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“Uma boa terapia é indistinguível de uma boa conversa”, Henda Vieira Lopes

Henda Vieira Lopes

Nélson Vieira Lopes é o seu nome de batismo, mas a vida e os ensinamentos ancestrais fizeram com que se identificasse como Henda, o nome que os seus pais quiseram que tivesse e que fora negado pelo registo português.

Vários aspetos da vida de Henda manifestam a valia que foi ter feito uma viagem interior de autodescoberta e de autoconhecimento, considerando-se ser “filho do privilégio” por ter tido acesso aos estudos até se formar em Psicologia, por ter crescido à margem das desigualdades sociais e raciais e por ter tido a oportunidade de ter/ser o que quis.

A família de Henda é proviniente de Angola e foi lá que passou várias vezes as suas férias de verão, ainda que desenquadrado daquela vivência geográfica e muito do seu tempo por lá resumir-se às horas que dedicava à leitura. O seu pai foi uma das vítimas do 27 de maio de 1977. 

Primeiro, quis ser médico mas logo percebeu que a mente humana seria um desafio ainda maior para aquela que seria a sua real curiosidade em relação ao ser humano. Acabou por entrar no mundo da psicologia e professa que quem está bem precisa tanto de terapia quanto quem se sente doente ou frágil no campo metal.  “Uma boa terapia é indistinguível de uma boa conversa”, diz-nos.

Falámos com o psicólogo para que nos clarificasse a importância da saúde mental – sobretudo nos jovens – enquanto seres individuais e sociais e da necessidade de eliminar os estigmas associados às terapias do foro psicológico e psíquico.

Nelson é o teu nome de batismo mas pediste-me para tratar-te por Henda. Queres explicar-nos por que adotaste este nome?

Agradeço-te começarmos por aí porque vai definir um pouco o rumo da nossa conversa. Então, eu sou angolano, filho de mãe e pai angolanos, nasci em Portugal, em ’74. Nesta altura ainda não existia o estado angolano e nascendo em Portugal, a legislação dizia que eu seria automaticamente português e como sabes,  Portugal tem uma determinada política em relação aos nomes em que só alguns são permitidos. Os meus pais, por patriotismo quiseram chamar-me Hoji Ya Henda [nome de guerra do combatente e um dos heróis nacionais José Mendes de Carvalho, morto em 1968] que quer dizer mais ou menos o leão da compaixão, traduzido do kimbundo. Não foi aceite. Os meus pais alegaram o facto de eu ser filho de pais angolanos, ter ancestralidade africana, mas o estado português não aceitou. Segundo o que me contaram, o caso foi a tribunal e tudo mas, veio a sentença e portanto não poderia ser este nome e um pouco por falta de alternativa fiquei com o outro nome para contornar. E assim me tornei Nélson. E fui Nélson durante muito tempo da minha vida. O meu pai foi assassinado durante maio de ’67, foi uma situação em Angola dentro do MPLA e o meu pai foi um dos oitenta mil angolanos que perdeu a vida nessa altura. Foi um grande choque para a família, o meu pai era médico, era delegado providencial de saúde, era o filho mais velho e, principalmente, a família do meus pai, sempre me tratou por Henda, o nome que o meu pai me queria dar, também em homenagem a ele.

Em criança não liguei muito a isso mas na adolescência quando começas à procura de respostas sobre quem tu és e à medida que fui ouvindo estas histórias, fiquei muito zangado com esta questão e comecei a abandonar o Nélson. Naturalmente, muitas pessoas chamam-me Nélson. Às vezes dá muito trabalho explicar esta história. Profissionalmente sou conhecido por Lopes. Quando eu próprio comecei o meu renascimento africano, recuperei o Henda e agora, normalmente, uso sempre. Já não me incomodo muito com Nélson porque também assumo a minha herança cultural europeia mas pronto, Henda é o nome que está mais próximo do meu coração.

Como foi o teu percurso, em linhas gerais, até seres a pessoa e o profissional que és hoje?

Tive um percurso muito atribulado em criança e acho que isso sempre teve muito impacto e à medida que vais fazendo releituras da tua vida, acabas por perceber os labirintos por onde andas. Costumo dizer que sou filho do privilégio porque nem toda a gente teve a oportunidade de viver e de estudar em Portugal. Os meus pais na altura em que nasci estavam em Portugal, a minha mãe estava a estudar Direito e o meu pai Medicina. Nasci em ’74 e em ’75, quando se dá a independência, voltamos para Angola, mas a situação era incerta e, mesmo com questões de saúde, as coisas não estavam a correr bem e então voltei sozinho para Portugal. As fronteiras estavam fechadas e a mobilidade dos angolanos estava condicionada. Fui acolhido por uma amiga da minha mãe e fiquei cá. A minha mãe por questões profissionais conseguia visitar-me muitas vezes mas cresci longe da minha família e da minha cultura. A amiga da minha mãe era portuguesissíma, uma senhora que eu sempre tratei por avó, que me deu muito, muito amor, que me protegeu muito, a até mesmo em discussões sobre racismo, sempre me protegeu muito. Então fui um miúdo muito pacato, muito tranquilo, com muito boas notas. Não tinha africanos à minha volta, aliás, costumo dizer que fui branco até aos 12 anos. Só havia brancos à minha volta portanto era essa cultura que eu vivia.

