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Associação AMOR, um terreiro de candomblé em Sintra

May 22, 2023

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Idealizada pelo líder espiritual brasileiro Bàbáloòrìṣà Pedro Barbosa, 35 anos, a Associação Ilé Àṣẹ Ìgbà Mérìndínlógún Ọ̀ṣùn Cultural Beneficente e Religiosa, conhecida também como Associação AMOR, atua desde 2019 no culto e na preservação das tradições de matriz afro-brasileira como forma de promover o acesso ao direito à identidade religiosa, cultural e social em Sintra, Portugal.

Desde então, a instituição sem fins lucrativos tem sido um espaço de resistência física e simbólica em território europeu. “Nossa vocação é atuar em sintonia com as demandas da comunidade para a preservação da memória dos nossos ancestrais, a manutenção e a continuidade do culto ao Òrìṣà na diáspora negra, a produção de conhecimento, a elaboração de projetos e a efetivação de ações para a construção de um âmbito de convivência, acolhimento, assistência social, defesa de direitos humanos e garantias fundamentais de sujeitos e identidades individuais e coletivas, contribuindo para a criação de um ambiente de diversidade”, diz Bàbá Pedro, natural de Salvador, Bahia, que há seis anos mora no país.

Segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Portugal (SEF), mais de 230 mil brasileiros, entre 20 e 49 anos, vivem em solo português atualmente, sem considerar os que estão em situação irregular e os que possuem dupla nacionalidade. Brasileiros se mantêm como a principal comunidade estrangeira residente.

Além das atividades do calendário litúrgico, a Associação AMOR oferece oficinas de dança afro-brasileira, dança dos Orixás, canto, percussão, projeção de filmes afrocentrados em parceria com Associação Kazumba, feijoada beneficente; além de estimular o debate e propor práticas reflexivas de combate ao racismo em todos os âmbitos.

Em abril, durante a passagem de Anielle Franco, Ministra da Igualdade Racial do Brasil, pela Casa do Brasil de Lisboa, uma associação de imigrantes fundada em 1992, Bàbá Pedro fez uma fala-denúncia sobre o fato de Portugal ter a concessão pública de um canal para a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e também a liberação para atuar dentro dos presídios, desde 2018. “Existem vários estudos no Brasil sobre a relação das igrejas neopentecostais com o tráfico de drogas e com o racismo religioso. Então, eu tive que falar porque a questão é: E nós? E nossos corpos? O que vai acontecer com a gente? Porque estamos aqui alimentando esse espaço de resistência e lá do outro lado está só crescendo e crescendo. São instituições que têm muito poder, e poder de decisão muitas vezes com uma influência política grande. E estamos aqui nos articulando entre nós. Eu tenho irmãs e irmãos que morreram”, conta Bàbá Pedro, em entrevista à BANTUMEN.

Produtor cultural, jornalista e pesquisador das religiões de matrizes africanas, Bàbá Pedro também é membro da diretoria e do departamento de cultura da Casa do Brasil de Lisboa e vem contribuindo para o projeto “Migrante Participa em Sintra – Caminhos para a Igualdade e Participação”, que fomenta espaços de partilha de experiências e conhecimentos sobre temas relacionados com a comunidade migrante, residente nos territórios de Algueirão-Mem Martins e Queluz e Belas, com enfoque nas questões de gênero.

“Nós adotamos uma postura institucional antirracista na prática, garantindo representatividade negra em toda a estrutura organizacional da Associação, sendo esta majoritariamente composta por imigrantes racializades, cujas atividades são direcionadas para as intervenções políticas junto ao Estado português, discutindo o papel da negritude, da imigração, da mulher e das minorias”, completa.

A vertente antirracista sempre fez parte da Associação?

