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Idealizada pelo líder espiritual brasileiro Bàbáloòrìṣà Pedro Barbosa, 35 anos, a Associação Ilé Àṣẹ Ìgbà Mérìndínlógún Ọ̀ṣùn Cultural Beneficente e Religiosa, conhecida também como Associação AMOR, atua desde 2019 no culto e na preservação das tradições de matriz afro-brasileira como forma de promover o acesso ao direito à identidade religiosa, cultural e social em Sintra, Portugal.
Desde então, a instituição sem fins lucrativos tem sido um espaço de resistência física e simbólica em território europeu. “Nossa vocação é atuar em sintonia com as demandas da comunidade para a preservação da memória dos nossos ancestrais, a manutenção e a continuidade do culto ao Òrìṣà na diáspora negra, a produção de conhecimento, a elaboração de projetos e a efetivação de ações para a construção de um âmbito de convivência, acolhimento, assistência social, defesa de direitos humanos e garantias fundamentais de sujeitos e identidades individuais e coletivas, contribuindo para a criação de um ambiente de diversidade”, diz Bàbá Pedro, natural de Salvador, Bahia, que há seis anos mora no país.
Segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Portugal (SEF), mais de 230 mil brasileiros, entre 20 e 49 anos, vivem em solo português atualmente, sem considerar os que estão em situação irregular e os que possuem dupla nacionalidade. Brasileiros se mantêm como a principal comunidade estrangeira residente.
Além das atividades do calendário litúrgico, a Associação AMOR oferece oficinas de dança afro-brasileira, dança dos Orixás, canto, percussão, projeção de filmes afrocentrados em parceria com Associação Kazumba, feijoada beneficente; além de estimular o debate e propor práticas reflexivas de combate ao racismo em todos os âmbitos.
Em abril, durante a passagem de Anielle Franco, Ministra da Igualdade Racial do Brasil, pela Casa do Brasil de Lisboa, uma associação de imigrantes fundada em 1992, Bàbá Pedro fez uma fala-denúncia sobre o fato de Portugal ter a concessão pública de um canal para a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e também a liberação para atuar dentro dos presídios, desde 2018. “Existem vários estudos no Brasil sobre a relação das igrejas neopentecostais com o tráfico de drogas e com o racismo religioso. Então, eu tive que falar porque a questão é: E nós? E nossos corpos? O que vai acontecer com a gente? Porque estamos aqui alimentando esse espaço de resistência e lá do outro lado está só crescendo e crescendo. São instituições que têm muito poder, e poder de decisão muitas vezes com uma influência política grande. E estamos aqui nos articulando entre nós. Eu tenho irmãs e irmãos que morreram”, conta Bàbá Pedro, em entrevista à BANTUMEN.
Produtor cultural, jornalista e pesquisador das religiões de matrizes africanas, Bàbá Pedro também é membro da diretoria e do departamento de cultura da Casa do Brasil de Lisboa e vem contribuindo para o projeto “Migrante Participa em Sintra – Caminhos para a Igualdade e Participação”, que fomenta espaços de partilha de experiências e conhecimentos sobre temas relacionados com a comunidade migrante, residente nos territórios de Algueirão-Mem Martins e Queluz e Belas, com enfoque nas questões de gênero.
“Nós adotamos uma postura institucional antirracista na prática, garantindo representatividade negra em toda a estrutura organizacional da Associação, sendo esta majoritariamente composta por imigrantes racializades, cujas atividades são direcionadas para as intervenções políticas junto ao Estado português, discutindo o papel da negritude, da imigração, da mulher e das minorias”, completa.
Eu costumo dizer que o candomblé é um lugar que aterroriza o sistema. É um espaço que só por existir já é um lugar de resistência porque é um espaço em abundância num sistema falido. E para entender essa lógica é importante a gente voltar atrás porque o candomblé é paradoxo ao sistema colonial e ao sistema capitalista. É um local de resistência criado através da inteligência e da tecnologia dos nossos ancestrais, e muito bem estruturado a ponto de sobreviver até hoje. O candomblé é uma experiência brasileira e, como sabemos, existiu e existe um plano de genocídio e demonização dos corpos de homens pretos e mulheres pretas. E não só no Brasil, mas em todo o mundo. E o candomblé vai na contramão disso porque vai produzir arte, tecnologia, vai preservar identidade, língua, cultura, filosofia. Inclusive, eu não gosto de chamar o candomblé de religião, esse termo que foi utilizado historicamente contra nós num processo de dominação. O candomblé, para mim, é uma filosofia de vida. Eu vivo o candomblé. O candomblé foi a possibilidade de eu, homem preto e periférico no Brasil, renascer. E renascer divindade, renascer rei para enfrentar e sobreviver esse Estado genocida. Então, não dá para dissociar o candomblé da luta antirracista.
