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“A maternidade não deve ser uma ponte que nos leva à falta de oportunidades”, Márcia Costa

Márcia Costa, 2023 | ©𝐌𝐚𝐟.𝐑𝐚𝐰
Márcia Costa, 2023 | ©𝐌𝐚𝐟.𝐑𝐚𝐰

Márcia Costa é uma basquetebolista que veste as cores do GDessa do Barreiro e da seleção nacional portuguesa (a quarta melhor equipa da Europa de 3×3, de 2022/2023), considerada a melhor jogadora da década 2010-2020. Nasceu e cresceu em Setúbal e tem vindo a dominar o mundo do basquetebol em Portugal, não só devido ao seu talento e garra, mas também à sua voz e determinação para um campo desportivo mais inclusivo. Com 33 anos, mãe de um menino de três anos e um nome que figura entre os tops de maior número de assistências na Super Taça (2023) e na Taça Vitor Hugo (23/24), Márcia, acanhada, ainda não consegue definir aquilo que os outros nela identificam: uma força da natureza que quer vencer em todos os campos profissionais e pessoais por onde pisa.

Sobre quem é além da quadra, a resposta nunca é fácil: “Sendo que o basquetebol ocupa muito do meu dia, como profissão, como qualquer outra profissão na vida de qualquer outra pessoa, é difícil responder”. Contudo, a sua voz ativa em assuntos sobre inclusão respondem por si.

Na pele de quem está sempre preocupado com os outros, a atleta está constantemente a analisar se está a fazer aquilo que pode para ajudar quem quer que seja. E mesmo não vivendo na ânsia de querer salvar o mundo, enfatiza que está sempre atenta a essa parte de si, o que reverbera na educação do filho, o Tomás. “Será que isto vai levar ao entendimento dele do que é uma sociedade boa?”, pergunta-se a si mesma. “Tenho de ter a certeza que posso devolver tudo de bom que já chegou até mim. Daquele empurrão em direção à felicidade até ao conselho para explorar caminhos de vida nunca vistos. Talvez seja devido ao facto de ter vivido muitos anos num bairro social, mas é uma preocupação que me acompanha há muito tempo. Não posso fazer voluntariado ou dobrar-me em duas mas posso dar passos para uma mudança social, nem que seja a pouco e pouco”, partilha. 

Ao relembrar-se de como conheceu umas das maiores paixões da sua vida, o basquetebol, Márcia solta uma gargalhada eufórica. “Eu tenho uma história muito engraçada com o basquetebol. Estava no atletismo e as coisas corriam bem mas, ainda assim, numa brincadeira de bairro, a vizinha da minha avó propõe acompanhá-la ao basquetebol [no Clube Naval Setubalense], onde eu podia aprender coisas novas e no final das sessões eles ofereciam gelados. E eu fiquei-me pelos gelados”, relata com um sorriso enorme. “Lá convenci os meus pais, que mesmo não podendo levar-me, garantiam que a logística estava de acordo com eles. Então, encarreguei-me do resto porque eu queria o meu gelado. E lá fui eu para o basquetebol com dez anos, ao lado da Tatiana que me incentivou bastante.” 

Ao mesmo tempo que investe ao máximo na carreira, Márcia também se encontra numa etapa não tão recente mas ainda assim nova na sua vida: a maternidade. “Há dias que é impossível e aí vem tudo ao de cima. Um fim-de-semana menos bem sucedido desportivamente, a casa que se calhar não foi preparada para a semana, o Tomás que se calhar está com mais birras… Há dias que é inevitável que tudo isso se transforme num só e me afete”, conta a jogadora, ao descrever a relação entre a identidade de mãe e a sua profissão. “Mas a verdade é que a vinda do Tomás para a nossa vida foi super planeada. A minha profissão depende da minha parte física e motora e eu tinha que planear a altura que o Tomás viesse ao mundo para que eu também pudesse garantir que perdia o menos tempo possível enquanto jogadora. Isto porque, estava fora de questão abdicar da minha carreira para ser mãe.”

