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“Horasom”, de Rahiz, é a verdade que o mundo não quer enfrentar

Rahiz / Foto: BANTUMEN
Rahiz / Foto: BANTUMEN

O novo álbum de Rahiz, Horasom (oração traduzido do crioulo), além de ter uma base sonora de reggae, mostra um Rahiz diferente e não só musicalmente. Para aqueles que habituaram-se a ouvir o Celso OPP, com um rap intervertido, criticais sociais, mais incisivo e cru, este novo projeto tem a mesma essência mas com uma energia e dinâmica completamente diferentes.

Horasom é um projeto totalmente imergido numa vibe reggae. Com o selo da Black on Black Music, o álbum conta com 11 músicas – algumas mergulhadas na essência musical cabo-verdiana – e está disponível desde 28 de julho.

É um álbum de boas energias mas que não deixa de lado as tensões e questões sociais do mundo de hoje. É a palavra do “Rahvoluxionary” a fazer-se ouvir por via do reggae – cuja essência está impregnada de crítica social.

Numa curta passagem de férias por Portugal, aproveitamos para esmiuçar o Horasom, falar sobre como chegou até ao reggae e sobre próximos projetos, que pode incluir o lançamento de um álbum de rap.

Rahiz, estive a ouvir o álbum antes de vir falar contigo, e consigo perceber a energia que trazes, mas deixou-me como uma dúvida. Porquê Horasom?

Rahiz: Oração de hora, oração de oração. Mas também quis – não o disse isto em outras entrevistas – brincar um pouco com a ignorância de uma minoria do público que, quando comecei a abraçar muito mais esta questão de orar – eu faço palestras e etc – começaram a mandar as dicas do padre, e o padre, e o padre… E como normalmente na Kweli, que é um projeto do qual faço parte, costumo falar sobre espiritualidade e arte e costumo informar as pessoas sobre a questão ancestral dos artistas. Eram considerados profetas e, digamos, chamãs. Eram pessoas vistas com o poder de profetizar, de curar. Então, quis fazer uma brincadeira com tudo isso e dar um certo sentido, não só para esta questão de me direcionar a alguma ignorância, mas também de fazer sentido no conceito, porque o álbum é melódico, temos ali parte da ancestralidade, temos a Cesária [Évora], temos o Bana. E pronto, é só mesmo para abraçar completamente a espiritualidade daquilo que é o papel de um artista, orar.

Rahiz / Foto: BANTUMEN

Porquê um trabalho com tanta energia como o reggae e não focar em coisas mais positivas?

Rahiz: Eu diria que é uma questão de seriedade. Porque nós associamos sempre o falar as verdades sociais a algo negativo. Parece que o mundo inteiro foge da verdade e a verdade que nos enfrenta e confronta é negativa porque ela é a verdade daquilo que nós não queremos ouvir. Então, o reggae tem esta questão de ter a energia que tem dos sons quentes, do bassline, dos drums, das guitarras, mas o reggae, assim como o meu artista preferido, Bob Marley, era um crítico social, mas também um filósofo e um pensador.

A questão é que nós hoje não apreciamos. Eu creio que foi dada uma conotação negativa muito por engenharia social de que tudo o que abrange identificar dinâmicas sociais.

Se tu disseres a alguém que estou a criticar, rapidamente o cérebro vai para o lado negativo. Mas não, a ideia é abraçar o reggae, porque permite-me que tenha a intervenção do rap, permite-me que tenha as melodias da música que sempre cantei, house music, kizomba e etc. E permite-me estar completamente associado a África. Então, diria que o reggae é qualquer coisa que vou abraçar com muita força porque já vinha a trabalhar num ponto comum do som, da mensagem, da direção, que pudesse representar o Rahiz.

Na altura do lançamento do álbum, disseste que este trabalho teve um processo mais emotivo, mental e espiritual. Foi isso que sentiste sempre durante o processo de gravação, embora o objetivo não tenha sido fazer reggae?