Eu costumo dizer que o candomblé é um lugar que aterroriza o sistema. É um espaço que só por existir já é um lugar de resistência porque é um espaço em abundância num sistema falido. E para entender essa lógica é importante a gente voltar atrás porque o candomblé é paradoxo ao sistema colonial e ao sistema capitalista. É um local de resistência criado através da inteligência e da tecnologia dos nossos ancestrais, e muito bem estruturado a ponto de sobreviver até hoje. O candomblé é uma experiência brasileira e, como sabemos, existiu e existe um plano de genocídio e demonização dos corpos de homens pretos e mulheres pretas. E não só no Brasil, mas em todo o mundo. E o candomblé vai na contramão disso porque vai produzir arte, tecnologia, vai preservar identidade, língua, cultura, filosofia. Inclusive, eu não gosto de chamar o candomblé de religião, esse termo que foi utilizado historicamente contra nós num processo de dominação. O candomblé, para mim, é uma filosofia de vida. Eu vivo o candomblé. O candomblé foi a possibilidade de eu, homem preto e periférico no Brasil, renascer. E renascer divindade, renascer rei para enfrentar e sobreviver esse Estado genocida. Então, não dá para dissociar o candomblé da luta antirracista.

Quando cheguei em Portugal em 2017, cheio de gás, pertencendo ao movimento negro, lutando no Brasil, e quando fui procurar o movimento negro aqui percebi que a espiritualidade era uma coisa que não estava embebida dentro do movimento e então comecei a me questionar: o candomblé está aqui desde a década de 1980 e não dialoga com o movimento antirracista, não dialoga com a quantidade de feminicídio que tem nesse país, não dialoga contra a xenofobia e a violência contra o imigrante? E percebi o quanto esse espaço, que mesmo estando aqui desde os anos 1980, foi um espaço majoritariamente de pessoas brancas, portuguesas e ricas. Então, descaracterizar o candomblé fez com que ele se distanciasse dessas lutas. Por isso me assustei tanto, porque isso já está na nossa pauta diária. O candomblé é a possibilidade da periferia poder comer bem. É um espaço que vai falar de saúde, de higiene, de meio ambiente e ele existe porque essa comunidade precisa resistir e sobreviver.

Por que a associação se chama AMOR?

Por que o AMOR estava disponível. Quando vamos criar a Associação, temos que criar uma sigla de acordo com uma lista a ser consultada. Tínhamos pensado em várias opções. Então, minha advogada disse: ‘Olha, A.M.O.R. está disponível’. Então, na hora, decidimos que seria AMOR, até porque Oxum é a divindade patrona da casa e Oxum é a Orixá do amor encarnado. 

Terreiro | 📸@GleiceBueno_
Terreiro | 📸@GleiceBueno_

Quem participa da Associação AMOR?


Nossa casa tem majoritariamente pessoas pretas e imigrantes, não só do Brasil, mas dos PALOP também. Tem portugueses pretos e alguns portugueses brancos. E também pessoas pretas que não estão em Portugal, mas na França, em Dublin, na Alemanha, na Espanha, e que fazem parte dessa casa. A casa não é somente para a prática espiritual, até porque para nós tudo é espiritual, mas é um espaço que teve a necessidade de se institucionalizar, tornar-se associação para que justamente pudesse dialogar com outras associações e outros projetos. Sintra é o local com maior quantidade de pessoas pretas da região metropolitana de Lisboa. 

Hoje, só de filhos e filhas eu tenho 53. Mas nós fazemos festas para 100 pessoas. E por isso a necessidade de ocupar um espaço maior, porque o anterior já não comportava. Conseguimos um espaço em Almargem do Bispo, onde vai funcionar a casa de candomblé e o projeto central, o carro-chefe, que é o Centro de Cultura e Ecologia Afro-lusófona AMOR, com vários núcleos: arte, ecologia, estudos africanos e afro-indígenas, biblioteca e resgate de línguas africanas dos PALOP. O espaço foi comprado por meio de um financiamento coletivo crowdfunding, e a comunidade tem ajudado na reforma desse espaço recém-ocupado.

Os portugueses, pretos ou brancos, têm se interessado em conhecer o espaço?

