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Bia Ferreira: “Se me convidam a falar, eu vou falar”

Bia Ferreira
Foto: Camila M. Tuon

Bia Ferreira é uma artista brasileira com uma música e mensagens politizadas, onde aborda questões essenciais, como necropolítica, cotas raciais, antirracismo, direitos das mulheres e LGBTQIAP+.

Atualmente em digressão pela Europa, a BANTUMEN aproveitou para conversar com a artista reconhecida pelas suas letras contundentes e que usa a sua arte como tecnologia de sobrevivência. A música é ferramenta para gerar identificação e incómodo, como a própria assinala, com o objetivo de desafiar o status quo e contribuir para a mudança social. Indo muito além do questionamento e da reivindicação, no seu mais novo álbum, Faminta, Bia Ferreira foca-se também nas soluções para estas questões sociais. É exatamente isso que quisemos explorar nesta entrevista, bem como conhecer o seu pensamento sobre afrofuturismo e a abordagem que adota para criar identificação e conscientização nas pessoas em relação ao racismo e à história da colonização, mesmo em ambientes onde o assunto é ignorado ou rejeitado.

Bia, consoante de quem estamos a falar, para que existem diferentes definições do que é o Afrofuturismo. Qual é a tua definição de Afrofuturismo?


Eu penso que nada do que a gente não imaginar pode acontecer. Eu acho que só é possível executar e existir depois que for imaginado. E acho que esse é o papel do Afrofuturismo. É a gente pautar a nossa existência reconhecendo a ancestralidade e imaginando futuros possíveis de vivência para além da sobrevivência. É sobre a gente conseguir pensar um mundo para além das mazelas que nos são impostas e respeitando os nossos ancestrais e trazendo a cultura ancestral enquanto base, eu ia falar base moral, mas é que moral é um negócio meio esquisito, né? – mas enquanto base de conduta para a gente.

Pensar vivência e não sobrevivência. Quando a gente está sobrevivendo, quer dizer que a gente está vivendo no limite.
Quando a gente está vivendo, quer dizer que a gente tem bem viver, qualidade de vida. Então, acho que o Afrofuturismo traz essa possibilidade de pensar a gente vivo.

E como vês o teu Afrofuturismo?

Tu pensas sobre o afrofuturismo? Eu penso que é esse olhar para o passado pensando nesse lugar. Tenho uma canção nesse meu álbum novo que se chama “Faminta”, e ela é uma narrativa do que eu imagino que seja o Afrofuturismo, que é:

“Quanto tempo faz que eles contam nossa história?
Quanto tempo faz que constrói nossa memória?
Eu vim pra contar que tão certo como agora…
Eu estarei nas linhas que contam nossa vitória.
Estuda nosso povo, acha tudo isso exótico.
Viver na nossa pele eles não querem.
Fica óbvio, fetiche com a pobreza.
É isso que me assusta. Não vê que reproduz tudo aquilo que é coisa ou outro.
Já vem querer biscoito. Minha empregada é como dar família.
Eu tenho que nojo, deixa que eu conto. Angela Davis já dizia, não basta só discurso, tem que ser anti-racista. Eu vou falando ponto a ponto.
E depois desse encontro, eu não aceito mais desculpa que você não sabia.

A minha escrivivência transcende sua teoria.
O que está no seu caderno eu vivo no dia a dia.

Representatividade. É nós por nós, ninguém vai falar por mim, eu tenho a minha voz.
E se a minha voz em algum momento falhar, posso te garantir que tem muito preto pra falar.

Então deixa que eu conto a minha história, eu me represento, eu recebo as glórias, aprendo com as minhas, e tão certo como agora, eu estarei nas linhas que contam a nossa vitória.
Isso é pra futurismo. É sobre isso. Imagina.

O Afrofuturismo traz essa possibilidade de pensar a gente vivo

Bia Ferreira

É esse encanto e essas palavras que os negros brasileiros já têm que me faz acreditar que são vocês que, de certa forma, vão abrir caminho para os negros em Portugal. Porque ainda existe um certo medo, sobretudo dos negros que nasceram na Europa, em falar. Além de que, por exemplo, como é que em Portugal vais pensar em ser bancário se, ao longo de 25 anos, nunca viste um bancário negro?

