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Toca Tchur, uma celebração da vida

A morte é um evento inevitável com o qual todos lidaremos em algum momento das nossas vidas. No entanto, a morte é encarada de forma diferente em todo o mundo. Alguns sentem que as suas vidas encontram-se, repentinamente, sem sentido quando perdem um ente querido; enquanto outros encaram-no como um rito de passagem ou uma extensão da vida, mas num reino diferente. 

A narrativa posterior é muito comum nas nações Africanas, onde a morte, o luto e os rituais fúnebres têm como pilares de sustentação a cultura, a tradição e a religião indígena. E, embora certamente, não seja fácil, culturas ao redor do mundo desenvolveram os seus próprios rituais e tradições para celebrar e lidar com a realidade da morte. Esses pilares exalam a noção de existência após a morte e o poder ou o papel do antepassado falecido. Com o surgimento de religiões, como o islamismo e o cristianismo ou mesmo mudanças sociais como a globalização, os rituais evoluíram muito ao longo do tempo, mas ainda assim várias etnias mantiveram as suas tradições temáticas intactas no coração.

Através de nações lusófonas em África, essa crença ainda está fortemente presente, mesmo no pós-colonialismo, como uma marca de identidade e história que muitas tribos nativas se recusaram a abandonar. A celebração da vida, após uma morte, nos países Africanos acaba por não ser apenas um assunto de família, mas um importante evento sociocultural. Esta é uma característica única do continente em relação ao resto do mundo, onde geralmente apenas familiares e alguns amigos comparecem aos funerais. Do Komba em Angola ao Toca Tchur na Guiné-Bissau, ainda se testemunha hoje em dia como os nossos falecidos são particularmente colocados para descansar.

Todavia, mesmo com custos e relevância inigualáveis ​​em toda a comunidade, muitas famílias reúnem-se para encher um poço abundante de recursos para garantir que a multiplicidade da celebração transcenda os sonhos das pessoas e manifeste igualmente a grandiosidade do ente querido que faleceu. Apesar das suas muitas nações e religiões indígenas, no ilimitado continente Africano, cada grupo étnico ou tribo tem a sua própria forma de rituais de morte, até dentro do mesmo país. Ainda assim, devido às crenças tradicionais partilhadas sobre os mortos, existem algumas semelhanças nos temas básicos quando se toca aos antepassados. Tomemos, por exemplo, as etnias Balanta e Pepel na Guiné-Bissau, duas tribos com actos fúnebres similares mas, no entanto, distintos. 

Para ambas as tribos, sendo animistas, a compreensão de que o curso da vida é cíclico e não linear, como uma experiência contínua, permite que a morte seja percebida como um deslocamento para outro espaço habitacional. Consequentemente, existe a noção de que o “enterro perfeito” garante que o espírito do antepassado não fique entre os vivos para assombrá-los ou controlá-los, mas sim para protegê-los enquanto descansa pacificamente. Destacando então a narrativa de que aqueles que estão no reino dos mortos possuem poderes sobrenaturais, podendo amaldiçoar, curar ou abençoar e tirar ou dar vida. Entretanto, a pessoa também pode reencarnar em várias pessoas, como renascidos, ou habitar o mundo espiritual através da sua forma terrena como antepassados, posição muito valorizada nas crenças Africanas. Tornar-se um antepassado é, portanto, uma meta valiosa para muitos. E não enterrar o corpo “adequadamente” implica a possibilidade de a pessoa tornar-se num espírito vagante, incapaz de prosseguir convenientemente após a morte, constituindo um prejuízo para os que ainda estão vivos. Aliás, após uma morte, geralmente são procuradas respostas divinas para atribuir uma causa ao ocorrido: inveja, bruxaria, ofensa aos antepassados ou aos deuses. Então, aqueles que podem ter sido rotulados de indignos ou feiticeiros, indivíduos que morreram “muito cedo” ou não levaram uma vida “significativa” e “honrada”, talvez lhes seja recusado um “enterro perfeito” também, negando-lhes assim que se tornem antepassados.

Após um falecimento, família e amigos reúnem-se para celebrar a vida do indivíduo, denominado Toca Tchur, nome comum entre todas as etnias. Na etnia Balanta, caso seja um homem que tenha cumprido o fanado (conhecido por circuncisão), é lavado pelos anciãos e enrolado num fundinho, um tecido tradicional. Os vizinhos são então informados da morte através dum bombolom (tambor grande). No entanto, se o falecido for alguém mais jovem, por exemplo, como mencionado previamente, a celebração não ocorreria, pois a sua morte seria considerada ultrajante ou talvez uma maldição. Eventualmente, após a mensagem ser enviada, o falecido será coberto mais adiante por mais panos doados por entes queridos como vizinhos, família e amigos. Ao longo da cerimónia os anciãos, em conjunto, retiram então os tecidos e entregam-nos à família para que os guardem carinhosamente depois de serem lavados, sendo assim uma lembrança permanente. Além disso, caso a família não possa cobrir o montante duma caixa (caixão) para o enterro, eles podem enterrá-lo numa esteira de palha. Assim têm a possibilidade de finalizar a primeira parte da cerimónia, depois de atravessarem por cima do porco sacrificado, abençoando o animal e a futura alimentação dos participantes. 

