Okwami é um produto refinado fruto da junção dos mais requintados filhos do boom bap angolano. Trocámos algumas palavras com Verbal que nos explicou melhor a essência do grupo, que vai lançar a 1 de novembro um disco 6.7.19, e sobre hip hop no geral.
Verbal pisou um palco pela primeira vez em Lisboa, onde viveu de 1997 a 2009, “para rimar 16 versos”. Foi ganhando maturidade em colaborações com outros artistas e em 2001 participou no disco Ondjango. No ano seguinte começou a trabalhar com PM. Em 2005 lançou o seu primeiro disco, Viagem Verbal, que em 2006 valeu-lhe uma nomeação nos prémios MTV em Portugal. Sete trabalhos depois (entre EPs e mixtapes), Verbal integra o projeto Okwami, que vai agora lançar um álbum. 6.7.19 é o nome do projeto, que significa nada mais que “seis gajos, sete músicas, com edição em 2019”.
E se ao longo do tempo, Verbal tem mantido viva a sua linha criativa, ser rapper não é a sua única ocupação. A arquitetura é a sua segunda arte, na qual trabalha profissionalmente, no seu atelier, há quatro anos. Quando despe o fato, veste a pele de MC “esfomeado”. “Musicalmente, tenho sempre vontade de fazer música, em busca de melhorar, nunca quis que a minha criação ficasse à mercê de receios do possível sucesso ou falta dele. À medida que tivesse vontade de fazer, fazia”, explicou-nos.

Quando questionado sobre a experiência mais difícil que viveu desde que faz música, Verbal retorquiu: “Como todos os desafios na vida, a dificuldade é eminente. Desde o primeiro disco que o meu lema é ‘deixar a música falar por si’. Nunca crio uma expetativa muito alta nos meus trabalhos, não porque não confie nas minhas músicas, mas eu gosto de coisas diferentes e nem toda gente gosta da diferença, então a minha vitória é sempre a contar com a receptividade do disco primeiro, depois daí é até onde o disco consegue chegar.”
6.7.19, que está prestes a ver a luz do dia, anuncia-se um álbum que vai agradar, sobretudo, aos amantes do boom bap tradicional. “Conseguimos fazer um disco classicamente rap na matriz mas com uma sonoridade de fácil digestão”.
O grupo Okwami, cujos membros são Damani Van Dunem, Keita Mayanda, Leonardo Wawuti, Verbal, CFKappa e Kennedy Ribeiro, pode parecer para alguns um conjunto de rappers elitista, mas é na verdade uma simbiose natural entre artistas, amigos, que inspiram e expiram a mesma essência crua do hip hop.
“De certa forma, todos os integrantes se tornaram MCs incontornáveis para quem conhece o panorama [nusical angolano], o que nos relega para esse lugar diferenciado. Somos amigos e fazemos o mesmo estilo de música. Foi uma seleção natural, por estamos juntos com frequência e pela facilidade de fazermos música juntos. Foi um processo orgânico. Dadas as nossas vivências multifacetadas, criámos personas mais maduras e objetivas. Se nos envolvemos num projecto é a sério, por isso preferimos fazê-lo com artistas com o mesmo compromisso”.
Neste grupo old school, Cláudio Kiala aka CFKappa é o elemento mais novo, mas a sua alma de artista anda de mãos dadas com a visão dos seus companheiros. “Na verdade, o Cláudio tem alma de velho, é só verem como se veste (risos). Mas old school é mesmo só pelo nosso tempo no rap. As músicas continuam fresh como se estivessem no frio.”
E que não se pense que o boom bap é a âncora que não os deixa viajar por outras sonoridades, muito pelo contrário. “Não estamos necessariamenre agarrados ao estilo predominante da nossa era, ouvimos um pouco de tudo, fazemos músicas consoante a nossa mensagem”.
“No estúdio, no princípio, andámos um pouco às voltas à escolha do tema, do beat, mas foi uma fase rápida e logo percebemos o que queríamos alcançar com este disco e o processo foi muito fluído. A exigência era unânime, sempre que nos juntássemos para o propósito tinha de sair música. Escolhíamos o beat, escrevíamos naquele momento e gravávamos”, explicou Verbal.
À pergunta, irónica, se o Okwami é para vencer prémios daqui a seis meses nos Angola Music Awards ou no Moda Luanda e consagrar o grupo como o melhor de hip hop de 2019 ou se para isso acontecer seria necessário ter afrobeat no álbum, Verbal respondeu: “Todos esses prémios são possíveis, tudo depende de como o disco será recebido. Apesar de o público angolano ser muito mais festivo na hora de selecionar a música, o rap já é um estilo melhor recebido comparativamente há 10 anos”.
