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10 anos de Tremor com boa música negra mas poucos negros

A BANTUMEN foi convidada para fazer a cobertura da edição de 2023 do Festival Tremor. São dez anos de um evento cujo nome é sobejamente conhecido, sobretudo na rota festivaleira da música alternativa, em Portugal e a nível internacional, mas que para nós seria uma estreia. Os questionamentos começaram bem antes de sair de Lisboa rumo à Ilha de São Miguel, nos Açores que, diga-se de passagem, é bem maior do que eu imaginava. (A minha região insular de referência, até chegar a São Miguel, era a pequena ilha do Mussulo, em Luanda, e que tem menos de 30 quilómetros.)

Para quem não conhece, tem cerca de 50% da dimensão em quilómetros de todo o arquipélago de Cabo Verde e, pela sua pela sua fauna e flora, deve ter servido de combustível para darem início às conquistas transatlânticas. 

Para esta cobertura, fui escalado juntamente com o Bruno Dinis (produtor de conteúdos e um musicólogo autodidata), talvez por não ser um típico festivaleiro e poder dar uma outra visão do evento.

Ficámos hospedados na zona da Ponta de Delgada, mesmo em frente ao porto onde atracam navios enormes e repletos de turistas – o que deixa a zona bem movimentada durante o dia. 

Na mesma zona, apesar dos prédios mais cosmopolitas, ainda há muitos casarões com o estilo arquitectónico colonial – também presente em edifícios públicos, igrejas e outras edificações – e que reconhecemos igualmente em Luanda, na Praia ou Maputo.

Além do alinhamento musical do festival – do qual já vos falarei em seguida -, a organização também preparou exposições, conversas, residências artísticas, caminhadas a diferentes zonas do arquipélago e apresentações musicais. Tudo muito bem articulado, com transfers para os muitos jornalistas portugueses e internacionais. Neste quesito, a minha primeira contatatação foi que os meus colegas negros de faculdade e todos os outros que se formaram nos últimos 15 anos ou estão na BANTUMEN a trabalhar voluntariamente ou seguiram para outras profissões. 

O Tremor arrancou nas Portas do Mar – a dois minutos de onde estávamos hospedados – com a festa queer de Paco Piripiri e Atelineiras.

Um pequeno à parte por ter sido uma boa surpresa: o sistema de pagamento escolhido para o evento foi o 3cket, uma plataforma que visa descomplicar o que tem tendência a ser complexo e chato sem ser necessário instalar aplicações extra. Apenas com um QR Code, que representa o bilhete individual, é associada uma conta virtual que pode ser carregada com dinheiro através de MB Way, referência multibanco, Apple Pay ou Google Pay.

Voltando ao lineup dos nossos, como cabeça de cartaz tínhamos a Pongo – sensação do Kuduro na Europa; Angel Bat Dawid – a senhora de Chicago que celebra o Jazz originário -, acompanhada de Sophiyah Elizabeth, de Detroit (EUA). Encontrámos também o Burkinabè Kaito Winse e a sua banda, Avalanche Kaito, e ainda a Takiaya Reed, a norte-americana do Texas que dá vida aos Divide and Dissolve – que foram os artista que nos chamaram a atenção, não apenas pela razão racial óbvia mas também porque conseguimos falar com todos eles e contribuíram muito para cada detalhe do que observámos neste festival com mais de dez anos de vida. 

📷: BANTUMEN

No dia 29 de março, já enturmados no espírito festivaleiro, fomos ver a primeira atuação da (agora) nossa amiga Angel Bat Dawid, com Sophiyah Elizabeth e a Orquestra Fundação Brasileira. 

Antes da nossa amizade florir, chegámos à zona de Rabo de Peixe (Ribeira Grande), onde ainda estava a Angel a ensaiar para a apresentação. Ao ver-nos em frente do palco, a artista desceu e dirigiu-se a nós (Eddie e Bruno Dinis) com um fraterno abraço, dizendo em inglês finally black people (finalmente pessoas negras, em português) e questionando a seguir “onde estão o resto das pessoas negras?”. Claro que receberam a típica resposta “devem estar atrasados. Por norma chegamos sempre atrasados”.

Centrados na atuação, com os espectadores em círculo à volta do palco, Angel e Sophie mostraram como se comanda uma orquestra e porque a música negra é a base de grande parte dos estilos musicais que conhecemos.

Vários questionamentos surgem-me em relação ao festival em si e ao qual, provavelmente, não me proporia ir de iniciativa própria, a não ser que um amigo branco me convidasse. Porque raios eu sairia de Lisboa para ir ver a Angel Bat no Afro Nation, no Algarve, mas não para ir ver a mesma Angel Bat no Tremor? Afinal, os ingressos do Afro Nation são bem mais caros e o valor da hospedagem é 5 ou 6 vezes maior do que uma reserva em qualquer hotel em Ponta Delgada.