O que não é imaginado, não é possível, sabe? Então é preciso criar esse imaginário para as pessoas verem que é possível.
E quando eu cheguei aqui a primeira vez, em 2019, houve uma movimentação nas minhas redes sociais, de pessoas portuguesas dizendo que não existe racismo aqui, que eu que trouxe isso pra cá. Falei, gente, não é possível que eu tô ouvindo isso uma hora dessa, 2019,

E aí eu falei, é, eu acho que a conversa vai ter que ser um pouco mais profunda, porque há uma negação da realidade, né? Então é um outro lugar para que a gente possa abordar. Como é que eu vou falar com uma galera que acha que racismo não existe?
Certo. E acho que esse é o desafio. E como é que eu vou criar identificação com as pessoas que se parecem comigo, que estão aqui, que sofrem o racismo todo dia, sabem que ele existe, mas que não fala, que não pode falar?

No Brasil a gente tem a imagem da Anastasia. E todas as imagens, em livros de história, que a Anastasia é retratada, ela tem uma mordaça na boca, que é uma forma de tortura pro silenciamento dela. E todas as imagens de Anastasia são com ela amordaçada.

Isso é um imaginário e é uma imagem que eu vejo em todos os meus livros de história, desde que eu sou criança.
Então toda vez que a gente fala… Existe uma escritora brasileira que se chama Conceição Evaristo e ela tem uma frase que fala que falar estilhassa a máscara do silêncio.

https://www.instagram.com/p/CoTRQ6CNFjk/


E eu amo essa frase, porque toda vez que a gente fala, a gente rompe com essa imposição de silêncio que é imposta a nós.
E toda vez que a gente vê alguém falando o que a gente gostaria de dizer, a gente se sente mais forte para dizer também.
Eu acho que é desse jeito que a gente vai trabalhando, é desse jeito que a gente vai entrando no coração das pessoas,
gerando identificação com quem se parece com a gente

E gerando incômodo com quem não se parece com a gente.
O incômodo gera mudança. Se a pessoa estiver bem confortável, ela não vai querer mudar. Então, a gente vê que é para incomodar mesmo.

Tu és uma miúda que tem feito o teu caminho desde os 15, 16 anos na escola, que aprendeu a falar com a guitarra porque sem ela ninguém ouvia. Como é que uma pessoa genuína que olha para a frente com esperança, que luta pela sobrevivência do povo negro, chega em Portugal, onde pessoas não racializadas não acreditam que exista racismo, e pessoas racializadas não falam sobre racismo?

Olha, eu normalmente chego pela música porque quem não gosta de música bom sujeito não é, né? Parafraseando o samba, é isso mesmo. Eu acho que todo mundo gosta de música. Às vezes tem um gênero que você gosta mais, tem um gênero que você gosta menos, mas todo mundo gosta de música. E é aí que eu falei, eu vou chegar pela música.

Então, costumo brincar que a gente faz música tão boa que você pode até nem concordar com o que eu estou dizendo, mas a música é tão legal que você vai querer ouvir. E aí a mensagem vai entrar por osmose. Então, aqui em Portugal eu tenho usado o tratamento de choque mesmo.

Eu lancei uma canção agora que se chama “A Conta Vai Chegar“.
E eu explico colonização, dívida histórica, racismo, e falo, olha, existe uma conta a ser paga e a gente cansou de pagar.
A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil e eu cansei de pagar.

Alguém vai ter que pagar. E aí a galera começa a se mexer do lugar, parece que tem formiga no pé, ninguém mais consegue ficar parado assistindo o show, já começa a gerar um incômodo. E nessa hora, é a hora que eu dedico essa canção a todas as pessoas que vêm de África ou de países que foram colonizados e convido essas pessoas a cantarem comigo pra profetizar que essa conta vai chegar.

E aí, essas pessoas que não falam, elas se sentem muito fortes, elas começam a gritar, a conta vai chegar! E aí, quando aquele monte de negrão e negrona tá cantando, cara, é quando a gente devolve a autoestima pra essas pessoas, pra terem orgulho de serem pretas. Nesse espaço que elas estão, para terem orgulho de serem pessoas negras, nesse país aqui que elas vivem, que nega a existência delas e que nega a existência desse racismo imposto a esse corpo.

