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Melissa Rodrigues e a arte da Interseccionalidade

Melissa Rodrigues | ©Maria Corte Real
Melissa Rodrigues | ©Maria Corte Real

Enquanto pensa com as mãos, Melissa Rodrigues descreve a mutação entre si e o seu trabalho como uma simbiose ou algo orgânico. Encaixando, assim, organicidade como a palavra perfeita entre este laço tão astronômico. “Sou uma pessoa lenta e gosto de ser lenta, estando assim num processo em que tenho de aceitar o tempo e o ritmo que tenho”, partilha em entrevista com a BANTUMEN. “No entanto, sou uma pessoa lenta que produz muito”, acrescenta.

A artista, curadora e ativista, nascida em Cabo Verde e residente em Portugal, desde os seis anos, encontra-se hoje como um grande componente no núcleo artístico do Teatro do Bairro Alto (TBA), através do seu novo papel como a mais nova programadora na área de debates e discursos. O primeiro fruto deste seu novo ciclo arranca já nesta quinta-feira, 21, com uma conversa a várias vozes e cuja programação pode ser vista aqui.

Ao refletir sobre o significado de interseccionalidade e como aplica a teoria política no seu trabalho, sendo que é o seu escudo de batalha, enquanto se envolve profundamente com noções de identidade, anti-racismo e re-edificação, Melissa explica que, pessoalmente, a interseccionalidade significa a conexão entre diferentes categorias mas também algo além disso. “Uma encruzilhada entre o que podemos denominar também, num teor sociológico e antropológico, como diferentes marcadores estruturais ou sociais. Esses marcadores estão interligados com identidades; identidades múltiplas que incluem uma identidade racial, de género ou sexual.” 

Todavia, devido às suas experiências de vida, a artista também refere-se a identidade enquanto pessoa migrante, na diáspora e em movimento ou trânsito que explora diferentes lugares. “Portanto, a interseccionalidade que é aplicada no meu trabalho vem dessa mesma relação entre a pessoa que eu sou e o meu trabalho. Está tudo ligado”, explica. “Aquilo que sou, enquanto pessoa, reflete as diferentes identidades que me atravessam; enquanto mulher, mulher negra, mulher negra de pele clara, africana, portuguesa, porque cresci tanto em Portugal como em Cabo Verde, como migrante, e muitas outras vertentes, até mesmo classe, que definem, estruturam e fragmentam o meu ser. [E isto tudo] relaciona-se com o termo criado por Kimberley Crenshaw, que dá-nos uma habilidade única para observar e pensar no mundo.”  

Melissa Rodrigues, Conferência Performance 'De Submisso a Político - O Lugar do Corpo Negro na Cultura Visual | ©Ngola Quest
Melissa Rodrigues, Conferência Performance ‘De Submisso a Político – O Lugar do Corpo Negro na Cultura Visual’ | ©Ngola Quest

Mesmo não conseguindo definir precisamente o projeto que moldou a sua visão das artes, Melissa explica, com um sorriso quente, que foi uma compilação de projectos que a guiou até ao presente. “Uma maré de projetos, pessoas e muitíssimas referências que me influenciaram ou influenciam todos os dias a ver e a sentir-me parte duma estrutura em constante mutação.” Depois, ao ver essa mudança na arte, que é criada a partir da periferia, na arte que se desenvolve a partir de identidades racializadas, de corpos e pessoas negras, e essa mudança constante, a artista ilustra que é automaticamente influenciada a repensar o mundo e as artes a acontecer a partir dos lugares chamados “margens”. 

“Mas sem dúvida, uma experiência que foi muito marcante e que influenciou não a minha visão das artes mas a mim enquanto pessoa, levando-me a pouco e pouco para esse campo, durante a minha adolescência, quando fiz parte de um grupo de teatro amador na escola secundária”, pondera Melissa com um olhar sereno. “Foi uma etapa crucial estar num palco, enquanto represento e crio comunidade. Esta foi das primeiras experiências que tive de criação de comunidade e de estar ali com pessoas que escolhi, num lugar de pertença tão poderoso como o palco e o teatro. Tive a oportunidade para me descobrir e expressar. Daí adiante, parece ter havido um clique ou um estalo que [inerentemente] me despertou para uma conexão muito grande com as artes; primeiramente com as artes performativas e depois com as artes visuais”. 

