Procurar
Close this search box.

Africarioca: construindo autoestima e celebrando a beleza negra com baldlocs

“A Africarioca é uma ferramenta de construção de autoestima”. É assim que Lucas Preto, de 28 anos, define seu empreendimento: a Africarioca Conceito, um espaço de compartilhamento de ideias e vivências voltado para a população negra da periferia Oeste do Rio de Janeiro, no bairro Santa Cruz (Brasil).

“Aqui, a gente não vende cabelo ou transformação capilar, o que proporcionamos é estar de bem com você mesmo diante do espelho. E, para isso acontecer, você pode cortar ou não o cabelo. Às vezes é só a coloração e às vezes é só uma conversa que precisamos ter para elucidar as ideias que a pessoa nem tem noção que estão no seu subconsciente”, diz.

Lucas explica que além dos procedimentos estéticos voltados ao cabelo crespo, como o corte feminino platinado e raspado à máquina e o carro-chefe “baldlocs”, técnica desenvolvida por ele que possibilita a aplicação de dreads em homens calvos, a Africarioca Conceito busca reafirmar na prática que a beleza negra existe. “Infelizmente, as nossas referências de beleza são brancas, desde a primeira infância até os dias atuais. Por vezes, é apenas por uma questão de identificação e por ainda não ter tido a oportunidade de ter contato com alguém que nos fizesse entender que a beleza não está ligada à aprovação do outro”, pontua.

Vindo de uma família de cabeleireiros e trancistas, o dreadmaker autodidata desenvolveu os baldlocs a partir do desejo de clientes calvos experimentarem formas diferentes e ancestrais de usarem seus cabelos. O procedimento é realizado com needle technique (técnica de agulha) e não utiliza substâncias danosas ao couro cabeludo, o que estimula o crescimento nas regiões ainda propícias aos fios. 

“Quando tive a ideia, elaborei os dreads e discuti a proposta com o cliente. Foram 16 horas de trabalho ininterrupto. Quando terminamos, ele ficou sem acreditar que tinha cabelo e eu fiquei feliz por ter dado certo. Depois foram surgindo outros interessados. Uma pessoa me mandou uma mensagem chorando porque tinha visto um vídeo de um dos procedimentos e dizia que aquilo era a salvação da vida dele. E foi a partir daquele momento que percebi a grandiosidade dos baldlocs. Mas não apenas de que existia um público em potencial, mas também uma dor”, rememora.

Segundo Lucas, cerca de 40 milhões de brasileiros sofrem com calvície, sendo 50% de causa genética e a maioria atinge jovens entre 20 e 28 anos. “Entendi que um cara novo, que está vivendo o auge da sua juventude, está completamente sucateado diante do espelho, refém de usar boné, touca ou gilete para o resto da vida. E aí surge alguém dizendo que ele vai usar dread, e o dread do ‘Pantera Negra’ ainda? Esquece!”, brinca, em referência ao penteado usado pelo ator Michael B. Jordan no filme Black Panther.

Criado em janeiro 2018 como uma barbearia de bairro, a Africarioca passou por uma reforma e conseguiu expandir os serviços e lançar seu novo espaço em setembro do ano passado, transformando-se em um ambiente conceito que conjuga arte, livros de pensadores negros, revistas sobre café, música ao vivo e venda de produtos para manutenção dos serviços. Hoje, o negócio é responsável pela geração de emprego e renda de 12 famílias negras, com profissionais divididos entre as áreas de beleza, administrativo e comunicação.

Os baldlocs têm conquistado também outros Estados do país graças às redes sociais. Em abril passado, iniciou o projeto “Africarioca na Estrada”, em São Paulo, em parceria com seu mentor profissional, o dreadmaker Zion Malik, do Studio 22 Pan Africano de Arte. 

Especialista em Marketing Digital, Lucas cativa um público de mais de 15 mil seguidores no Instagram. Atualmente, é mentor de marketing e ensina sobre inteligência emocional e empreendedorismo digital para pequenos comerciantes que desejam alavancar seus negócios. Ele também é pai do Jordan, de quatro anos, e do recém-nascido James.

Africarioca tem esse aparato do estúdio justamente porque eu penso nessa pluralidade: um espaço de compartilhamento de ideias e de vivências 

Lucas Preto


Como foi levar o projeto “Africarioca na Estrada” para São Paulo?

A experiência foi transcendental. Ter a oportunidade de voltar a São Paulo depois de ter estudado com o Zion e contribuir com o espaço e promover um ambiente de acolhimento tal qual o que promovemos aqui no Africarioca Conceito foi fantástico. Transcendeu as minhas expectativas, e acho que a gente conseguiu estabelecer uma conexão tanto com os dreadmakes quanto com os clientes que passaram pelo Studio 22, na Vila Madalena. 