Rahiz: O início do álbum começa com o sonho e na altura eu estava a fazer músicas reggae, só para poder aprofundar, para poder alcançar a mestria. Porque eu podia ir a vários outros produtores pedir beats. Então comecei com o rhythms (ritmos). Eu sou um compositor e de base não há nada que eu não possa produzir. Durante a minha carreira artística como produtor e compositor, tive um pequeno dilema, nomeadamente em Portugal. As pessoas estão à procura de copiar sons. Para mim era muito fácil ser o produtor da berra. Existem poucos produtores, compositores ou artistas, para mim, da minha geração.

Quem entrar comigo no estúdio vai perceber o que estou a dizer. Então, quando comecei a produzir os sons de reggae, não foi para fazer um álbum, foi para descobrir a sonoridade. Primeiro, fui fazendo rhythms mbs e ao mesmo tempo que estava a tentar encontrar [o som]… pensei: “como é que eu ponho o violino das Mornas de Cabo Verde no reggae?”

A essência daquilo que tu queres transmitir como cultura está dentro de ti se tu tiveres descoberto a tua identidade. Então, dei conta que não eram tanto os instrumentos que ia usar, mas é a identidade que eu ia pôr em cima do instrumental de reggae. Não foi pensado como um álbum, não sabia o que ia chamar-se Horasom, não sabia nada.

Rahiz / Foto: BANTUMEN

E quando é que entra a parte emocional?

Rahiz: Este álbum começa por ser assim, só temas, depois direcionou-se pelo processo emotivo. Da vida que fui vivendo e encontrei ali a dor necessária, o foco necessário e a motivação necessária para ter um conceito que é o Horasom.

Todo o conceito deste álbum, mostra, claramente, que o Rahiz não se quer prender a géneros musicais. Mas conhecemos o Celso do R&B, o Celso da Kizomba, já passaste por muitas fases, muitos Celsos. Queres ser conhecido como o Celso ou o Rahiz que é mais versátil na música, mais vulnerável ou, depois de teres passado essas fases todas, queres ficar por um estilo só e manteres-te assim?

Rahiz: Boa pergunta. O que quero transmitir à malta que me segue, nomeadamente aos artistas, é que nós somos a raiz da humanidade, somos os africanos. E é de África que vêm todas as religiões, a ciência, a matemática e tudo isso. Então os instrumentos, a música, a dança, são extensões da nossa cultura para além daquilo que as pessoas conseguem compreender. É espiritual. E eu não vejo música como estilos.

Já saí disso há muito tempo. Havia uma parte em que eu estava confuso, porque estava no processo de compreender quem sou. Então, nessa fase era muito mais interessante para mim o rap. Porque o rap tem esta questão de causar um impacto direto. A minha vida não foi programada. A minha carreira não é programada. Os passos que dou dentro da minha carreira, sim. Agora, tudo o resto é como chega.

Então, não quero que as pessoas me fechem em caixas. Por exemplo, este álbum: o reggae é muito cobiçado em Portugal há mais de 10 anos. Porque é algo que eles veem que podem explorar. Porque o reggae tem uma saída. O reggae tem algo que se for bem feito e tiver o pacote correto, é qualquer coisa de universal. Diferente do rap. Mas desde cedo entendi que eles [da indústria] sempre quiseram explorar uma parte em mim que lhes interessasse e eu não quis comprometer a minha criatividade.

Perdi muita coisa na vida, que na verdade não é perder, porque se Deus e o universo assim decidiu, assim foi. As pessoas não entendem o que eu quero. As pessoas não têm que entender o que quero. Porque as pessoas sempre viam e diziam ‘é pá, eu no lugar do Rahiz, eu com o talento do Celso OPP’ eram estas as conversas, desde que sou puto, ‘eu faria isto, eu faria aquilo’, por exemplo. Agora, está toda a gente a fazer um tipo de som. E, se repararem, quando vocês vão ver, o que é que está de reggae cá fora que vocês acham que é bom, nosso? Não existe. Então, até pode parecer arrogante se eu disser que este é o melhor projeto de reggae de anos a ser feito. Percebes? Porque não há.

Explica melhor o que queres dizer com essa afirmação.