Ao descrever o que a faz olhar para o final do dia e diariamente almejar por mais do mesmo, como artista, curadora e ativista, Melissa Rodrigues afirma que a melhor parte desta jornada é poder aprender constantemente e coletivamente, através de outras pessoas. Poder repensar e refletir num espaço providenciado pelas artes, em que entendimento e auto-conhecimento são órgãos vitais. “Para mim, isso tudo faz parte dessa experiência de ser artista, ativista e curadora, podendo assim ver e pensar o mundo com outres. A possibilidade de navegar em pensamentos, espaços e caminhos com outras pessoas, tendo assim um porquê [dando-me vida e vontade todas as manhãs].” No final do dia, Melissa conta que é muito feliz e também uma pessoa privilegiada porque trabalha nas áreas que gosta, enquanto consegue interseccionar e ligar áreas estas que significam tanto para ela. Tendo a possibilidade de navegar em diferentes vertentes artísticas, “[a variedade] deixa-me não só feliz mas também muito preenchida. Em todas elas tenho a flexibilidade de pensar e reflectir o mundo.”.

Devido ao desdém social e classicista que paira à volta de trabalhos artísticos, muitos encaram a arte como um investimento fracassado ou uma paixão incapaz de nos levar longe, acabando assim por projectarem em cima de muita gente talentosa. No caso de Melissa, ela relata que tentar alcançar uma meta não acontece do nada porque se formos a analisar a precariedade, aprofundadamente, ter a habilidade de navergamos em tantas áreas é uma reflexão em si de que por mais interessantes que estas áreas sejam, são todas muito precárias. “Então, dentro desta precariedade, também fui aprendendo a tentar nadar e cruzar tudo o que gostava, mas nem sempre fiz o que gostei. Já trabalhei em tudo e mais alguma coisa e tive que me focar que os frutos vêm depois [do processo laboral]. E hoje posso fazer o que quero. Agora, perto dos 40, estou feliz, contente, mas eu tenho noção do meu percurso e quanto caminhei para aqui chegar.”. 

Mesmo assim, a artista reflecte e confirma que não é uma falácia pensarmos que é difícil e que de nós singraram e podem ser artistas, curadores, ou programadores. “É uma realidade extremamente difícil e com muitos obstáculos. Tudo aquilo que os nossos pais e as nossas mães nos disseram, [ao enfatizar] o que é supostamente bom ou mau para nós, acaba por ser verdade às vezes. Não é pelo facto de algumas de nós terem conseguido, que faz o processo menos difícil. Esta fase da minha vida [reflecte] uma série de circunstâncias que me fazem estar aqui, que também foi [regada] por pessoas antes de mim que já abriram muitas portas e caminhos, para que eu pudesse continuar e participar neste movimento, deixando assim caminho para muitos mais depois de mim”. 

Durante muito tempo, Melissa trabalhou como artista precária e foi fazendo muitas coisas diferentes; todo o tipo de trabalhos que surgiam, mesmo em projectos sem receber ou a receber muito mal. A artista e arte-educadora descreve esse momento como “muito cansativo”, composto por muitas horas de trabalho e pouco descanso. E por isso, acredita que não pode existir uma romantização destes percursos artísticos ou de curadoria porque “todos estes fatores, especialmente para alguém que é filha de imigrantes, imigrante também, que cresceu em Queluz, na periferia de Lisboa, moldaram o que sou hoje e que, dentro deste sistema de racismo estrutural, em que apenas alguns corpos têm o privilégio de alcançar, em particular pessoas brancas, de classe média alta, me lembraram constantemente que este tipo de lugares não eram para nós”, explicou-nos. 