Muitos negros portugueses estão interessados no espaço. Eu sou das artes e meu marido também, então nós conhecemos muita gente. E sempre chegam pessoas com essa carência de espiritualidade. Enquanto o Brasil conseguiu manter, mesmo sob a égide do genocídio, a espiritualidade, tornando possível, hoje, que nós abríssemos um terreiro em Portugal, nos outros países PALOP houve um rompimento muito mais violento, e uma violência tão grande que isso se perdeu em gerações. Existe até a forma espiritual de tratamento entre a família, mas o conhecimento ancestral já foi interrompido por conta da demonização. A igreja católica cortou isso de uma maneira muito bem estratégica com a violência que foi o sistema colonial, a ponto dessas pessoas hoje – e falo de jovens pretos portugueses – não terem conhecimento sobre a sua espiritualidade ancestral. É algo que está lá bem perdido, mas é interessante quando pessoas que tiveram um pouco de vivência espiritual e vão experienciar um ritual ou uma celebração, elas se veem: ‘Ah, meu tio falava desse jeito’. E acabam se encontrando em alguma coisa, seja na comida ou na sonoridade, por exemplo.

Para um imigrante, suprir certas carências de pertencimento, muitas vezes, passa pela relação com a comida. Nesse sentido, a religião vem matar a saudade de nutrir os afetos e de voltar para a casa?

O mais importante é o terreiro como lugar de afeto. A comida tem o poder de religar e despertar memórias que às vezes nem são suas. E a comida tem esse efeito em vários lugares, não só no candomblé. Mas esse lugar de afeto, essa estrutura que pensa numa lógica de: Se eu sou, é porque você também é / Se eu pertenço, é porque você também pertence / Se você está doente, a comunidade inteira também está doente. É a filosofia Ubuntu. A experiência de imigração retira esse chão da gente, da família, do afeto e, quando as pessoas chegam e encontram esse lugar, elas verdadeiramente se sentem em casa a ponto de não quererem mais sair e a ritualística se estende. Tanto que temos uma rotina de visitas, já que as pessoas não vêm apenas quando tem liturgia, vêm porque querem estar nesse espaço. É importante beber desse espaço, que é um espaço de afeto mas também de ensinamentos. O candomblé é uma universidade. A gente reaprende a comer, reaprende a importância da comida, da terra, reaprende a valorizar aspectos artísticos.

Você pode explicar a diferença entre intolerância religiosa e racismo religioso, e como isso os afeta na prática?

Religiões de matrizes africanas sofrem racismo religioso porque o viés do racismo está sempre impregnado junto a essa intolerância. E por isso é um lugar que aterroriza o sistema. Até existe, mas é muito difícil uma igreja ser depredada porque é um espaço considerado sagrado, inclusive que serve para sustentar uma moral dentro da sociedade e que exerce poder. O racismo institucional vai existir primeiramente dentro da religião, do catolicismo. Ali serão impregnados já determinados mecanismos do racismo. O professor Jaime Sodré (1947-2020) fala sobre a diabolização do corpo do homem negro e da mulher negra, e não só do corpo mas de tudo o que esse corpo produz ou o que traz de herança. Então, existe um pacto de se distanciar de tudo que é africano, de tudo que é preto. Não podemos dizer que o candomblé é branco, que Orixá é branco. É inegociável para o sistema um espaço onde uma pessoa que, por exemplo, não tem o status que a sociedade capitalista vai oferecer como status de poder, em que você vê o preto, pobre, periférico e muitas vezes analfabeto receber orixá, se tornar rei e ter a comunidade inteira como seus súditos. Isso é uma lógica que aterroriza qualquer sistema de genocídio contra pessoas pretas. Então, o que sofremos na prática é racismo religioso porque o que vamos ouvir é: ‘Vocês são do diabo. Vocês cultuam o diabo. Vocês são de Satanás’. E o sistema cria mesmo essas lógicas.

