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Njingiritana, o festival das flores que nunca murcham

October 11, 2022
Njingiritana, o festival das flores que nunca murcham

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Njingiritana, o Festival Internacional da Criança regressa a Maputo para a sua sétima edição, a primeira pós pandemia e, uma vez mais, sob a direção artística da arte educadora e pianista Mel Matsinhe.

As várias iniciativas de Mel têm por base a liberdade da criança de ser e criar, com especial atenção nas crianças portadoras do espectro autista, procurando deixar um legado que dê continuidade à grandeza dos africanos e que um dia as suas crianças possam dizer “foi a professora Mel que me ensinou e me mostrou as luzes”.

O evento pretende assim incitar a relevância da criação e acessibilidade a conteúdos infantis apropriados no contexto moçambicano, regional e africano, sobretudo neste período após a pandemia da COVID-19.

Estivemos à conversa com Mel Matsinhe para saber mais sobre o evento, os desafios na organização e na atenção aos detalhes – o festival foi adaptado para crianças e adultos – e esta sua paixão pela educação infantil com foco na arte.

Mel, tens um especial olhar para as crianças, sobretudo, as crianças autistas. Estamos a falar da sétima edição deste festival. Como é que chegámos até aqui?

Sou uma mulher apaixonada pela música, apaixonada pelas artes e sinto-me escrava da criatividade. Não acho que seja possível vivermos sem criar e é nesse processo que canto e faço literatura. A Escola de Artes que tenho, nasce dessa veia criativa que, por sua vez, levou a que o festival nascesse.

O nosso enfoque é para as crianças que têm autismo. Eu própria considero ser uma pessoa autista, ainda que sem diagnóstico ou sem ter passado por traumas. Sou quem sou porque outras pessoas acreditaram e investiram em mim. E acredito que também posso fazê-lo de volta e a forma mais fácil de o fazer é através da arte e por isso criámos o Njingiritana.

Porquê este nome Njingiritana e qual o seu significado?

Esta apalavra só ganha sentido na minha língua africana. Se fechares os olhos e repetires dez vezes Njingiritana, vais perceber que é ser criança, ser criativo e é ser livre. É uma palavra que designa um pássaro pequeno que é tão livre e barulhento como as crianças. No fundo, este nome é uma homenagem à natureza das crianças. Este festival é a liberdade de ser, Njingiritana. É uma palavra de cinco sílabas mas que tens de dizer no tempo de duas sílabas. É uma palavra bantu, é uma palavra do sul de Moçambique. Para mim é o sinónimo de ser criança.

Queremos que as crianças sejam livres através das artes

Mel Matsinhe

Eu acho que uma das escravidões das crianças é estarem sempre a obedecer e as crianças têm de ser livres como os pássaros, têm de estar a voar e a contrariar. O festival dá espaço para que elas reclamem este lugar onde aprendem, onde criam e são livres. Nós, como adultos, temos de partilhar esse caminho com eles.

Falamos muito das crianças mas há um espaço específico dedicado aos adultos e um dos primeiros painéis é dedicado às políticas do ensino artístico em África. Porque queremos que as crianças sejam livres através das artes. Sinto-me uma pessoa privilegiada porque crio coisas e sou apaixonada por elas.

Esta edição do festival é a primeira depois da pandemia?


Não porque, não parámos. Seguimos a premissa da UNESCO de resiliarte. Questionámo-nos sobre qual melhor a forma de mantermos a realização do nosso festival e optámos pela via online. Envolvemos os pais, os educadores e as crianças da nossa escola. Durante a pandemia, em especial, as crianças com autismo sofreram muito. Não temos dados nem registros, mas certamente que viver a pandemia no lugar das crianças autistas deve ter sido muito duro. Agora, estamos muito animados de estar de volta ao vivo e de podermos de facto proporcionar o acesso à arte de forma livre. Podemos fazer música todos juntos.

Por vezes, enquanto adultos, procuramos no nosso dia a dia a criança que há em nós. O festival proporciona isso também?