Do álcool à fartura de comida, a celebração evidencia o orgulho que as pessoas carregam por estarem presentes e como vêem como uma bênção o poder duma vida plena e encerrada pela velhice. A celebração tem um impacto significativo no bem-estar dos entes queridos, mesmo que já tenham aceite o falecimento em questão. Ao longo do Toca Tchur, também são utilizados um bombolom e um tambor para que se estabeleça a comunicação com o espírito, conduzindo-o diretamente ao mundo dos mortos. Para finalizar a cerimónia, danças e rituais são feitos com os símbolos dos povos ganha pão, dependendo de cada profissão. E a maioria das cerimónias são realizadas entre abril e junho, pois representa a época de colheitas.

Sob outro enfoque, em comparação à etnia Balanta, na tribo Pepel, o corpo é lavado e mumificado c/ panos, como manda a tradição, pela primogénita e a esposa. E requer ter passado por fana também. O pano mais utilizado entre os Pepel é o panu di pinti, ou n’ghalu siri, tecidos que são considerados uma parte importante do património cultural do país, vistos como um elemento decorativo e como parte do património artesanal em várias cerimónias. A família veste-se toda de branco e besunta a cara com farinha. Consequentemente, os parentes também levam panos e cobrem o falecido por um período de três a quatro dias. Também recebem panos durante a celebração, que são colocados depois sobre as suas cabeças e em cada ombro. Feitos os preparativos, discute-se a herança e só então o corpo pode ser levado para ser enterrado. Ademais, bem como os Balanta, o corpo do falecido tem que passar por cima de uma vaca para abençoar a comida.

Antes de marcar a data do Toca Tchur, o/a primeiro/a herdeiro/a reúne todos os irmãos e a restante família com o objetivo de decidir quando se deve realizar a cerimónia. A celebração também coincide com a mesma época dos Balanta, devido à comercialização e colheita do caju, permitindo que as pessoas tenham assim mais conforto financeiro para cumprir as suas funções. Devido à longa discussão antes da data, todos os familiares têm a oportunidade de reunir oportunamente as suas finanças e comprar os animais que cada um deve fornecer para finalizar a cerimónia. como vacas, porcos e cabras.

Ainda assim, o primeiro filho ou filha é a responsável, pois a ele cabe não só fornecer e sacrificar uma vaca, como também é encarregue de obter duzentos litros de aguardente para que convidados e outros participantes possam “lavar” as suas mágoas e “aquecer” os seus corpos com as memórias do falecido. Pouco depois da data marcada para a cerimónia, os familiares tendem a mergulhar incansavelmente no trabalho, por vezes esgotando-se, para poderem fazer face aos elevados custos da cerimónia. Estes, por vezes, decidem migrar para outras parte do país (Bafatá e Gabu) ou até mesmo para fora para poder cobrir todos os custos cerimoniais que lhes cabe. 

Os instrumentos são o bombolom e os tambores como evidenciamos acima com os Balantas, e que também significam um trânsito de comunicação entre os mortos e os vivos. Além disso, se o Toca Tchur for para idosos, o evento dura até três dias. Mas se o falecido for chefe de tabanca, ou homi garandi (ancião), pode durar seis dias. Tal e qual, as duas tribos acreditam firmemente que não prosseguir com esta cerimónia pode levar a um espírito angustiado que pode voltar para prejudicar gravemente os vivos. Assim, os membros da família tendem a apressar o processo e fazer a cerimónia o mais rápido possível para que possam ter um novo começo. À semelhança dos Balanta, são realizadas do mesmo modo danças ritualísticas, ao redor de animais sacrificados, onde os instrumentos da profissão são exibidos como símbolos não só de emprego mas como uma orgulhosa fonte de rendimento que gerou os fundos para a cerimónia em primeiro lugar e também sustenta todos os seus entes queridos.

Mesmo com as suas semelhanças culturais distintas, cada etnia guarda as suas diferenças e sobressai-se justamente por isso. Ambas carregam as suas tradições e rituais na manga, garantindo que sejam preservados e respeitados de acordo. Assim, ao dar crédito ao conceito Africano de morte, afirma-se que a morte indica a separação física do indivíduo de outros humanos. Os ritos e cerimónias fúnebres servem para chamar a atenção para essa separação permanente, e é dada atenção especial aos ritos fúnebres para evitar ofensas indevidas aos mortos.

Em contraste com as sociedades ocidentais, muitas nações Africanas fornecem-nos a compreensão de que a morte não deve ser temida ou negligenciada; é um estado de presença onde simplesmente transcendemos e entramos noutra jornada, mas ainda temos a oportunidade de cuidar dos nossos. Assim, uma celebração da vida pode ser tão única quanto a pessoa que morreu, uma chance para que seus entes queridos lembrem-se abertamente e exalem todo o amor e apreço que tinham pelo falecido. Não é o caso sombrio de sempre. Em vez de focar no luto e na tristeza de dizer adeus, mudar o foco para a personalidade do falecido, o regozijo que estes trouxeram para os outros e a vida que viveram, propositalmente concede-nos agência sobre o nosso luto.

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