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“Malungas”, a resistência anticolonialista no feminino
“Malungas”, a resistência anticolonialista no feminino
Em Janeiro deste ano, arrancou no Porto (Portugal) uma série de encontros abertos sobre resistência feminina negra. O projeto, epítetado de “Malungas” (ou “Nós, Malungas” — tudo é processo, aqui), tem três capítulos, todos focados em figuras proeminentes da resistência anticolonial e antiesclavagista no Brasil e, claro, no devolver de humanidade e da respetiva história a pessoas forçadas ao trabalho escravo. “Malungas” surge no contexto de uma investigação para o doutoramento em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto de Letícia Simões, baiana, negra, radicada no Porto, que tem procurado acrescentar uma dimensão imagética às histórias de grandes mulheres negras que acabaram escravizadas pelas forças coloniais portuguesas no Brasil. O primeiro encontro deu-se com o tema de Maria Benguela, mulher escravizada que criaria o Quilombo de Benguela, algures no Nordeste do Brasil, um ponto de resistência negra essencial da história africana fora do continente-mãe. Este quilombo tornou-se, aliás, num foco de resistência contra várias forças coloniais, portuguesas e francesas, que disputavam o território nos século XVIII e XIX, e cuja presença se estendeu por mais de 100 anos, sempre sob o farol (real ou mitológico) da sua fundadora. Estas histórias perderam-se, por inúmeras razões distintas, mas não desapareceram. O processo de esquecimento, que Letícia explica muito bem durante os encontros, começa no escravizar da pessoa, no retirar-lhe do nome, e desdobra-se noutros elementos mais culturais, como a preponderância da oralidade para registo histórico de algumas etnias africanas. Nestas, sempre houve os guardadores de histórias, a quem no Brasil chamam de griots, a quem incubiam o papel da memória coletiva do povo. “Eu lembro-me de quando a última griot de Salvador morreu e da questão que ficou no ar: quem contarias as histórias novas? Quem se lembraria das antigas?” Houve um segundo momento formador para Letícia, durante a sua pesquisa, que acabaria por direcioná-la para a criação deste processo: “Quando descobri que os militares portugueses tinham aulas de belas artes, de expressão visual, para que pudessem registar o que viam nas colónias, fiquei entre horrirzada e maravilhada.” Há, de facto, vários acervos de trabalho visual criado por militares coloniais, que registaram a vida fora da “metrópole” do império esclavagista — algumas destas imagens são, aliás, parte das estórias contadas pela autora de “Malungas”. O segundo capítulo será revelado já no dia 21 de fevereiro, na Casa Odara, no Porto, e já se encontra de lotação esgotada. O enfoque será em Maria Felipa e o formato cumprirá com o que Letícia Simões explicou à BANTUMEN: “É um processo em construção de forma,” ou seja, “a pesquisa está sempre a crescer e fica maior a cada encontro. Cada pessoa nova acrescenta significados.” Estes significados são construídos pela narrativa criada por Letícia, que cruza a história, com a sua própria estória, da sua família, da bisavó, escrava que conheceu a liberdade por decreto no 13 de Maio de 1888, com elementos da cultura negra no Brasil e do próprio continente Africano. Em cada encontro, ao exercício performativo de Letícia encontra-se com a criatividade culinária de Karina Ramos, chef executiva e historiadora que preteriu o texto e debita o seu conhecimento em formato de comida, que é tradicional, vanguardista e inquestionavelmente africana: “No nordeste, de onde eu sou, a roda de samba dura dias à volta de música, comida, bebida…” A comida é, por isso, um momento de partilha e ligação, e neste contexto mantém-se, servindo, também, como mais um dimensão sensorial que nos permite conhecer melhor histórias africanas. “Nós, Malungas” conta ainda com a colaboração de DJ Dolores, que cria a paisagem sonora de cada performance através de seleções cuidadas e field recordings, Maria Esther, artesã brasileira que vai criar e bordar o figurino a ser usado por Letícia na apresentação final (que será “um mapa imaginário unindo diversos pontos da história” e desenvolvido através de pesquisa de trajes usados por mulheres em leilões de escravos e nas exposições de pessoas colonizadas na Exposição Colonial Portuguesa de 1934 do Porto),  Letícia Simões contou ainda que “o projeto vai estabelecendo ligações sobre a história” e que este produz resultados muito diferentes e distintos. Ainda que “Malungas” seja sobre olhar para trás, há um exercício permanente de criação e de acrescentar significados. É, aliás, esse o propósito do projeto, que foi formalizado ao abrigado do programa Criatório, e que pretende precisamente criar novas narrativas, novos significados, e dar algum contexto imagiológico à história. “Serve para percebermos que há falar de si e falar coletivo, e que há outras formas de partilha de conhecimento, além do académico, do performativo.” O resultado final deste projeto serão, assim, os retratos fabulados das três Marias abordadas nas sessões na Casa Odara. Esta natureza coletivista é essencial em “Malungas”, que vive desta partilha constante de experiência, de histórias, e de devolver. “A pesquisa está a crescer com outras pessoas, que acrescentam novos significados. A cada troca eu aprendo mais coisas.” É, também, o espelho de um processo de migração forçada e que se vai replicando nas diáspras: “quando migrantes se juntam, cria-se um exercício de ego, de partilha de mundo e de criação de mundo.” E é sobre criação de novas possibilidades, ou, quiçá, de novos mundos, que se fala em cada encontro. “Malungas” desdobrar-se-á em três capítulos, sobre três Marias diferentes. A primeira, Maria Benguela, foi-nos apresentada no dia 17 de janeiro; Maria Felipa será apresentada a 21 de fevereiro; em Março haverá novo encontro. Todas as sessões decorrem na Casa Odara, um espaço múltiplo dedicado às artes, ao corpo e à gastronomia, e um refúgio da diáspora afro-descendente do Porto. No futuro, “Malugas” poder-se-á desdobrar para espaços “diferentes, fora do conforto [da autora]”, mas por ora será esta a sua casa. Para mais informação, podem seguir a Casa Odara no Instagram, ou a própria autora.

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