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Uma bienal de estranhos 

Samantha Buglione na Bienal de Veneza, 2024 | Foto: Celestino Bastos

“Eu me sinto mais em casa nesta”, me disse Mbaye Cheikh, um italo-senegalês que vive há mais de 30 anos na Itália e trabalhou nas últimas cinco bienais. 

A bienal dos estranhos parece ter este efeito. 

Já na entrada do Giardini o Pavilhão Central  da o tom desta 60ª Bienal. Tradicionalmente branco ele cede sua fachada ao colorido de uma pintura de mais de 700 m2 inspirada em visões da Ayahuasca (uma bebida de rituais tradicionais de povos da Amazonia, fruto da mistura de uma folha e um cipó). A pintura, feita pelo coletivo de artistas nativos Huni Kuin, narra a história de Kapewe pukeni, o “ponte do jacaré”. Dizem que nos antigamente ele se ofereceu para transportar pessoas para fazerem a travessia entre Ásia e América pelo Estreito de Bering. 

Mas o que é este estranho encarnado nos “estrangeiro por toda a parte”, senão uma pequena fatia de consciência sobre algo não familiar? Sensações inomináveis capazes de provocar um sorriso, mesmo nos constrangendo. O sorriso do absurdo, que vive entre o fascínio e o medo. 

Quando o estrangeiro surge, não só traz desconhecidos, como também nos aproxima do que é confortável em termos de sentido. Ao batermos de frente com o estranho ele cria em nós as semelhanças, uma espécie de alvorada, de consciência do familiar por meio do que não é.  Como alguém capaz de proporcionar pelo avesso, coesões, inclusive para as famílias menos agradáveis.  

O familiar tem um poder identitário, tal qual o estrangeiro. A diferença é que o familiar promove um lugar privilegiado, capaz de restaurar uma antiga ordem primeva que devolve (ou reforça) aos pais, aos filhos, aos correlatos, aos próximos e aos eleitos algo como um direito natural imaculado de pertencimento e significado. Mesmo, sabendo nós, ser o natural (tratando-se do humano) uma grande invenção. Daquelas que de tão repetida nos estruturam. Assim é o patriarcado, as narrativas racistas e a violência sofisticada de classe social. 

Às vezes uma nação em conflito, um sujeito em dúvida sobre o próprio desejo e seus quereres, sobre quem é, só tem sua ordem restaurada quando o estranho, o criolo, o misturado aparece ou quando a guerra é declarada e um inimigo é nominado. Esse estranho surge com muitas faces, ele é o imigrante cuja presença denuncia as estruturas de poder e o quanto os patrícios são também pobres e a pátria parece não cuidar muito bem dos próprios filhos sem casa. O estranho é esse desejo de um amor proibido ou moralmente condenável, é o corpo que adoece ou envelhece e nos faz duvidar da imagem que temos diante do espelho porque não nos reconhecemos mais. O estrangeiro é o negro onde há uma hegemonia caucasiana ou o contrário. É o gay, o pobre, o trans, o demasiado rico, o artista. É Cheikh, o dessemelhante, e sou eu, a branca neta de nativa brasileira cujo nome da etnia da avó queimou entre as imagens dos santos em uma igreja de uma cidade pequena no sul do Brasil. 

No Pavilhão do Brasil a instalação “Ka’a Pûera: nós somos pássaros que andam” me levou de volta para a casa de minha avó.  As folhas e flores colocadas em volta do manto Tupinambá fez o prédio ter cheiro de Brasil. Esse lugar familiar, essa casa, também é a rua de chão batido em que cresci e revisitei na obra da angolana Sandra Poulson, “Onde o asfalto termina e a terra batida começa”. Uma história tão distante da minha, mas tão próxima. A arte faz dos estranhos semelhantes e apresenta novos caminhos. Tal qual a provocação feita pela artista israelense Yael Bartana, uma das responsáveis pela instalação da Alemanha, que ao bloquear a entrada principal do prédio obriga a todos descobrirem novos trajetos. Uma israelense como representante da Alemanha. Não preciso falar mais nada. 

Esta edição da Bienal traz pela primeira vez um curador do sul global, um criolo (no sentido lusitano um “descendente de europeu nascido fora da Europa”)  e consegue provocar sorrisos, às vezes de pertencimento, como o de Cheikh, outros de constrangimento, diante das performances expondo corpos nus ou dos artistas periféricos a ocupar pela primeira vez estes espaços. 

O nu do silêncio de um incômodo indizível, de um outro que me estranha, do estrangeiro que me habita. É o efeito do marginal a viver na encruzilhada e a promover novas escolhas, logo novas criações, a exemplo da força mítica de Obatala e de Ododuwa da cultura Yoruba pintados em grandes painéis de tecido pela artista nigeriana Susanne Wenger. O estrangeiro, esse de fora das minhas fronteiras, é o tema, a provocação e o substrato desta Bienal de estranhos. 

Somos criolos afinal. A mistura potente do Greenhouse da instalação de Portugal concebida por três mulheres afrodescendentes, Monica de Miranda, Sonia Vaz Borges e Vania Gala. E as plantas nativas e imigrantes a ocupar as frestas da estatua de Cristovão Colombo tombada no Arsenale na obra de Ivan Argote nominada “Descanso”. Parece ser o tempo de tombar e descansar para se poder criar.

O estrangeiro é como um corpo estranho numa narrativa hegemônica a questionar os vírgulas e sugerir novo ritmo e um novo fim da história, logo, novos começos. Esse que, ao passar, provoca a pergunta sobre quem somos, sobre o que queremos. É música capaz de fazer o corpo mover-se de outra forma, a estampa de tecido que queremos vestir, o prato de comida cujo nome não conseguimos repetir, mas o sabor ocupará a memória para sempre. Ele é o fora de nós exatamente por apresentar nossos dentros e a consciência de que algumas coisas, mesmo familiares, não queremos mais. É possível existir de várias e outras formas, afinal. 

Visitar uma Bienal de Veneza está para além de uma exposição de arte. É um evento sobre as transformações do mundo, dita rumos do mercado e realinha dinâmicas de poder.  Em 2022, na edição anterior, a curadora italiana Cecilia Alemani trouxe mais de 90% de artistas mulheres, neste ano o brasileiro Adriano Pedrosa trouxe a periferia, mais de 332 artistas do sul global. Já é lugar comum os discursos reparatórios e de revisão não apenas da história da arte, mas dos direitos. Não há novidade nisso. A novidade talvez esteja na percepção de só ser possível falar que há um jeito branco masculino e heterossexual de escrever e fazer arte quando se confronta com outras escritas e artes  (em plural) brancas, femininas, negras e nativas. E isso deve ser reverenciado e comemorado. Esta Bienal parece dar seguimento ao que Alemani começou na 59a edição: ampliar as vozes, a diversidade, os tons e as misturas. 

O estranho não é exceção, ele é a regra. O humano é plural. 

Aqui reside a busca por significado e ela precisa de um universo diverso, de alguém de fora porque a rede, a casta, é uma comunidade de pares. É o partido que oferece espaço, existimos no entre, no limiar, no trânsito. A urgência atual não são as redes, são os outros, a mistura, o jardim criolo. A humanidade não é um lugar fixo, mas uma conquista, e a arte, um caminho. 

O absurdo causado pelo estrangeiro é esse sentimento inapreensível da tensão do confronto do ser com o mundo.  Ele não é só um ser, tampouco é o mundo,  mas é o encontro entre eles, o sorriso constrangido e a euforia de ter varias casas. 

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