Quando essas pessoas estão lá e começam a cantar loucamente, a plenos pulmões, é quando eu vejo que a gente saiu da inércia.
A gente saiu da inércia. E aí vem o outro lado, que é… Quando você fala de colonização em Portugal, é como se você estivesse batendo nas pessoas, cara.

As pessoas parecem que… Nossa, é como se você estivesse xingando a mãe deles. Você tá falando colonização e a pessoa… Já cresce.

E aí vai no meu concerto achando que vai ouvir música brasileira.
E a referência que eles têm de música brasileira é, sei lá, Anita ou Carmen Miranda ou Garota de Ipanema. Eles vão esperando música brasileira. Aí a gente chega e fala sobre colonização, sobre dívida histórica, e as pessoas sentem vergonha. Porque a gente faz eles sentirem vergonha.

E aí eu falo, e agora, se você quiser ser uma pessoa aliada,
você vai ter que cantar que a conta vai chegar. Aí, você vê aquele mar de gente branca cantando.
A conta vai chegar, a conta vai chegar. Todos eles cantam.

Quando essas pessoas cantam, eu falo, e se você sair daqui e disser que não sabia, tem um monte de gente testemunhando que você disse que a conta vai chegar. Ser antirracista não é colar no show da Bia Ferreira e fazer um story. Ser antirracista é você entender o que você está cantando, se posicionar quando algum discurso parecido com esse aparecer.

Então a galera preta se sente muito, com muito poder de autoestima, e a galera não racializada que vai nesses concertos, sente a responsabilidade dessa dívida.

E aí, quando eu vou embora, se a pessoa saiu sorrindo, se ela saiu chorando, o meu trabalho foi feito. Eu quero gerar esse incômodo. Eu quero tirar as pessoas da inércia.

Se você vai sair de lá falando mal de mim, você vai ficar uma semana falando com seus amigos. Não, porque ela falou isso, isso, isso. Ótimo, leva a mensagem. E se você saiu de lá muito feliz, você vai falar caramba, você tem que ouvir essa menina. E aí nesse lugar é quando a gente consegue introduzir a mensagem que a gente vem trazer.

Porque Portugal é o primeiro país europeu a legalizar o tráfico de pessoas. Isso tem que ser dito. Não havia tráfico de pessoas e venda de seres humanos [nessa dimensão] antes de Portugal.

As pessoas vão começar a contar essa história real ou eles vão continuar colocando o nome desse monte de colonizador escravagista? Não há uma estátua de pessoas negras. De uma pessoa negra que seja, aqui em Lisboa, eu não vi. Eu não vi. E foram mãos negras que construíram isso aqui. Cadê a nossa história? O Poço dos Negros é a coisa mais bizarra que eu já tive conhecimento. Sabe? Como é que você cria um poço pra jogar os corpos dessas pessoas? Porque não é gente. Sabe? O Miradouro de Santa Catarina, você jogava as pessoas no rio. Para os corpos não ficarem na rua.

A história é muito cruel para ser esquecida. E eu já ouvi aqui que “maus mesmo eram os espanhóis”. E aí eu falo, não, gente. A gente precisa contar essa história. A gente precisa dizer que não foi um descobrimento, que foi uma invasão. Que foi um genocídio.

Eu acho que quando a gente chega aqui, escancarando tudo… A galera racializada fala, eu quero falar também.

E tenho percebido isso. Eu tenho recebido pessoas que falam,
putz, eu quero falar também. Você falou uma parada que eu sempre quis falar, eu quero falar também. E assim a gente vai se libertando. Como você me dando voz pra falar aqui agora. Isso é muito importante, é me ajudar a chegar mais longe.

Bia, acabaste de resumir o conceito com que idealizamos a BANTUMEN. Contarmos a nossa história e mostrar que aqueles livros que todos estudam aqui, que nos pintam, a nós negros, como vilões e os outros como heróis, está errado. Por isso que digo que os negros brasileiros são um abre olhos. Pela vossa experiência e vontade de luta.

Eu acho que os negros vão se salvar, porque a gente está começando a se olhar e se identificar. A gente está começando a entender que a gente é parecido, embora a gente venha de realidades diferentes.