Aqui em Portugal, um exemplo prático, tenho filhos que não podem usar seus fios de contas no trabalho. Um chefe viu e pediu que retirasse aquilo porque não era aceito, benquisto. Enquanto uma das colegas usa um terço. No caso do turbante, sabe-se quando o turbante é algo estético ou quando é um ojá, o pano que cobre a cabeça quando a pessoa está cumprindo seus resguardos. Se eu saio na rua assim, sou alvo de ser apedrejado. E, se for no Brasil, posso ser assassinado. Aqui, em Portugal, posso ter o meu direito negado, seja por uma pessoa que não quer me atender na padaria ou por alguém que vai me olhar de maneira repugnante como se fosse algo assombroso.

Portugal é um país que, na Constituição, é laico, mas na prática é católico. As instituições são católicas. Você vai nas finanças e tem um crucifixo com Jesus pendurado. Ou nos hospitais ou na Segurança Social pode encontrar a mesma coisa. Culturalmente é um país extremamente católico, e é o católico lá de trás, do século XV. É o catolicismo que corrobora tão bem com a sociedade racista que, há dois dias, o Vaticano divulgou o selo da Jornada Mundial da Juventude e é o Papa Francisco desenhado no monumento Padrão dos Descobrimentos, e tem até uma criança negra ajoelhada. Então, é esse catolicismo que compactua com o sistema racista, vangloria o passado e alimenta o heroísmo português porque se tirar isso eles não têm nada.

Como você percebe a presença brasileira em Portugal? É uma retomada de poder ou as pessoas ainda não têm essa sagacidade, se é que terão algum dia?

Eu penso que terão algum dia. Migram brasileiros de esquerda, de direita, de candomblé, de igreja neopentecostal. Cada vez mais a presença das igrejas neopentecostais em Portugal tem crescido e avançado, já desde muito tempo porque os PALOP também, muitos deles, são pentecostais. Sabemos, com o histórico do Brasil, o quanto a presença de um terreiro de candomblé se torna uma presença bélica para eles, esse confronto entre nós e eles, e mais deles para nós. São instituições que exercem poder porque são voltadas para o capitalismo. E isso, na prática, faz com que um filho meu tenha o Uber negado na porta do terreiro. Ou, outro exemplo, em que a motorista brasileira e evangélica colocou louvores no rádio bem alto e eles pedindo para abaixar e ali começou uma discussão dentro do carro. Então, temos trazido as nossas problemáticas também para cá.

Apropriação cultural é uma questão discutida na casa? Como, em 2023, ela se atualiza em território português?

Minha casa também tem pessoas portuguesas brancas. Um público bem menor, mas são pessoas aliadas à causa, que conhecem, que querem receber letramento racial, que entendem esse lugar do branco e do racismo. O cuidado que eu acho que deve ter é essa pessoa branca não querer descaracterizar um sistema já criado ou usar esse micro poder a seu favor. É uma discussão que já vem de muito tempo no Brasil porque temos hoje também um crescimento enorme de pessoas brancas, principalmente homens brancos, sendo que o candomblé é essa experiência matriarcal em suas origens. Inclusive, é um dos poucos espaços espirituais no mundo em que mulheres podem exercer papel de liderança. E, por isso, o candomblé tem uma preocupação extrema com as mulheres pretas. Não é um problema falar sobre isso na casa e trazemos eles para a discussão.

Quais são os próximos passos da instituição?

No final de outubro, a nossa Associação vai produzir junto com a Casa do Brasil de Lisboa e a Rede Afroambiental, a “Conferência da Cúpula dos Povos Afrodescendentes”. Vamos convidar diversos coletivos antirracistas que atuam aqui para escrevermos uma carta aberta para a ONU, porque no ano que vem termina a Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024). Uma carta com os nossos questionamentos e sobre o que foi feito e o que ainda será. Se os coletivos portugueses receberam verbas para atuar contra o racismo, por exemplo. Consideramos que seja também uma maneira de denunciar o Estado. A pauta será Cultura, Educação e Meio Ambiente porque entrará a Década do Oceano e precisamos entender como os povos afrodescendentes podem articular medidas e tecnologias para atuar e pensar Meio Ambiente. E não só na preservação, mas também nas questões que envolvem o racismo ambiental.

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