribuindo-lhes características vocais que em nada os representam?

A voz é uma marca de identidade. A voz de uma pessoa negra “é mais ressoante, mais potente. Ela tende a ser mais grave e tem milhões de possibilidades melódicas. Ela é muito mais melódica, mais cantada. Os negros têm uma aspereza característica na voz”, explica Silvia Pinho, fonoaudióloga do brasileiro Instituto Invoz.

O que nos dizem os atores negros sobre a escolha? Questionei Marco Mendonça sobre o assunto e estas são as suas palavras:

Soul é primeiro filme de animação da Pixar com uma personagem negra no papel principal. Naturalmente, esta personagem, na versão original do filme, é dobrada por um ator negro. Jamie Foxx. Na versão francesa do filme é Omar Sy quem dá voz ao protagonista. Na versão brasileira, também é um ator negro no papel principal. E a grande maioria das personagens secundárias também é interpretada por atores e atrizes não-brancos. Porque é que em Portugal isso é diferente? A preferência por atores brancxs na escolha de elencos no meio audiovisual é tão evidente como a falta de oportunidades para artistas não-brancxs. Como ator negro, fico profundamente triste quando penso que, estatisticamente, a probabilidade de vir a participar num projeto de dobragem como o Soul é praticamente nula. O acesso a castings e trabalhos de dobragem, para não falar de cinema, de televisão, de teatro, é quase inexistente. Se tivesse de lançar um número, diria que apenas 10% dos atores e atrizes negros em Portugal estão a trabalhar. É uma percentagem que pode estar errada, mas basta uma curta pesquisa às fichas técnicas dos filmes, das séries, das novelas, dos espectáculos que têm sido produzidos, para percebermos que os elencos são maioritária ou unicamente brancos. No caso do filme Soul, acho indescutível que todos os atores a ir a casting para a personagem principal deviam ter sido negros. Trata-se de uma revolução no cinema de animação e o estúdio português responsável pela dobragem tinha a responsabilidade de participar nessa revolução. Não se trata apenas de uma escolha artística, trata-se de uma tomada de posição a nível político e social. Quem escolhe um elenco branco para um filme que retrata especificamente uma comunidade negra está a sublinhar o racismo estrutural que é preciso combater. Claro que existem atores e atrizes negras a trabalhar regularmente em dobragens, mas não podem servir de desculpa dos estúdios para a não aceitação do problema. O problema existe e no século XXI tem ser considerado grave. E se não existisse, não teríamos tantos artistas a manifestar o seu descontentamento com a escolha de elenco para este filme que tantas vozes negras portuguesas tinham o direito de contar.

Este 2020 rima com ganho de consciência para a problemática social que é a inviabilização de todo um grupo étnico presente há mais de 500 anos no seio da sociedade portuguesa. Mesmo assim, por vezes, parece que nem no século XVI essa necessidade de apagamento deliberado era tão acirrado quanto nos dias de hoje, como nos comprova o quadro Chafariz d”El-Rey que ilustra uma Lisboa de outra era, onde negros e brancos de várias esferas sociais são vistos numa convivência, aparentemente, cordial.

Do Estúdios da Matinha, responsável pela dobragem de Soul, resta-nos esperar mais sensatez. O que sabemos ser um tempero raro e de colheita demorada quando o assunto é garantir equidade e igualdade racial. Contudo, para os impacientes, como eu, a fórmula passa por criar as suas plataformas onde, nós próprios, podemos garantir que esses dois substantivos passam a ser ação.

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