E uma coisa que percebo aqui é que quando você caminha na rua
e uma pessoa negra passa por você, ela nunca te viu na vida, ela vai fazer assim, ó… Ela balança a cabeça. É! É um elemento que, tipo, ninguém fala nada. É um código social. Ninguém fala nada, mas a gente se vê um no outro. Essa identificação, enquanto pessoas negras afrodiaspóricas, vivendo pelo mundo, é o que vai salvar a gente.

Eu acho que quando a gente se olha e se reconhece, essa rede de afeto é o que nos mantém vivos. Quilombo não é à toa. As pessoas negras são a maioria no Brasil hoje, porque houve uma tecnologia chamada quilombo. Quando a gente se junta, a gente é mais forte. E esse reconhecimento vai gerando esse espaço.

As tuas músicas têm milhões de streamings, tens um público gigante no Brasil… o que te faz querer vir para a Europa?

No Brasil há uma movimentação para silenciamento das informações que a gente traz nas canções.
Então, as rádios não querem tocar, os lugares não querem fomentar, as pessoas tentam ao máximo boicotar a mensagem que a gente traz.
E nesse sentido, quanto mais eles boicotam mais a gente entra nas escolas, mais a gente entra no ouvido dos adolescentes.
Hoje em dia eu sou leitura obrigatória para o vestibular no Brasil, na UNB.

Eu estou presente nos livros de história das escolas das crianças. Então, quanto mais eles tentam bloquear, eles fecham a porta, a gente acha uma janela e entra. Então, nesse sentido, quando eu vim para a Europa a primeira vez, eu fui a primeira pessoa da minha família a sair do Brasil, a fazer uma viagem internacional. E isso entre meu avô, meus tios, meus pais, meus irmãos… Sou a primeira pessoa a sair. Isso é um lugar de muita responsabilidade.

Então, vim para cá para falar sobre a arte que eu faço,
mas também para experimentar coisas novas. Eu sou uma pessoa curiosa. Eu queria entender como é que as pessoas iam receber minha arte aqui. Como é que eu ia tocar num país que não fala meu idioma e faria as pessoas chorarem no final do show.
Como é que eu vou fazer isso? E aí eu comecei a estudar um outro público, porque eu acho que o público do Brasil é um público que eu estudei bastante. E aí eu queria chegar aqui e entender como é que a gente cobra essa conta. Porque eu vou cobrar de quem? Do branco brasileiro? Que é só herdeiro, branco brasileiro é herdeiro da colonização.

Mas os colonizadores estão aqui. Imagina, tiraram tudo da gente, tiraram a nossa autoestima, tiraram a nossa história, tiraram a nossa possibilidade de viver. Então poder vir aqui e falar na cara deles, pra mim foi um desafio muito grande, mas foi uma satisfação enorme. Então, depois que eu vim a primeira vez, eu tomei gosto.
Eu entendi que a gente ia ter que levar essa mensagem mais longe.

Vir pra cá é também pra conhecer como vivem as pessoas negras que não vivem no Brasil. Porque eu só conhecia a realidade das pessoas negras que viviam no Brasil. Então, entender como é que as pessoas negras aqui se organizam, como é que vivem, o que pensam…

Ontem eu encontrei um rapaz… que falou pra mim que, “ah, adorei conversar com você, só não gostei porque você é de esquerda e eu sou de direita” e ele era um rapaz negro, angolano. E eu falei, amigo, eu acho que você entendeu as coisas um pouco erradas.

A gente pode conversar, mas entender que a gente vai chegar aqui também e vai encontrar pessoas divergentes, que pensam diferente da gente. Então, como é que a gente vai achar esse ponto em comum? Eu sou curiosa, eu sou pesquisadora de gente. E essa possibilidade de vir para a Europa é a possibilidade de botar nossa mensagem adiante, mas também de estudar outras formas de abordar os temas que eu abordo. Aprender outros idiomas, meu inglês está muito melhor agora, meu espanhol está muito melhor agora.

Eu tenho aprendido um pouco de Lingala, estou tentando, assim, aprender um pouco de francês. Então, acho que essas vivências vão também possibilitando conhecimentos que eu não teria ficando somente no Brasil. E entender que eu venho porque eu sou convidada. Eu sempre venho porque eu sou convidada.

Então, se me convidam a falar, eu vou falar.

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