Quando cheguei em Portugal em 2017, cheio de gás, pertencendo ao movimento negro, lutando no Brasil, e quando fui procurar o movimento negro aqui percebi que a espiritualidade era uma coisa que não estava embebida dentro do movimento e então comecei a me questionar: o candomblé está aqui desde a década de 1980 e não dialoga com o movimento antirracista, não dialoga com a quantidade de feminicídio que tem nesse país, não dialoga contra a xenofobia e a violência contra o imigrante? E percebi o quanto esse espaço, que mesmo estando aqui desde os anos 1980, foi um espaço majoritariamente de pessoas brancas, portuguesas e ricas. Então, descaracterizar o candomblé fez com que ele se distanciasse dessas lutas. Por isso me assustei tanto, porque isso já está na nossa pauta diária. O candomblé é a possibilidade da periferia poder comer bem. É um espaço que vai falar de saúde, de higiene, de meio ambiente e ele existe porque essa comunidade precisa resistir e sobreviver.
Por que o AMOR estava disponível. Quando vamos criar a Associação, temos que criar uma sigla de acordo com uma lista a ser consultada. Tínhamos pensado em várias opções. Então, minha advogada disse: ‘Olha, A.M.O.R. está disponível’. Então, na hora, decidimos que seria AMOR, até porque Oxum é a divindade patrona da casa e Oxum é a Orixá do amor encarnado.
Nossa casa tem majoritariamente pessoas pretas e imigrantes, não só do Brasil, mas dos PALOP também. Tem portugueses pretos e alguns portugueses brancos. E também pessoas pretas que não estão em Portugal, mas na França, em Dublin, na Alemanha, na Espanha, e que fazem parte dessa casa. A casa não é somente para a prática espiritual, até porque para nós tudo é espiritual, mas é um espaço que teve a necessidade de se institucionalizar, tornar-se associação para que justamente pudesse dialogar com outras associações e outros projetos. Sintra é o local com maior quantidade de pessoas pretas da região metropolitana de Lisboa.
Hoje, só de filhos e filhas eu tenho 53. Mas nós fazemos festas para 100 pessoas. E por isso a necessidade de ocupar um espaço maior, porque o anterior já não comportava. Conseguimos um espaço em Almargem do Bispo, onde vai funcionar a casa de candomblé e o projeto central, o carro-chefe, que é o Centro de Cultura e Ecologia Afro-lusófona AMOR, com vários núcleos: arte, ecologia, estudos africanos e afro-indígenas, biblioteca e resgate de línguas africanas dos PALOP. O espaço foi comprado por meio de um financiamento coletivo crowdfunding, e a comunidade tem ajudado na reforma desse espaço recém-ocupado.
Muitos negros portugueses estão interessados no espaço. Eu sou das artes e meu marido também, então nós conhecemos muita gente. E sempre chegam pessoas com essa carência de espiritualidade. Enquanto o Brasil conseguiu manter, mesmo sob a égide do genocídio, a espiritualidade, tornando possível, hoje, que nós abríssemos um terreiro em Portugal, nos outros países PALOP houve um rompimento muito mais violento, e uma violência tão grande que isso se perdeu em gerações. Existe até a forma espiritual de tratamento entre a família, mas o conhecimento ancestral já foi interrompido por conta da demonização. A igreja católica cortou isso de uma maneira muito bem estratégica com a violência que foi o sistema colonial, a ponto dessas pessoas hoje – e falo de jovens pretos portugueses – não terem conhecimento sobre a sua espiritualidade ancestral. É algo que está lá bem perdido, mas é interessante quando pessoas que tiveram um pouco de vivência espiritual e vão experienciar um ritual ou uma celebração, elas se veem: ‘Ah, meu tio falava desse jeito’. E acabam se encontrando em alguma coisa, seja na comida ou na sonoridade, por exemplo.
O mais importante é o terreiro como lugar de afeto. A comida tem o poder de religar e despertar memórias que às vezes nem são suas. E a comida tem esse efeito em vários lugares, não só no candomblé. Mas esse lugar de afeto, essa estrutura que pensa numa lógica de: Se eu sou, é porque você também é / Se eu pertenço, é porque você também pertence / Se você está doente, a comunidade inteira também está doente. É a filosofia Ubuntu. A experiência de imigração retira esse chão da gente, da família, do afeto e, quando as pessoas chegam e encontram esse lugar, elas verdadeiramente se sentem em casa a ponto de não quererem mais sair e a ritualística se estende. Tanto que temos uma rotina de visitas, já que as pessoas não vêm apenas quando tem liturgia, vêm porque querem estar nesse espaço. É importante beber desse espaço, que é um espaço de afeto mas também de ensinamentos. O candomblé é uma universidade. A gente reaprende a comer, reaprende a importância da comida, da terra, reaprende a valorizar aspectos artísticos.