Desde que se tornou mãe, Márcia planeia cada detalhe dos seus próximos passos. Desde ter tempo para treinar na off season – mesmo tendo perdido uma época – para estar pronta para treinar com as colegas, até ter o Tomás acompanhado de uma babysitter, desde os seis meses no pavilhão ou no ginásio, enquanto treina ou joga. “Sabendo que os primeiros meses são vitais para uma mãe e o seu bebé, isto tudo só fazia sentido acontecer se eu estivesse bem emocionalmente e com o meu filho por perto. E desde o primeiro dia, até mesmo durante a amamentação, estou super tranquila, porque só precisava de garantir que ele está bem e por perto, sendo o contrário um desconforto com o qual não quis lidar”, explica. 

E assim, sem se aperceber, Márcia entrou numa batalha invisível à conquista de um campo profissional mais igualitário e inclusivo para outras mães. Ao planear uma carreira de profissional que inclui o filho a tempo inteiro, Márcia começou a fomentar consciência sobre estas questões, sobretudo a empregadores. “Até mesmo porque queria mostrar a este mundo de alto rendimento que era possível fazer isso e então era muito importante que estivesse emocionalmente equilibrada.”

Se tivesse de escolher uma palavra para a definir, principalmente no que respeita à sua profissão, provavelmente seria intensidade. “Porque não é só a intensidade que provém da movimentação física, através de recuperar, defender e atacar, mas algo o quanto emocional também. Dos sentimentos aos movimentos, a intensidade toma conta”, explica-nos Márcia Costa enquanto descreve com paixão o que o basquetebol verdadeiramente significa para si. “Os atletas têm papéis diferentes dentro de uma equipa. E, às vezes, um papel mais importante faz com que tenhas mesmo de conseguir controlar toda essa intensidade porque, inerentemente, isso pode passar algo menos positivo para os teus colegas. E eles esperam ver em ti o conforto que eles precisam para dar ainda mais. Esse autocontrole é mesmo necessário”, explica. 

Em relação a rituais antes dos jogos, Márcia admite às gargalhadas que já as teve, e mesmo não sendo um ritual que achasse uma boa ideia, foi adiante. “Houve uma altura que jogava sempre com um par de meias novas. Começou sem querer mas, quando apercebi-me que acontecia, ‘porquê mudar?’.” Contudo, uma das coisas que tenta muito, hoje em dia, é eliminar essas superstições. “Não gostei da sensação de estar presa às meias ou ao que quer que seja, e dar-lhes aquele poder todo. Eu faço tudo o que posso e dou apenas tudo o que tenho.”

Márcia afirma que o seu maior feito dentro do basquetebol, que até hoje mexe consigo, foi ter sido nomeada jogadora da década de 2010-2020, pela Federação Portuguesa de Basquetebol, sendo que em 2020 foi mãe. “Eu estava num pós-parto, a treinar no ginásio, sozinha, pós-covid e, de repente, recebo um email a confirmar que fui destacada. Isso teria um impacto gigante em qualquer outra altura da minha vida, mas naquele momento em que faço uma pausa para ser mãe e que há muita coisa que é colocada em causa… Foi um choque e veio num momento chave”, expõe. Num mundo capitalista, onde muitas mulheres acabam penalizadas por serem mães e vêem as suas carreiras em risco, Márcia foi relembrada que é uma pessoa por inteiro antes da maternidade e que essa sua nova condição não define que metas profissionais pode alcançar.