Entretanto, nutrimos uma amizade com a Angel e a SoPhie e já estávamos juntos a rodar as ruas de Ponta Delgada durante a noite, tal qual como se nos tivéssemos reencontrado depois de seis séculos de as nossas famílias – entre outros 12 milhões de pessoas – se terem apartado durante o comércio triangular do Oceano Atlântico. 

No dia seguinte, fomos ao tanque de Água Termal do Parque Terra Nostra, que faz pensar naqueles vídeos do Instagram que usam as hashtags #BEAUTIFULVIEWS. Uma construção de 1780 idealizada pelo cônsul norte-americano Thomas Hickling. 

Minutos antes de nos perdermos dos nossos guias ao sairmos do autocarro – porque ficámos a vestir os casacos -, quando nos demos conta, tinha muita gente branca à volta e, acreditem em mim, é impossível reconhecer uma pessoa branca no meio de muitas pessoas brancas. 

Ligámos o Google Maps, chegámos ao parque e, ao entrar, tivemos uma visão que, provavelmente, uma vez mais, nunca iríamos ter por iniciativa própria: um lago acastanhado, cheio de pessoas a curtirem ao som da Verde Prata. Uma cantora do País Basco cujas canções tradicionais transportam o passado para a atualidade e que, aos meus ouvidos, soava muito bem. 

Idealizámos se fazia ou não sentido experimentar um tanque de água termal naquele momento, avaliando a falta de creme hidratante na nossa mochila – nós pretos não entramos em taques, piscinas, praias ou qualquer estância balnear sem o kit que nos distancia de qualquer rasto de baúca.

A nossa terceira constatação foi quando nos apercebemos que, no mesmo tanque, tinha seis pessoas negras: Inês Borges, uma profissional do Design; Ana Nascimento, uma jovem brasileira de 17 anos que vive há cerca de 15 anos no Açores e é uma das voluntárias do festival; uma jovem senhora que mudou-se para o arquipélago há cerca de dois anos com o namorado branco e uma jovem germano-moçambicana estudante de biologia a fazer Erasmus na Universidade dos Açores. 

Conversámos com a Inês e a Ana sobre as possíveis razões para a pouca adesão de pessoas negras ao festival Tremor. Inês acredita que tem muito a ver com o tipo de line-up do cartaz ou pelo próprio design do mesmo, que não puxa nem permite que, sem uma pesquisa, se entenda que existem pessoas negras nos cartaz. 

Já Ana Nascimento, que é praticamente nativa nos Açores, diz que é um problema associado ao racismo estrutural em que vivemos, contudo, afirma que o festival é bastante acessível e que, mesmo que tivesse um cartaz com um maior número de artistas negros, não haveria de atrair uma audiência porque mesmo não é comunicado a pensar na diversidade.

De noite, fomos ao mercado da Ribeira Grande, do outro lado na ilha, ver os Ill Considered, uma banda de Jazz britânica composta por pessoas brancas e do norte de África que, aos meus ouvidos, soava a um punk improvisado.

No dia seguinte, estávamos a ver o Burkinabé Kaito Winse, no Solar da Graça – um espaço similar a uma caserna militar em madeira -, na companhia do guitarrista Nico Gitto e do baterista Benjamin Chaval. 

Com a sala totalmente lotada, Kaito Winse trouxe para a atuação vários instrumentos, incluindo a sua própria boca, uma cabaça, arco, kora e uma tama (tambor falante). 

O artista começou a desfilar a tradição da música griot, do Burkina Faso, tocando os vários instrumentos em palco, proferindo falas no dialeto da aldeia de Lankoué, região de Sourou, no norte do seu país levando o público presente ao êxtase cultural. 

Pessoas brancas adoram música negra e os artistas negros adoram o reconhecimento de pessoas brancas. Um match perfeito que permite a existência desta relação de monogamia social. Há mais de um século que a música negra e a cultura negra vivem nessa fusão, onde a indústria musical e agentes culturais brancos são o centro desses relacionamentos. 

Chegamos ao último dia de festival na expectativa de ver Takiaya Reed, a norte-americana do Texas que dá vida aos Divide and Dissolve, o concerto principal de Angel Bat e Pongo, a cabeça de cartaz.

Takiaya levou o seu clarinete, guitarra e banda ao Solar da Graça, o mesmo espaço onde tocou Kaito Winse. Divide and Dissolve mostraram como descolonizar a música e desmantelar a supremacia branca, elevando vozes negras e indígenas. Foi um concerto com batidas pesadas de sludge metal, um subgénero do heavy metal que tem como principal característica a mesclagem de elementos do doom metal, do hardcore e às vezes do southern rock. 

Entre cada faixa, Takiaya Reed deixava mensagens de empoderamento, com afirmações como “o peso vem dos nossos ancestrais”, “eu sou negra e indígena” ou “sinto que todos os dias, em que negros e indígenas continuam a sobreviver e existir, é uma vitória.”

