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Vozes da Resistência: o legado de luta em Cabo Verde 

Mapear e escapelizar as inúmeras arquiteturas de resistências que se deram no interior do Cabo Verde colónia portuguesa, não é uma empreitada possível num artigo desta dimensão, uma vez que seria necessário um estudo mais aprofundado de cada uma delas. O que pretendo com este artigo de opinião, nada mais é do que dar a conhecer um dos aspetos estruturantes da realidade cabo-verdiana, como de todos os povos que sofreram com a colonização: as resistências ao sistema opressor colonial.

No ano (2024) em que se comemora o centenário do nascimento de Amílcar Cabral, pai das nacionalidades cabo-verdiana e bissau-guineense, aquele que é considerado como um dos maiores líderes anticolonialistas africanos, tendo idealizado e liderado a luta de libertação nacional tanto de Cabo Verde como da Guiné-Bissau nas matas desta, pretendo refletir neste espaço as lutas de resistência que ocorreram em Cabo Verde, na antecâmara do início das lutas anticolonialistas africanas da metade do século passado. Tendo isso em conta, é costumeiro entre os mais incautos pensarem que os espaços antes ocupados e colonizados pelos poderes coloniais europeus não foram também atmosferas de lutas e resistências, âmbitos por excelência de invenção de configurações de índole diversas com o intento de escapar às amarras engendradas pelo colonizador, de modo a levar a sua empreitada a bom termo. Mais, pensar assim, isto é, que os vários povos africanos não foram contrários à implantação das forças opressoras em espaços a que lhes pertencessem, criando arquiteturas várias que pudessem aplacar a fúria sanguinolenta e extrativa dos invasores, é negar aos povos autóctones oprimidos a sua subjetividade, qual narrativa eurocêntrica, fazendo com que os primeiros fossem vistos sempre como sujeitos passivos, cabendo aos últimos o protagonismo que lhes outorga conceber uma narrativa que tende a reificar no presente as ressonâncias coloniais.

No espaço arquipelágico cabo-verdiano foram várias as manifestações de resistências que puseram em confronto, por um lado, a população nativa e, por outro, o regime colonial português. Os primeiros focos de resistência tiveram lugar logo com o início do povoamento das ilhas de Cabo Verde, primeiro Santiago, logo a seguir a ilha do Fogo, e só mais tarde (depois do século XVII) as restantes ilhas foram povoadas. Isto, com a chegada forçada dos primeiros africanos escravizados na região, que na altura era conhecida como Alta Guiné (atualmente a região que abarca a Guiné-Bissau, Gâmbia, Senegal), para Cabo Verde, após a publicação da carta régia de 1466 que oferecia privilégios àqueles que viessem viver em Santiago, tais como liberdade para comerciar com a costa da Guiné, direito de comerciar todos os produtos, exceto armas, ferramentas, navios, entre outros.

É a partir deste cenário que vai nascer no Cabo Verde de antanho as primeiras formas de resistências ao poder instituído, tendo nos africanos escravizados os primeiros “cabo-verdianos” a ludibriarem o cerco imposto pelos seus senhores brancos. Importante realçar que com os primeiros escravizados fugitivos que se iam refugiar nas zonas montanhosas do interior de Santiago, de difícil acesso aos colonos, estes tacharam-nos de “vadios” (badiu), termo pejorativo pelo qual, hoje, são conhecidos os naturais da ilha de Santiago, atualmente ganhando uma ressignificação positiva. 