Sobre o ambiente atual do movimento em Angola, “vejo com bons olhos. Passou a fase do purismo extremista e também já passou a do rap da moda e agora está a começar a entrar para a fase da diversidade. Já existem rappers novos muito lúcidos do que querem fazer e com originalidade. O tempo está a fazer e faz sempre a exclusão natural dos inaptos. O gráfico é saudavelmente crescente”.
E se, hoje, alcançar a fama, mesmo que momentânea é fácil, por culpa das novas tecnologias e redes sociais, Verbal relembra que essa nova era apanhou-o um pouco desprevenido. “Posso dizer que na primeira vaga, ainda tentei acompanhar essa relação com a Internet, mas de repente cresceu muito e deixei de ter a real noção. A maior diferença é que quando na altura falávamos de um disco a ideia era mesmo reproduzi-lo fisicamente. Hoje já há artistas com um foco principal, senão único, a Internet”. Mas essa evolução “ajudou substancialmente a divulgação do estilo e a independência dos artistas de rap, que diferente dos outros estilos, sempre tiveram muita dificuldade em serem abraçados por editoras”.
E, apesar de o estilo se ter tornado de massas e de dinamizar e alargar o mercado da música a nível mundial, a essência social do hip hop não foi perdida pelas novas gerações. “Nesta globalidade atual há sempre espaço para a mensagem social. Dar uma perspetiva diferente por via da música pode ajudar a dar uma direção a uma mente jovem. Eu, pessoalmente, que cresci longe dos meus pais desde os 14 anos, encontrei no rap uma espécie de aulas de ética e conduta. Ouvia de tudo, do gangsta rap ao mais consciente e gradualmente fui filtrando e optando pelo que mais identificava.”
Quem vê o auge depressa demais e é indiferente à vertente social que impregna os princípios básicos do hip hop, “fútil ou não, torna-se quase num símbolo para aquela altura/geração. Por um lado é bom porque abre mais portas ao estilo, por outro é mau porque dá a ideia errada do que são os preceitos iniciais. Mas como tudo é mutável, com o hip-hop que já é um estilo derivado de muitas influências não tinha como ser diferente. Nos dias de hoje é possível ser underground e mainstream ao mesmo tempo”.
Sobre o estigma que o movimento sempre viu e que de uma forma ou de outra continua a ver, “eu sou do tempo das calças largas, timberland boots, cap de baseball, du-reg. Na altura eu também fazia parte dos bandidos. Hoje sou arquiteto, casado, tenho duas filhas, respeitado pela família e pelas pessoas com quem tenho uma relação social. Vão sempre existir estigmas porque o que é diferente cria sempre aversão ao primeiro contacto. A desvirtualidade de cada indivíduo depende de si mesmo, quer esteja no hip-hop ou na igreja.
Desde muito cedo meti os meus pais a ouvirem as minhas músicas porque também eles julgavam-me com os mesmos estigmas sociais. Era necessário mostrar o que eu andava a fazer com aquele aspeto e maneirismo. Até hoje ouvem-me, nem que seja uma vez por ser um projeto novo”.
Sem querer puxar a brasa à sua sardinha, Verbal salientou ainda que, apesar da popularidade de estilos como o trap, o boom bap é a definição do hip hop. É a cadência que o caracteriza, os outros são uma espécie de sub-géneros. Até agora nenhum continuou (Crunck, Dirty South, Glitch…) vão se revezando. E o boom bap volta e meia reaparece de novo no topo. Rap com essa essência nunca vai ser música de massas devido ao conteúdo que, dependendo da profundidade, é delicado. É tudo uma questão de momento interior de cada um, fazedor ou ouvinte. É uma questão de energias”.
E sobre o artista que melhor concilia o hip hop da old e da new school, a resposta acontece sem hesitações: “O Kendrick Lamar é o artista que acho que melhor faz essa dualidade. Consegue ter uma entrega e composição que prende qualquer amante do rap boom bap e ao mesmo tempo com as nuances do rap da nova guarda”.
O projecto músical 6.7.19 vai estar disponível a partir do dia 1 de novembro, nas várias plataformas de streaming.
Eddie Pipocas
Eddie Pipocas é jornalista, publisher musical e co-fundador da BANTUMEN.
Depois de vários anos a trabalhar para diferentes projetos de comunicação em Portugal e Angola, Eddie fundou a BANTUMEN, juntamente com um grupo de jornalistas.
A plataforma digital é pioneira dentro do mercado lusófono ao estabelecer um ponte entre as diferentes comunidades negras falantes de português.