Como atleta e mãe, o maior desafio foi definitivamente ser convocada para a selecção nacional e o meu filho ter sete meses. Caiu-me tudo porque eu queria ir mas seria requerido de mim explicar à federação que vou mas o meu filho também vai

Márcia Costa

Enquanto atleta, a jogadora acha que o maior desafio da sua carreira ainda está por vir porque o seu percurso foi feito numa onda silenciosa, sem grandes palcos e longe das equipas de projeção mundial ou europeia. “Sempre fui bem sucedida mas sem muito alarido e de repente os holofotes viraram-se todos para mim. Acho que vem tudo agora, que preciso de mostrar a mesma consistência enquanto jogadora, onde muitas vezes, vou falhar, com muita certeza, mas onde as minhas conquistas vão ter de prevalecer e eu terei de ser reconhecida por isso também”, desabafa Márcia. “Vou falhar mas espero conseguir manter o foco que me fez chegar até aqui e continuar a acreditar naquilo que faço. No final do dia, todos nós sabemos que não existe empatia em relação a falhas quando toca aos grandes atletas ou pessoas de renome em diversas modalidades. Rebaixa-se tudo o que conseguiram até então e foca-se somente naquele momento. E eu não acho isso normal. O meu desafio estará aí, porque espero que o público que me segue entenda que falhas não farão de mim pior ou melhor jogadora”. 

Com o intuito de inspirar outras mães, atletas e empregadores que se encontrem nesta interseccionalidade de identidades, Márcia acredita que há espaço para tudo se formos atenciosos e compreensivos. “Como atleta e mãe, o maior desafio foi definitivamente ser convocada para a selecção nacional e o meu filho ter sete meses. Caiu-me tudo porque eu queria ir mas seria requerido de mim explicar à federação que vou mas o meu filho também vai. Porque foi assim que projectei a minha vida desportiva: com o meu filho.” Logo, com o seu comforto em foco, a sua voz foi ouvida e os seus pedidos concretizados. “Esta é a nova versão do que é ser mãe e atleta porque nunca tinha acontecido na seleção portuguesa e sinto que possamos ter aberto aqui uma porta importante também para as minhas colegas. Acho também importante realçar que, se as entidades estiverem abertas as estas novas soluções e adaptações, com foco nas mães, o nosso rendimento seria maior, porque a maternidade não deve ser usada como uma ponte que nos leva à falta de oportunidades.” 

Mesmo acreditando que o mundo do basquetebol está em constante mudança, para melhor, a diferença salarial é algo que domina bastante a vida das atletas, em qualquer desporto. “Sou tão profissional como o meu amigo que agora está a treinar com a equipa dele. O que não pode acontecer é ele ganhar quatro vezes mais do que eu, e isso é fundamental. Eu acho que esta narrativa e discrepância não faz sentido. Há um determinado marketing e mais atenção dada às modalidades no sector masculino, sempre foi assim. No entanto, já houve imenso tempo também para mudança e melhoria porque percebemos o quão problemático isto é. É necessário agir para que a próxima geração não tenha que lidar ou sofrer com estes mesmos problemas. Se temos a mesma profissão e a mesma carga horária, não faz sentido nenhum um homem receber mais do que eu, a menos que ele seja melhor jogador e esteja num nível de carreira acima”, confidencia.  

Sem dúvida alguma na sua face, Márcia Costa partilha connosco que a sua maior inspiração é o seu marido. “Ele dedica-se há anos ao basquetebol. Ele é professor universitário, mas treina tantas horas quanto eu que sou profissional. E isso dá-me gozo porque, mesmo que não seja um incentivo monetário, ele dá tudo pelo basquetebol com amor e dedicação à modalidade. Eu inspiro-me na capacidade dele não ter o basquetebol como obrigação mas fazê-lo para ser melhor.”

Hoje, apesar de rever-se docemente na miúda que um dia fora, “muito ingénua e pura”, que não sabia o que queria fazer da vida e não entendia o basquetebol ainda, a vida foi-se desenrolando. “As oportunidades foram aparecendo e nunca parei de ir atrás do que queria, nem uma vez. E assim tenho que agradecer a essa mesma miúda pelo ótimo trabalho que nos levou até aqui. Adoraria poder levá-la a jantar e contar-lhe todas as nossas peripécias,” termina.

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