Rahiz: Existem grupos de reggae que estão a fazer reggae? Sim, e atenção grupos de reggae, eu não estou aqui a puxar esta agenda numa questão de criar polémica. O que estou a dizer é que dentro deste mercado onde estou, o que está a ser promovido não se vê e não se ouve o reggae. Em Cabo Verde adora-se o reggae. E no passado eu já tinha tido conversas dessas com a Alison, que era a manager do Conscience e do Kevin Little.

O Conscience, que é um grande tropa meu e tínhamos conversado sobre como é que Cabo Verde é tão importante na história das Caraíbas e tudo que tem a ver com reggae. Estou a seguir algo que não sei explicar às pessoas, mas as pessoas vão vendo. Antigamente diziam que eu fazia vários estilos de música e “isso vai complicar a tua carreira. Sim, porque o público são como ovelhas”, eles gostam de ser dadas ordens. Eu não estou a dar ordens. Estou a deixar a minha obra fluir e a dizer às pessoas que ouvem o que quiserem da minha parte. Como criativo, não estou preso a caixas e espero que tu entendas que, como ser humano, tenho várias emoções, vários sentimentos. E esses vários estilos de música que faço representam vários estados de ser, de sentir, do Rahiz.

Rahiz / Foto: BANTUMEN

É possível o Celso desassociar-se do Raiz? São a mesma pessoa, com o mesmo pensamento, ou são pessoas totalmente diferentes?

Rahiz: O Rahiz é o Celso, mas o Celso não é o Rahiz. Em África, sofríamos iniciações e os nossos nomes eram dados consoante particularidades que identificavam a nossa forma de estar na vida. Perdemos muito esse sentido cultural de que os nossos nomes não são bonitos… E eu vim a estudar isto durante algum tempo. Sou escorpião de signo e dizem que os escorpiões estão ligados ao oculto. O oculto interessa-me bastante e tudo o que é invisível, tudo que é espiritualidade, religião, tudo que é preciso aprofundar um pouco mais e que é místico, interessa-me bastante. E a dada altura, consegui perceber que o nome que te chamam molda a tua realidade. Então, se tu não queres estar associado à realidade dos outros tu crias a tua. Os negros encontram-se num processo muito complicado que é: destruíram-nos do espírito, da mente, deram-nos nomes e apoderaram-se completamente da nossa existência. E parto do princípio que para nós recuperarmos o nosso poder vamos ter que começar a chamar as coisas pelos nomes que nós damos.

Comecei por me chamar um nome que eu sinto, que é o nome que devo ter e que devem me chamar. Celso era o Celso do BI (Bilhete de Identidade), Celso OPP não fui eu que me dei, foram as pessoas que associaram porque eu, o Shotgun e outros membros do grupo, éramos da OPP (Bairro da Outurela, na Portela de Carnaxide, Oeiras), então esse nome não fui eu que me dei, as pessoas deram-mo.

Tanto que a dada altura, mesmo com o hit rap cá fora e o hit kizomba cá fora, as pessoas queriam pôr-me na caixa do rap porque adoravam aquela agressividade que eu trazia. Porque nós vivemos em trauma e esse trauma faz com que a nos identifiquemos nos outros traumas. E aquilo era a frustração, a revolta, o trauma e a dor do bairro. Eu costumo estar aqui a falar com o meu irmão Passion, que está aqui connosco, e digo-lhe sempre que o que se passa no rap em Portugal não me interessa.

Porque não se trata de música, trata-se da sociedade. A música fala um pouco do que a sociedade passa, mas a música que está a ser promovida hoje em Portugal, no rap, não fala da realidade do que se passa em Portugal, pelo menos do mainstream. Então, tenho que me distanciar da música para ser o interveniente na minha vida. Rahiz vem-me dar soberania sobre a minha direção. As pessoas dizem-me “eu prefiro chamar-te Celso”, e eu digo, “não tens que preferir no nome que me chamas. O meu nome é o meu nome. Chamas-me Rahiz a partir de hoje. Podemos falar e tu fazes alusão a eu como Celso, e falarmos sobre Celso OPP, mas queres me chamar como artista, chama-me Rahiz”. E é importante que as pessoas entendam que nós temos que recuperar o poder daquilo que somos, e Rahiz foi isso. Recuperar a expressão daquilo que eu era, abraçar tudo e dizer “pessoal, isto é o resumo que eu faço daquilo que sou”. Rahiz, ra-sol, is-aices, is-ser, raiz da raiz de África.