O festival é um momento de celebração porque sobrevivemos a uma pandemia e é um resgate de liberdade também para nós adultos. Normalmente, escondemo-nos atrás das crianças, sempre temos a escusa, a prerrogativa das crianças mas também para nós fez falta este lado de ampliação de acesso à arte e ao nosso lado mais inocente.

O que pesou para a escolha do local onde vai acontecer o festival?

Na Xiluva Artes, nome da nossa empresa que tem uma escola, percebemos que as crianças fora da cidade, não têm acesso à arte. Sendo que entendemos o acesso à arte como um direito humano e como algo que deve ser subsidiado (mas não é tomado como tal), estendemos o festival como uma ação social e levámo-lo até à periferia de Maputo. O bairro onde vamos fazer o festival tem mais de 100 mil habitantes e sabemos que 65% dos habitantes do meu país são jovens com menos de 35 anos, ou seja, pelo menos 50 mil crianças serão o nosso público alvo.

Sempre fomos um festival acomodado, que sempre esteve no centro da cidade e é hora de levar o que estamos a fazer para fora da nossa zona de conforto, tanto crianças como adultos. Teremos um programa com atividades para as crianças, workshops, irão aprender a pintar o batique e a tocar o tambor, a contar a sua história de uma forma positiva. Teremos a escritora, aqui de Moçambique, a Eliana N’Zualo a coordenar um grupo de raparigas adolescentes que irão contar as suas histórias fora do papel de vítimas.

Haverá, inclusive, um dia dedicado só às mulheres (sábado, 15) e uma atividade que se baseia na deidade feminina sagrada, do Antigo Egipto em que os estudiosos europeus admitem que alteraram a história do Antigo Egito embranquecendo-a. Mas a história egípcia é negra e eu gostava muito que as minhas crianças de Moçambique soubessem isso. Sábado teremos um pré fest, em que um primo meu vai tocar a timbila (instrumento tradicional de Moçambique) e haverá ainda a apresentação de uma peça de teatro. Domingo encerramos em festa.

O africano preto, vítima, que se acha inferior, que não se une aos seus próprios, que só quer consumir, eu estou fora e quero que os meus filhos também estejam

Mel Matsinhe

Como é composta a equipa que leva a cabo este festival?

É composta, sobretudo, por mulheres que estão em formação (acredito que aprendemos fazendo). Para mim, é um privilégio que 90% da equipa seja composta por mulheres jovens, uma vez que, quero criar um espaço para mulheres.

Como é que obtêm os meios necessários para realizarem o festival?

Infelizmente, no meio social em que estou inserida, há muito poucas ofertas então, quando se apresenta algo, há muita aceitação. As pessoas conseguem reconhecer a necessidade que a nossa sociedade tem de uma transformação através das artes. Estou muito satisfeita com a rede de apoios. Fomos a um município (na fronteira com Maputo) onde o presidente disse-nos que não queria que fossemos a mais lado nenhum. “Vocês têm de fazer esta parceria connosco e nunca mais terminar”, disse. Ainda ontem recebi o contato de uma senhora a propor-nos parceria, sendo que não a conheço e aí consigo perceber que as pessoas reconhecem o valor do festival. No pós covid, existe muito espaço e muita necessidade de fazer um trabalho de cura, de promoção e de amor na sociedade, em especial pelas crianças, e penso que a Xiluva Artes pode ser esse ator. O município de Marracuene e a Galeria de Maputo estão cientes dessa importância. Só das autoridades é que não falo.

Uma das vontades do evento é crescer e ser ser além fronteiras?

Além fronteiras ele já está a ser. Temos este ano um músico do Mali que vai tocar cora, temos um escritor do Benin (vem com o seu livro sobre 50 pioneiros africanos), teremos do Ruanda um diretor digital, uma cineasta do Zimbábue e temos uma especialista de música vinda da África do Sul e, no fundo, acredito que o futuro artístico de África vem das parcerias intercontinentais. Virá também uma contadora de histórias de Portugal e uma DJ da Noruega. Ao longo destes seis anos corri, corri, corri e cheguei ao ponto em que, se queremos chegar longe temos de criar estas parcerias… se quiser ir depressa, vá sozinho, se quiser ir longe, vá acompanhado.

Foi imediato, na concepção, que este festival era para crianças?