“Foi-nos sempre dito que são lugares que não são para nós. E este processo nem sempre é fácil porque, mesmo quando alcançamos estes lugares, acabamos por sentir uma força externa simultaneamente dentro desta estrutura que nos puxa, como se este não fosse o nosso lugar, [ou seja, uma síndrome de impostor]. Faz-nos questionar e duvidar do nosso valor e então é muito importante sentir que nós, pessoas negras e racializadas, temos estado a retomar estes espaços e a criar comunidades, lembrando-nos assim que não estamos sozinhes. Porque nada disto faria sentido se estivesse sozinha.”

Pronta para arrancar a sua programação de Discurso no TBA, Melissa interpreta a sua presença neste projeto com muita felicidade: “porque posso estar dentro da estrutura e trabalhar dentro de uma instituição importante como é o TBA, o que me deixa obviamente bastante esperançosa, porque [exibe] o poder do diálogo e o facto de haver um espaço para tal. Onde estas reflexões todas que já mencionei estão a acontecer”.

A partir de iniciativas similares, Melissa acredita que a mudança vem da pluralidade social periférica e da sua diversidade, e essa diversidade tem de ser concreta. Então, assim, sente que existem inúmeras possibilidades para que possa curar um programa e conceber algo com toda a liberdade do seu ser, dos seus pensamentos e da sua inspiração. “Dentro desse mesmo espaço de liberdade, concebi este programa com vários ciclos temáticos que se contaminam e este ciclo começa agora em setembro de 2023 e termina em dezembro, mas expande-se através de mais três ciclos que são uma continuidade deste mesmo até dezembro de 2024. Ciclos estes que estão interligados como elementos da natureza, diferentes perspetivas e conceitos sobre transformação”, desenvolve animadamente.

“Começamos com o fogo como a possibilidade de transformação cósmica, que começa agora em setembro e vai até dezembro. Tem conversas, uma conferência e workshops; todos estes momentos conectados pela temática do fogo. Todas estas pessoas que foram convidadas a integrar esta programação são pessoas que para mim, nas suas práticas artísticas, no seu pensamento, no seu discurso e na sua identidade, trazem consigo o fogo como uma possibilidade que queima, uma raiva importante, necessária e precisa e que eventualmente se transforma em fertilidade. Um fogo que fertiliza porque a intenção é esta: a partir da nossa raiva reivindicarmos o nosso direito à raiva, transformarmos tudo em solos férteis, enquanto existe um episódio de renovação, porque é isso que nós precisamos [para sobreviver nestas estruturas racistas]. E foram estes momentos que nos levaram a momentos para pensarmos, conversarmos e estarmos coletivamente numa perspetiva de mudança.”

Enquanto contempla o resultado final do seu projecto, “foi um processo bastante rápido e só foi possível pela enorme generosidade de todas as pessoas envolvidas, que de forma muito bela, dada e cuidada disponibilizaram o seu tempo durante o mês de agosto, conhecido por um período de descanso e pausa”, Melissa realça o poder comunitário e de união. “Aí está a beleza das coisas. Quando trabalhamos coletivamente e numa base de cuidado, que é uma reflexão de como visualizo e idealizo tudo o que faço, com muito cuidado, esse cuidado nutre as comunidades e, quando nós nutrimos as nossas comunidades, acaba tudo por ser algo recíproco e contínuo”. 

Após anos de redescoberta, Melissa é levada agora a lugares bonitos e difíceis dentro dela prórpia, enquanto considera o que teria a dizer a uma versão mais nova de si. “Essa Melissa pequenina pode ser a Melissa de Cabo Verde que viveu lá até aos seis anos, sonhadora e deslumbrada com o mar e viagens, mas ao mesmo tempo pode ser a Melissa de Queluz, e eu espero que essas duas Melissas tenham a habilidade de continuar a sonhar porque o caminho não é fácil mas, acima de tudo, não estamos sós. E o futuro é tão incrível quanto a nossa existência”. 

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

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