Quando ía a Luanda e, a partir de certa altura comecei a ir todos os anos, para mim era um choque cultural. Era muito confuso. As regras que tinha na Europa lá não funcionavam. Os padrões que tinha também não e, a acrescer a isso, eu era um rapaz muito tímido e ficava constrangido pois nunca sabia bem o que andava lá a fazer. Sentia-me estrangeiro. Normalmente, ficava lá 15 dias e refugiava-me em casa, nos livros que foi algo que sempre me fascinou. Entretanto, a nível de estudos quis ir para Medicina. Mudei de ideias e achei que mais interessante do que estudar o DNA seria estudar o cérebro então lá fui para Psicologia. E isto coincide também com o que chamo de meu processo de renascimento. Comecei a aperceber-me que não me identificava assim tanto com a cultura angolana e, por outro lado, a cultura europeia que me tinha dado muita coisa, e eu não nego, mas não é daí de onde venho. Então comecei à procura de outras coisas. e foi aí que eu descobri a capoeira e o movimento rastafari. Duas filosofias uma mais corporal, a capoeira, e a outra mais espiritual, o movimento rastafari. Foi assim uma descoberta muito grande. Entretanto, percebi que as minhas escolhas profissionais não poderiam ser algo normal. Recordo-me de um episódio em particular quando estava com um grupo de amigos, todos brancos em que eu disse que tinha entrado para Psicologia e um deles, um dos mais velhos, o mais desbocado, disse: “Epá, vais para Psicologia, então abres o teu consultório e vai para lá alguém, vê que tu és preto e fica tipo, epá não quero e o que é que tu vais fazer?”. Ficámos todos constrangidos e sem saber o que dizer. E na verdade essa era a realidade e as saídas profissionais poderiam ser melhor pensadas.

O movimento rastafari e a capoeira fizeram-me pensar em como é que poderia juntar a Psicologia aquilo que sou e que quero ser. E a resposta, na altura. Estava a trabalhar na área social e pensei ‘quero trabalhar com jovens da diáspora africana’.

Em primeiro porque eu próprio sinto a divisão. Esta mestiçagem cultural daquilo que é a minha ancestralidade, daquilo que sinto e vivo e talvez, enquanto, psicólogo possa ajudar outros jovens a encontrarem a sua identidade.

Faz falta perceber que temos muitos aspectos da nossa cultura que foram relegadas pela colonização. Por uma questão de sobrevivência, o nosso povo foi-se adaptando mas está na hora de resgatarmos as nossas raízes, desenvolvê-las e dar frutos porque senão estamos sempre a colher frutos de outras árvores. Isso pode acontecer mas é essencial que tenhamos os nossos próprios frutos para podermos escolher.

Acreditas que um profissional de psicologia só consegue fazer bem o seu trabalho se, emocionalmente, estiver bem? 

Não é uma resposta simples mas tu não consegues fazer ninguém crescer mais do que o teu próprio nível de conhecimento e de consciência. É tal qual um professor. Só podes ensinar aquilo que sabes. Nós enquanto psicólogos o que tentamos fazer é ajudar a pessoa a encontrar os seus próprios recursos para conseguir ultrapassar os seus obstáculos. A psicologia não é só para quem está mal, a psicologia é também para quem está bem e precisa de crescimento pessoalTenho pacientes com verdadeiras e sérias problemáticas mas também tenho pacientes que procuram formas e ferramentas de auto crescimento. 

De que forma usas a tua inteligência emocional para lidares com todas as histórias que acompanhas? 

Se te falar das situações das famílias às quais os jovens eram retirados ou das experiências em locais de institucionalização, será algo realmente duro.

Tive um professor, o nosso mestre de terapia familiar, o saudoso Professor Pina Prata que nos dizia sempre que “um terapeuta é um médico que se administra a si próprio a um paciente como remédio”. Portanto, vou com aquilo que tenho para dentro deste sistema que é o sistema do paciente.

Empatizo com a vivência mas sempre sabendo de onde venho, sempre sabendo o que é meu. Por mais que aquela história ecoe com a minha aquela não é a minha história.

Há algum exercício a que recorras para conseguires “desligar” após um dia de trabalho?

Eu uso muito uma técnica chamada “dumping”, ou seja, despejo na sessão, fica ali. Muitas vezes, passo para o papel aquilo que senti, como correu e temos também ao nosso dispor mensalmente um departamento/grupo de intervenção em pares (vários terapeutas familiares) para falarmos sobre como nos sentimos nas sessões, o que está a acontecer, as dificuldades os medos, os dilemas éticos e etc..