No início, quando eu e o Fat estavamos a pensar num nome novo para mim, o primeiro ia ser Raiz di Terra. Pegamos no conceito de Raiz di Terra – porque as pessoas sabem há quanto tempo que prego sobre respeitem a nossa comunidade, respeitem o crioulo, respeitem o cabo-verdiano. Há quantos anos que eu faço isso? Antes disso, se quer ser popular. Quando falava disso, as pessoas, até os próprios cabo-verdianos, até a própria cultura, às vezes os próprios africanos negros, pretos, melanados, como quiserem chamar, sentiam-se assim porque vivemos na opressão e temos medo. Cada vez que aparece um irmão que carrega na ferida, dói! E o que é que a gente acaba de fazer? Censuram.

Então, tive que deixar o Celso OPP lá atrás para não se dirigirem para mim com a falta de respeito do “rapaz lá do bairro”.

Rahiz / Foto: BANTUMEN

Claramente que essa tua narrativa e realidade faz com que sejas visto, cada vez mais, como um ativista e acaba por trazer algumas consequências, como perder pessoas à tua volta e até mesmo seguidores para quem pregas. É algo que mexe contigo?

Rahiz: A nossa mãe educou-nos de forma muito específica. I don’t care (Eu não quero saber, em português).E eu digo isto com todo o respeito. Pintaram-me de arrogante, pintaram-me de coisas porque era a sua projeção, era a projeção que eles tinham no seu espelho, o espelho a dizer-lhes “não, se tu disseres que és isso, és visto como arrogante para a sociedade”. Então não é a mim que consideravam arrogante, era a sua falta de coragem de abraçar a sua verdadeira identidade. Nunca estive preocupado com as pessoas que perco, estou mais interessado nas pessoas que ganho, sendo sincero.

Estou no processo de materializar esta ideia de, pelo menos, no meu lado artístico, porque como humanos vivemos de uma grande hipocrisia, pelo menos no meu lado artístico, eu quero ser honesto. E se nessa honestidade perder pessoas, elas não estavam preparadas para a mensagem, não estavam preparadas para ser fãs de Rahiz.

Para terminar, o que podemos esperar de ti nos próximos tempos?

Rahiz: É assim, tenho dois álbuns de rap, um acabado que é o Ravolution e outro que comecei a fazer há pouco tempo. Mas são completamente coisas de outro tipo. Para a malta que tem saudades de uma certa cena, tenho um álbum de rap que se tirar vai haver problemas. Não para mim, mas vai agitar muita coisa. O meu irmão ontem estava a dizer isto, que agora que estou com a cena do reggae deveria manter-me nessa direção. Há estes conselhos à minha volta, só que o que vou fazer não é isso. O que vou fazer é encontrar uma linha que une tudo porque, daqui para trás, já vos mostrei que sou vasto. Então, um concerto do Rahiz no futuro será tudo aquilo que vocês gostam do Celso e mais o Rahiz, percebes?

Neste exacto momento, penso que o mundo precisa de cura, o reggae faz parte desse processo e eu estou sempre alinhado com o universo. Então, o Celso que está dentro do Rahiz tem vontade às vezes de mandar uns raps duros, porque eu vejo aí coisas e passo-me. Mas o Raiz, que é o higher self (eu, superior), diz, “meu irmão, a parte da cura tem que ser feita com sacrifício”. O meu sacrifício neste exato momento é ser o exemplo do progresso de um artista, do progresso de uma carreira, naquilo que é artístico. Porque as visualizações, essas coisas, tudo dependem das plataformas, como vocês, como os mídias e toda a indústria. Se a indústria quiser abraçar-me naquilo que estou a fazer, agradeço. E creio que os ancestrais também agradecem. Mas se a indústria não o quiser fazer, não vou parar porque já mostrei às pessoas que não paro. Estás a perceber? Continuarei a manifestar esta ideia de som, mensagem e atitude.

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

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