Como criança, tive uma infância muito feliz e tive a sorte de terem apostado em mim. E considero que a minha geração, que é a geração que nasceu na altura das independências dos PALOP, cresceu um pouco perdida entre liberdade, identidade e escolha de caminhos. Então, escolhi de forma consciente trabalhar com crianças para as ajudar a entenderem as suas possibilidades e as suas opções.

Criei uma escola de artes, um concurso de literatura e um festival de artes. Estas três coisas foram criadas especificamente a pensar nas crianças. Dar-lhes aquilo que eu não tive. Tenho imensos sobrinhos e crianças à minha volta e o festival Njingiritana é uma conexão com a frase “Flores que nunca murcham”,  do nosso primeiro presidente Samora Machel. Fiz um caminho sem dificuldades e disse pra mim mesma que, não acreditando na minha geração, acredito na geração seguinte à minha, sendo que o meu contributo é na vertente artística.

O Njingiritana abrange também crianças autistas. Há uma complexidade na elaboração das atividades, na escolha dos educadores e tudo mais. Como é que foi desenvolver esse processo, havendo essa dualidade?

Para mim, a vida é uma festa e as pessoas gostam de se divertir sejam elas o que forem. Incluo todos na mesma panela. Não percebi essa dualidade enquanto concebia o festival, é mesmo uma questão de ser inclusivo, não por ser benevolente mas simplesmente porque todos pertencemos.

O que é que esta edição vai ter de diferente de todas as anteriores?

Há três elementos diferenciais: a primeira é que vamos sair da cidade de Maputo. Teremos atividades, específicas e fortes, para crianças e adultos fora do centro. Levando a oportunidade que estas crianças nunca teriam, noutras condições. A segunda característica é esta dimensão pan-africana onde iremos ser anfitriões de artistas vindo de vários países africanos, como referi há pouco. Em terceiro lugar, é esta criação de um espaço em que crianças e adultos podem criar arte. Estas são as novidades que não queremos que fiquem para o futuro.

Têm o apoio de algum fundo artístico?

Uma parte do festival é financiada, menos de metade mas, para mim, este é um ponto que não deveria merecer destaque. Acho que a arte deve ser subsidiada, o direito à arte, o direito à cultura são considerados direitos humanos. Não deveríamos estar a negociar o acesso à arte. Em sete anos de existência, ter o financiamento para a realização do festival é um “finalmente”. Permite realizar o acesso pleno a este direito humano pelas pessoas pequeninas, que são as crianças. Não podemos ser reféns dos recursos financeiros e a cultura deve ser considerada pela UNESCO como um pilar de desenvolvimento, porque as crianças que não sabem sobre a sua cultura têm rasos horizontes.

Mel, qual é o legado que queres deixar?

Eu sou uma mulher assumidamente africana, com um background de historiadora e música, a residir na Europa, na Escandinávia, e sou da opinião que há pessoas que impulsionam processos e outras dão continuidade. Se falo de um legado, quero que as crianças possam saber de onde vêm para poderem desenvolver quem querem ser, para que as crianças possam valorizar a sua herança cultural, sem se privarem de serem cidadãos universais. Elas não devem deixar de amar o hip hop porque amam a marrabenta, não devem deixar de amar Zunzé, o espírito das águas de Moçambique, porque amam novels. Devem não só, consumir as histórias dos outros como devem, também, alimentar o universo com as suas histórias. Isso só será possível se souberem de onde vêm. Se não tens uma herança, não vais poder contribuir para o futuro. Por exemplo, se não souberes falar o Xitswa (língua falada em Inhambane), não vais saber falar do amor no universo africano.

A dimensão de história permite-me ter um contributo onde junto a pele escura com a consciência e tenho de olhar para todas as civilizações, ciências e outros contributos das pessoas negras no mundo. O africano preto, vítima, que se acha inferior, que não se une aos seus próprios, que só quer consumir, eu estou fora e quero que os meus filhos também estejam. Os grandes na história são os africanos e quero que o meu legado seja um dia as crianças dizerem que são quem são porque ‘a Professora Mel me ensinou e me mostrou as luzes’.

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