O que mais te fascina no trabalho sobre a saúde mental nos jovens?

Os jovens são uma categoria à parte, muito, muito interessante porque nós, enquanto adultos, somos muito mais estrategas e bastante mais defensivos, questionamos mais. Criamos uma estrutura de ação, temos uma personalidade e temos muita dificuldade em fazer algo diferente porque achamos que deixamos de ser nós próprios, mesmo que aquilo que estejamos a fazer naquele momento seja prejudicial. Os jovens são diferentes. Estão numa altura de revolução de transformação incrível.

As coisas mais poderosas que um terapeuta diz não são as afirmações, são as perguntas que fazem despoletar os processos nas pessoas em que se encontram com os próprios recursos que já têm dentro de si.

Acreditas que Portugal, em termos de saúde mental, tem-se feito um bom trabalho no que diz respeito à camada juvenil mais desfavorecida?

O plano de saúde mental em Portugal não é viável e não permite dizer que o acesso à saúde mental não é um privilégio. As consultas são caras e os projetos dependem muito de financiamento governamental e nem sempre têm sustentabilidade. Esta é uma área que funciona muito a nível da prevenção e resume-se a projetos que começam mas que depois caem, não há uma estrutura forte. As que a têm, estão mais ligadas à cura, às questões da patologia, mesmo assim, é muito difícil conseguirmos encaminhar porque os serviços estão cheios.

Nas escolas há um psicólogo para três ou quatro escolas, para um agrupamento. Esse psicólogo tem de fazer orientação profissional e uma série de coisas que sobra pouco tempo para os adolescentes em si como merecem.

O sistema em vez de ajudar-te, muitas vezes complica. Não precisamos de mais profissionais, precisamos apenas que eles sejam integrados. A própria população precisa de sentir que a saude mental é tão necessária como o serviço de cardiologia ou outro que estejamos habituados a ver presentes no sistema nacional de saúde. Há muito para fazer em termos de saúde mental e muito sobretudo junto das comunidades afrodescendentes.

No trabalho que fazes com os teus pacientes sentes resistência devido ao estigma que existe em relação à saúde mental?

Trabalhei em diversos contextos e enquanto psicólogo tenho diversas intervenções. Quando são programas que os miúdos nem interpretam dessa maneira, aí é muito fácil. Quando falamos da psicologia e da psicoterapia, aí sim há o estigma.

É frequente ouvir-se “ah isso é para a pessoa que é fraca da cabeça, essa pessoa precisa é de trabalhar…”. A saúde mental é uma componente da saúde física. O objetivo não é curar os malucos, o objetivo é fornecer, é capacitar as estruturas das pessoas porque tudo o que tu ignoras controla-te.

Quando compreendemos como é que nos relacionamos com o outro, como é que influenciamos o outro, como seres sociais que somos, as nossas ações intervêm e percebemos que é impossível não comunicar. Comunicar é termos controlo do que estamos a mandar para o outro lado e é assim que vais conseguir ter melhores relações, é assim que vais saber quem és. Em sociedade estamos habituados a estar de forma exterior mas é importante conseguirmos olhar para o interior porque é isso que nos dá ferramentas para sabermos sair dos lugares de dor.

Termos a capacidade de perceber a linguagem emocional uns dos outros, consoante os paradigmas que cada um enfrenta. Ter literacia emocional é absolutamente fundamental para podermos compreender coisas tão básicas quanto saber o porquê de estar triste ou zangado. Há muitos conflitos emocionais porque as pessoas não se entendem umas com as outras. Chamo de literacia emocional porque é preciso saber comunicar.

Os tratamentos para problemas relacionados com a saúde mental não implicam todos uma medicação associada, certo?

Os psicólogos e os psiquiatras vêm de correntes completamente diferentes. Nós psicólogos nem sequer podemos prescrever medicação. O nosso trabalho, do ponto de vista da terapia, passa por fornecer ferramentas emocionais para que haja confiança ao encarar as situações sem ser de forma destrutiva e não tentar substituir alguns mecanismos neuronais como acontece com o recurso à medicação. Com a terapia, o que se tenta fazer é que a própria pessoa desenvolva mecanismos para resolver as situações. Exceto nas situações em que a pessoa está demasiado depressiva em que se recorre a terapias mais corporais. Mas, apenas temporariamente, para que depois possas ter autonomia e consigas ser tu a sair das situações.

Que ferramentas ou práticas estão ao nosso alcance, no dia a dia, para mantermos uma saúde mental saudável?

Passa pelas estratégias físicas, desde ter um hobbie, fazer desporto, desfrutar da natureza ou o que for. Não no sentido de te alienares de ti mesmo mas de nutrires e potenciares o melhor de ti. É ser e estar saudável a fazer o que se gostas.

Clica no play abaixo onde poderás ouvir Henda Vieira Lopes explicar como vê a saúde mental da comunidade negra em específico e o que é necessário fazer para que a mesma possa ganhar atingir um estado de equilíbrio.

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