Religiões de matrizes africanas sofrem racismo religioso porque o viés do racismo está sempre impregnado junto a essa intolerância. E por isso é um lugar que aterroriza o sistema. Até existe, mas é muito difícil uma igreja ser depredada porque é um espaço considerado sagrado, inclusive que serve para sustentar uma moral dentro da sociedade e que exerce poder. O racismo institucional vai existir primeiramente dentro da religião, do catolicismo. Ali serão impregnados já determinados mecanismos do racismo. O professor Jaime Sodré (1947-2020) fala sobre a diabolização do corpo do homem negro e da mulher negra, e não só do corpo mas de tudo o que esse corpo produz ou o que traz de herança. Então, existe um pacto de se distanciar de tudo que é africano, de tudo que é preto. Não podemos dizer que o candomblé é branco, que Orixá é branco. É inegociável para o sistema um espaço onde uma pessoa que, por exemplo, não tem o status que a sociedade capitalista vai oferecer como status de poder, em que você vê o preto, pobre, periférico e muitas vezes analfabeto receber orixá, se tornar rei e ter a comunidade inteira como seus súditos. Isso é uma lógica que aterroriza qualquer sistema de genocídio contra pessoas pretas. Então, o que sofremos na prática é racismo religioso porque o que vamos ouvir é: ‘Vocês são do diabo. Vocês cultuam o diabo. Vocês são de Satanás’. E o sistema cria mesmo essas lógicas.
Aqui em Portugal, um exemplo prático, tenho filhos que não podem usar seus fios de contas no trabalho. Um chefe viu e pediu que retirasse aquilo porque não era aceito, benquisto. Enquanto uma das colegas usa um terço. No caso do turbante, sabe-se quando o turbante é algo estético ou quando é um ojá, o pano que cobre a cabeça quando a pessoa está cumprindo seus resguardos. Se eu saio na rua assim, sou alvo de ser apedrejado. E, se for no Brasil, posso ser assassinado. Aqui, em Portugal, posso ter o meu direito negado, seja por uma pessoa que não quer me atender na padaria ou por alguém que vai me olhar de maneira repugnante como se fosse algo assombroso.
Portugal é um país que, na Constituição, é laico, mas na prática é católico. As instituições são católicas. Você vai nas finanças e tem um crucifixo com Jesus pendurado. Ou nos hospitais ou na Segurança Social pode encontrar a mesma coisa. Culturalmente é um país extremamente católico, e é o católico lá de trás, do século XV. É o catolicismo que corrobora tão bem com a sociedade racista que, há dois dias, o Vaticano divulgou o selo da Jornada Mundial da Juventude e é o Papa Francisco desenhado no monumento Padrão dos Descobrimentos, e tem até uma criança negra ajoelhada. Então, é esse catolicismo que compactua com o sistema racista, vangloria o passado e alimenta o heroísmo português porque se tirar isso eles não têm nada.
Eu penso que terão algum dia. Migram brasileiros de esquerda, de direita, de candomblé, de igreja neopentecostal. Cada vez mais a presença das igrejas neopentecostais em Portugal tem crescido e avançado, já desde muito tempo porque os PALOP também, muitos deles, são pentecostais. Sabemos, com o histórico do Brasil, o quanto a presença de um terreiro de candomblé se torna uma presença bélica para eles, esse confronto entre nós e eles, e mais deles para nós. São instituições que exercem poder porque são voltadas para o capitalismo. E isso, na prática, faz com que um filho meu tenha o Uber negado na porta do terreiro. Ou, outro exemplo, em que a motorista brasileira e evangélica colocou louvores no rádio bem alto e eles pedindo para abaixar e ali começou uma discussão dentro do carro. Então, temos trazido as nossas problemáticas também para cá.
Minha casa também tem pessoas portuguesas brancas. Um público bem menor, mas são pessoas aliadas à causa, que conhecem, que querem receber letramento racial, que entendem esse lugar do branco e do racismo. O cuidado que eu acho que deve ter é essa pessoa branca não querer descaracterizar um sistema já criado ou usar esse micro poder a seu favor. É uma discussão que já vem de muito tempo no Brasil porque temos hoje também um crescimento enorme de pessoas brancas, principalmente homens brancos, sendo que o candomblé é essa experiência matriarcal em suas origens. Inclusive, é um dos poucos espaços espirituais no mundo em que mulheres podem exercer papel de liderança. E, por isso, o candomblé tem uma preocupação extrema com as mulheres pretas. Não é um problema falar sobre isso na casa e trazemos eles para a discussão.
No final de outubro, a nossa Associação vai produzir junto com a Casa do Brasil de Lisboa e a Rede Afroambiental, a “Conferência da Cúpula dos Povos Afrodescendentes”. Vamos convidar diversos coletivos antirracistas que atuam aqui para escrevermos uma carta aberta para a ONU, porque no ano que vem termina a Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024). Uma carta com os nossos questionamentos e sobre o que foi feito e o que ainda será. Se os coletivos portugueses receberam verbas para atuar contra o racismo, por exemplo. Consideramos que seja também uma maneira de denunciar o Estado. A pauta será Cultura, Educação e Meio Ambiente porque entrará a Década do Oceano e precisamos entender como os povos afrodescendentes podem articular medidas e tecnologias para atuar e pensar Meio Ambiente. E não só na preservação, mas também nas questões que envolvem o racismo ambiental.
Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.
Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para redacao@bantumen.com.
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