Essa ida para lá fez total sentido para mim. Toda a narrativa que eu construo na internet é em função de quem está vindo de baixo, com estudo, com esforço, sem herança, sem patrocínio, só na correria, mas fazendo as pessoas entenderem que não é um trabalho de ONG ou coisa do tipo, é pensado, estruturado, com estratégia e com arte. A nossa construção é de uma empresa totalmente constituída por pessoas pretas. Estamos aprendendo e construindo juntos.

Como você tem ajudado as pessoas a redescobrir a autoestima a partir dos cabelos? Qual sua percepção sobre como as pessoas chegam e como elas saem do seu estúdio?

É ‘estúdio’ porque transcende o salão normal, no sentido de vir até aqui, fazer o cabelo e ir embora. Na Africarioca Conceito, a pessoa chega, toma uma cerveja, bebe um café ou um chá, vem para poder conversar, discutir. É um lugar onde as pessoas partilham músicas que acabaram de fazer e pedem a nossa opinião. Usam o espaço para produzir fotos. A Africarioca tem esse aparato do estúdio justamente porque eu penso nessa pluralidade: um espaço de compartilhamento de ideias e de vivências.  

Sobre a autoestima, é o centro de toda a construção. Eu faço a pessoa entender e perceber que nós, como colaboradores e mensageiros, temos a principal missão de fazer com que ela entenda que o cabelo que usa, que deixou de usar ou que vai passar a usar é 1% de toda a construção do que ela pode ver no espelho. O nosso trabalho está intrinsecamente ligado a fazer a mulher preta, por exemplo, que viveu sob as amarras de usar química a vida toda, de que era fada a usar um cabelo com alisamento, e eu venho e digo que ela tem a liberdade de cortar o cabelo na máquina, pintar de loiro mesmo sendo preto e que vai ficar linda e maravilhosa. E, aqui, a gente vê muito as pessoas dizendo que nunca se imaginariam assim, dizendo que ficaram iguais àquelas pretas americanas dos filmes. ‘Logo eu, dona de casa, que trabalho em casa de família?’. E ela involuntariamente percebe que esse tipo de estilo, de recurso, não está restrito apenas a quem trabalha com arte. É uma ferramenta disponível para a pessoa preta. Então, nosso estúdio tem essa missão. Mas que não está ligada apenas ao cabelo.

São procedimentos que duram muitas horas na companhia do cliente. Então, durante todo esse tempo, qual o papo no Africarioca?



São conversas provocativas. Conversas que me tiram da zona de conforto e me fazem refletir sobre o quanto sou machista, sobre como não sou aberto ao novo, sobre o quanto eu não tenho letramento racial suficiente para agregar com os meus irmãos. Ao mesmo tempo que o cara está falando sobre futebol, do nada vem uma pauta racial. Por aqui passa muita gente, então estamos sempre tentando estabelecer um ambiente de troca e de conversa. O que o Africarioca tenta proporcionar é desconstruir o que nós entendemos como padrões, mas também não é levantar bandeiras que não acreditamos. Africarioca tem uma narrativa bem própria, bem singular para trabalhar com o plural, que é o povo preto.

A técnica dos baldlocs pode ser aplicada também em mulheres?

A calvície na mulher não se desenvolve da mesma forma que no homem. No homem é pela têmpora, que são as entradas; pelo vertex, que é a coroa; ou a perda total da parte superior, na tampa da cabeça. Na mulher, a calvície se desenvolve por fator genético também (30%) e em formato de alopecia, e que não está necessariamente ligada só aos buracos no couro cabeludo, mas também a um cabelo mais ralinho. Os baldlocs ainda não contemplam as mulheres.

Você considera que os jovens estão pautando os mais velhos? Ainda que homens que sempre mantiveram dreads, adeptos do movimento rastafári, podem questionar o uso por moda? Existe um conflito geracional mas também uma porta de entrada para uma rede possível de amor próprio a partir do cabelo?

Hoje estamos conseguindo difundir entre nós o autoamor, o afeto, o autocuidado. O dread para o tiozinho que sempre manteve aquele cabelo era uma ferramenta de protesto e de manifesto para a época dele. Era uma maneira de dizer que não segue o padrão da sociedade e que são adeptos da filosofia rastafári. Para as mulheres pretas americanas, principalmente as intelectuais, era o momento de dizer que esse aqui é o meu cabelo e vocês não vão nos subjugar a um lugar onde pessoas que usam dread estão fadadas a viver na pobreza. Pelo contrário, vocês vão ter que engolir mulher preta, acadêmica, bem-sucedida e com o cabelo dredado. Desde a literatura até às artes cênicas, por exemplo, há mulheres que usam dreads. 