No final do concerto, ao aproximar-me da artista, volto a ouvir a mesma pergunta “where are the blacks?”. 

Ainda no mesmo dia, às 20 horas, chegámos ao Coliseu Micaelense para ver Angel Bat Dawid pela segunda vez, agora com a sua performance que inclui o último álbum, Requiem for jazz, Hush Harbor Mixtape Vol.1 Doxology e The Oracle

A força espiritual de Angel Bat emergiu sobre o coliseu Micaelense e, mesmo com uma adesão mediana, a artista conseguiu envolver o público presente. Depois de descer do palco e interagir com as pessoas, ao voltar para a cena, a artista sentiu necessidade de chegar-se a mim e ao Bruno para um forte abraço. Foi um momento que traduziu na emoção a singularidade da nossa presença.

Angel tocou piano de sopro, saxophone, clarinete, triângulo e piano, enquanto Sophie usou a voz para cantar e emitir sons pujantes que ao mergulharem na melodia dos instrumentos de Angel provam que a música negra não está nos instrumentos usados nem na melodia criada, está em quem a faz. 

Aproveitando as nossas últimas horas nos Açores, antes do concerto da herdeira do Kuduro dos Buraka Som Sistema subir ao palco, começamos a ver mais pessoas negras nos espaços de restauração, que residem e trabalham na ilha. Estranhamente, algumas não sabiam da existência do festival. 

Com o concerto da Pongo prestes a começar, com uma sala cheia e eufórica, deu-se a nossa quarta constatação.

Pongo começou a apresentação com “Quem Manda no Mic”, do álbum UWA, de 2020, e passou “Bica Bidon”, do mais recente Sakidilla, que assinalou um ano de existência curiosamente a dia 1 de abril. Ainda do mesmo álbum, tocou ainda “Goolo”, “Pica”, “Doudou” e“Kuzola é Só Amor”. 

Depois de já passados 30 minutos de concerto, onde já tinha “ganho” o público que conhecia a sua música, a cantora aproveitou o momento para responder a uma pergunta que lhe fizemos durante uma entrevista, pouco antes da sua apresentação.

“Como é que comentas sobre a pouca adesão do público negro ao festival Tremor?” Na altura, Pongo não soube exprimir-se sobre a questão e, como a própria explicou no palco, depois de refletir aproveitou para responder em frente às pelo menos mil pessoas ali presentes. A artista não acredita que exista algum tipo de “seleção por parte da organização sobre quem pode ou não participar”, que acredita que o festival quer incluir todos porque, se ela foi “selecionada por ser africana, já mostra a vontade de terem mais pessoas negras no evento.

A artista acrescentou ainda que espera que nas próximas edições possa ver mais artistas afrodescendentes e que, apesar da experiência e prestígio do Tremor em si não ser suficiente, cabe-nos a nós, público e BANTUMEN, a responsabilidade de espalhar a palavra e chamar mais público.

E posto isto, Pongo deu seguimento à festa com “Wegue”, “Bruxos”, entre outros clássicos do seu repertório.

Termino este artigo, que retrata a primeira experiência da BANTUMEN no Tremor, com uma nota de agradecimento. Estivemos presente na 10ª edição, agradecemos o convite da organização, à qual nada (ou muito pocuo) temos a apontar: tivemos um alinhamento com várias bandas que têm os seus portfólios associados a plataformas como a Bandcamp e isto dá espaço a novos artistas; além de todas as atividades adjacentes por diferentes zonas do arquipélago e que mobilizam o comércio do mesmo. 

Sobre a pouca a adesão do publico negro, acredito que o comentário acima da Ana Nascimento, a jovem de 17 anos, é a base do problema. Mesmo que o alinhamento tivesse o top 10 dos mais ouvidos no Spotify, em Portugal (composto maioritariamente por artistas negros). 

A verdade é que isto também está fora do controlo da organização, a não ser que esta também passe a incluir no seu núcleo duro mais pessoas racializadas.

Por exemplo, se uma artista como a Angel Bat Dawid, ao chegar a um evento como o Tremor, tiver pelo menos uma pessoa com que se identifique na equipa que a recebe, acredito que não vai precisar aproximar-se de um jornalista para questionar onde estão as pessoas negras. 

Assim, como disse a Ana Nascimento, devem existir mais pessoas racializadas que a colaborar, seja como trabalho temporário, voluntariado ou mesmo dentro da organização em si. Isto pode ser crucial no próprio sucesso da informação promovida sobre os artistas envolvidos e no sucesso do evento.

Campanhas de marketing mais funcionais e que circulem fora das zonas de conforto é também, não só, divulgar o evento como comunicar as possibilidades turísticas dos Açores, por exemplo.

Querer diversidade, muito mais do que uma intenção é ação. É procurar por ela e chamar-lhe atenção de que há ali algo que a poderá interessar. 

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

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