A ilha de Santiago, por ser a primeira a ser povoada, foi desde os primórdios da colonização o centro das revoltas que assolaram a colónia e que, de certa forma, abalou a arquitetura colonial. As revoltas mais conhecidas tendo como epicentro a ilha de Santiago tiveram lugar no interior, como as Revoltas dos Engenhos (1822), de Achada Falcão (1841) e de Ribeirão Manuel (1910), não obstante ter ocorrido no arrabalde da capital focos de tensão e subversão do poder instituído, como o caso da Revolta de Monte Agarro (1835). Se nas três primeiras revoltas supramencionadas estão na base da sua deflagração os desmandos perpetrados pelos morgados, já no segundo caso e, de acordo com o investigador Redy Wilson, tendo como base “os documentos existentes [sobre a mesma] demonstram que os escravos e forros reunidos em agosto de 1835 na tal casa situada no assentamento morgadio nos arredores da capital, não passaram de figurantes nas mãos de uma elite esclavagista, num cenário de disputas palacianas de poder”, porém, esclarece mais adiante, “não quer[er] com isto dizer que esse acontecimento não se insere nos cinco séculos de resistência, indignação e revoltas que marcaram a história cabo-verdiana, espelhadas quer nos movimentos de escravos autolibertos transformados em seguida em movimentos de campesinato nas ilhas de Santiago e Santo Antão, quer no movimento operário mindelense ou movimentos urbanos político-literários e identitários no Mindelo e na Praia.”   

As revoltas no interior de Santiago, como já referi, foram consequências dos desmandos e arbitrariedades que os morgados exerciam sobre os rendeiros e camponeses que cultivavam as suas terras, como aumentos exagerados das rendas sobre as propriedades arrendadas por estes que não obedeciam ao estipulado na celebração do contrato de arrendamento, demolição das casas dos rendeiros quando estes não conseguiam liquidar as suas dívidas atempadamente, etc.

A Revolta dos Engenhos

Em 1822, na Freguesia de Santa Catarina, interior de Santiago, deflagrou-se uma rebelião que opôs os rendeiros das propriedades ao vínculo dos Engenhos administrado pelo Coronel Domingos Ramos. Este levante teve como mote a Constituição de 1822, que tinha abolido todos os vínculos, como Morgadios e Capelas, alegando aos rendeiros que as terras pertenciam a quem as trabalhasse. 

Perante este cenário, os rendeiros revoltosos foram prestar queixa contra o administrador do morgadio, alegando as arbitrariedades por ele infligidas aos que tinham arrendado as propriedades sob sua gestão, tais como injúria, violência, apreensão dos bens pertencentes aos rendeiros no momento de cobrança e/ou pagamento das rendas. 

No julgamento que se fez posteriormente para apurar os fatos que estiveram na base daquela revolta, algumas testemunhas afirmaram que, “quando os rendeiros não podiam pagar as rendas, o Coronel mandava demolir as suas casas e levar os seus bens por preços fixados por ele.” Este testemunho demonstra o ambiente de anarquia em que se encontravam os proprietários rurais, aplicando a seu bel prazer aquilo que lhe convinha na prossecução dos seus objetivos. Mais, perante as inúmeras queixas feitas e direcionadas às autoridades administrativas, estas nunca se preocuparam em atendê-las, ignorando-as, relegando os rendeiros e camponeses às amarras dos morgados que, sem escrúpulos, faziam de tudo para lucrar com o trabalho e suor de uma classe depauperada e manietada pelo sistema que imperava na altura. Prova disso serão as outras revoltas que viriam a acontecer no mesmo interior de Santiago, colocando em contento os mesmos protagonistas de sempre: morgados e rendeiros.

A Revolta de Achada Falcão

A Freguesia de Santa Catarina foi um celeiro das revoltas que abalaram Cabo Verde nos séculos XIX e XX. Nela, em 1841, teve lugar a Revolta de Achada Falcão, na localidade com o mesmo nome, tendo como contendores o proprietário/morgado Nicolau dos Reis Borges e os rendeiros que trabalhavam nas suas propriedades agrícolas. As mesmas motivações por detrás da Revolta dos Engenhos, também estiveram na base da Revolta de Achada Falcão, como desmandos e abusos de poder do morgado, alegação de que as terras pertenciam a quem realmente as cultivava, etc. Numa marcha ruidosa que os revoltosos empreenderam, revestidos com todo o tipo de objetos (faca, cacetes, etc), que poderiam ser usados contra os homens da lei numa luta dos fracos contra os fortes, deixaram bem claro que não iriam pagar as rendas devidas e que as propriedades lhes pertenciam por direito. Vendo-se numa posição periclitante, em que os rendeiros revoltosos ameaçavam-no de morte, o morgado Nicolau dos Reis Borges sentiu-se obrigado a escapulir-se da sua propriedade e ir pedir ajuda às autoridades administrativas e judiciais na Vila da Praia.