No Brasil, nos dias atuais, chegou como uma ferramenta de transformação de autoestima. É uma possibilidade. A pessoa conseguiu entender porque foi desmistificado um monte de coisas de que o cabelo dredado era fedorento, sujo, pavoroso, associado a tudo o que era ruim. O jovem hoje consegue perceber o dread como uma ferramenta que contribuiu para a autoestima dele.

Quanto custa o procedimento baldlocs?

Eles variam de cada caso e da região de calvície. Os valores vão de 2.200 (cerca de 410 euros) a 4 mil reais ( cerca de 750 euros), com possibilidade de financiamento. O modelo Black Panther é o mais procurado.


Como é para você a questão da apropriação cultural? Você aceita ou recusa se um cliente branco e calvo procurar pelo serviço? Qual é o discurso, se é que existe um discurso para a recusa?

Eu aceito. A pessoa branca que nos procura hoje entende que está num ambiente preto. O meu produto e o meu serviço são pensados para o povo preto. As formações são para cuidar de gente preta. Se uma pessoa branca quer ter acesso aos serviços do Africarioca ela precisa entender o lugar em que está e quais são as limitações que temos para ela. Nós recebemos todos, mas aqui pessoas pretas têm privilégios. Posso mudar de ideia com o tempo, mas acho pouco provável porque a finalidade do meu produto, do meu serviço e principalmente da filosofia Africarioca Conceito é servir o povo preto. Somos instituídos a servir o nosso povo. E servir com excelência, com um tratamento que infelizmente não temos em qualquer lugar. Cuidar do cabelo da pessoa preta está intrinsecamente ligado a uma memória afetiva. E uma memória que muitas vezes não é tão confortável assim. Mas também está relacionada a uma memória com as primas, com a família, com um tio passando Henê [referência a um cosmético para alisar cabelos, muito utilizado no Brasil desde os anos 1969], da mãe fazendo a chapinha ou a trança. Era muita informação acontecendo na manhã de um sábado. Tem gente que fala que nosso estúdio parece aqueles dos filmes americanos quando mostram barbearias, mas não é. É um ambiente de troca, um ambiente de preto conversando com preto sobre coisa preta. O preto é esse entretenimento humano o tempo todo. Então, as pessoas chegam aqui e ficam maravilhadas, e é exatamente porque a gente mexe com a memória afetiva delas.

Qual a história do seu cabelo?

Eu sempre sonhei usar brincos e dreads. Eu venho de uma família de cabeleireiros, cristã. Cresci em ambiente de salão, mas nunca quis ter algo do tipo como negócio. Minha mãe concordava com a ideia de eu usar tranças, mas meu pai não. Com 12 anos fiz trancinhas nagô. Fui influenciado pela música gospel americana e pela Black Music dos anos 1990. Cresci vendo clipes de hip hop. Eu queria me vestir e usar o cabelo igual. Furei as orelhas com 18 anos. Antes, não me sentia livre para isso. Quando meu primeiro filho nasceu, o Jordan, eu usava o cabelo black. Raspei depois do nascimento dele e prometi não cortar mais até meu filho fazer 10 anos de idade. Então cultivo os dreads há 4 anos, idade atual dele.

No contexto brasileiro, qual sua percepção sobre racismo e auto-ódio?

Eu tenho refletindo sobre coisas que preciso revisitar porque o lugar do preto é de alguém que não está acostumado a ver uma outra pessoa preta performar bem e sente raiva e a necessidade de se contrapor em função disso com críticas, se dizendo crítica. Mas não é crítica, é auto-ódio porque não se sente bem em ver um semelhante seu performando bem e que pode inclusive abrir caminho para outros dos nossos. E a conclusão a que chego é de que estamos igual cachorrinho correndo atrás do próprio rabo. Quer um exemplo disso? Colocar uma foto bonitona e editada no Instagram e escrever: “Favela venceu”. Favela venceu coisa nenhuma. Venceu porque eu estou conseguindo construir uma empresa com um monte de gente preta ou por que eu estou vestindo Louis Vuitton? A favela só vence quando consigo despertar no outro a provocação de que ele precisa se manifestar também, de que precisa agir e de que precisa ser responsável pelo futuro dele. Para a favela vencer, da perspectiva de quem vai me ver de fora, eu tive que ter um monte de referências brancas para entender o meu lugar como referência preta. E eu quero ser um modelo de preto bem-sucedido trazendo mais 12 comigo. Isso é favela vencer. 

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

Recomendações

Procurar
Close this search box.

OUTROS

Um espaço plural, onde experimentamos o  potencial da angolanidade.

Toda a actualidade sobre Comunicação, Publicidade, Empreendedorismo e o Impacto das marcas da Lusofonia.

MAIS POPULARES