Mesmo sem a presença do morgado, os seus subalternos permaneceram na localidade a fazer a recolha das rendas e dos produtos saídos da safra. Contudo, também ameaçados de morte, assim como os rendeiros que não estivessem em sintonia com os outros, ou seja, na recusa em pagar as rendas ao morgado, tiveram de suspender a recolha das rendas. Para pôr cobro aos revoltosos, o Governo da Colónia mandou expedir um contingente com cerca de 50 militares, que acabou por não entrar na localidade onde decorria a revolta com medo que a situação saísse do seu controlo.

Foi instituída uma comissão constituída pelo comandante militar e as forças administrativas e judiciais para o apuramento dos fatos e, consequentemente, a apreensão dos cabecilhas que estiveram na base da Revolta. Porém, a comunidade resistiu de tal forma que não foi possível deter os líderes da rebelião.  

A Revolta de Ribeirão Manuel

Como referi no início deste artigo, desde os prelúdios do povoamento destas ilhas, a distribuição de terras foi feita de maneira assimétrica o que contribuiu para que ainda no início do século XX houvesse uns poucos senhores de terra açambarcando a maior parte dos terrenos cultiváveis das principais ilhas agrícolas, quais sejam, mormente Santiago, Fogo e Santo Antão, enquanto a maioria da população que compunha essas ilhas dispusessem unicamente da sua força braçal, que muitas vezes nem lhes pertencia, dado que trabalhavam parcelas dessas terras em regime de morgadio e/ou capela, sujeitando-se às arbitrariedades e desmandos dos morgados.

Os inúmeros períodos de estiagem que assolavam o arquipélago tiveram o condão de agravar ainda mais a situação dos rendeiros, uma vez que dependiam de uma boa época das chuvas para que a safra fosse de tal forma produtiva afim de poder cumprir com as suas responsabilidades, ainda que num regime de clara injustiça.

Evidência das iniquidades quanto à distribuição das terras nas principais ilhas agrícolas em Cabo Verde é que também na Revolta de Ribeirão Manuel vamos encontrar, à semelhança da de Achada Falcão, outro, neste caso outra, potentado da família Dos Reis Borges. Trata-se de uma irmã do Nicolau dos Reis Borges, Ana dos Reis Borges, proprietária de uma vasta propriedade na qual praticava-se o cultivo da purgueira, na altura uma das principais exportações da Colónia para a Metrópole.

No dia 13 de novembro mais de uma centena de habitantes de Ribeirão Manuel e zonas circunvizinhas tinham assaltado os armazéns pertencentes a Ana dos Reis Borges, roubado sementes de purgueira e milho, tendo ainda agredido vários funcionários desta na sequência do sucedido. 

O regime em que se consubstanciava aquelas relações (morgado/rendeiro) foi, mais uma vez, o estopim para que se despoletasse mais uma revolta no interior de Santiago opondo os potentados terratenentes e os depauperados rendeiros, cujos direitos eram frequentemente violados sem que nenhuma autoridade fosse capaz de impedir tais abusos por parte dos primeiros. 

É de realçar que, se as duas primeiras Revoltas supracitadas tiveram como atores camponeses na sua maioria homens, nesta última, a de Ribeirão Manuel, foram as mulheres quem se levantaram contra uma outra senhora que também era, assim como o irmão, uma terratenente abastadíssima da ilha de Santiago.        

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