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Na Guiné há “fome” de Cultura

Ami ku nha sunhu, no Centro Franco-Baissau-Guineen, 2022 | DR

“ku kaminhus sukurus, ku matus medunhus, nô na ianda. Dizisti nunka kasta na nô kabeça. Ku pé na tchon, fididas na tchon, nô na ianda. Dizisti nunka kasta na nô kabeça…”. 

No fim das filmagens, ouve-se esse cantar de ânimo e força que lhes caracteriza enquanto grupo de teatro e cinema emergente na Guiné-Bissau. Eis o Ami Ku Nha Sunhu.

Conheci o grupo há mais de um ano quando vim para a Guiné-Bissau realizar a minha investigação para a dissertação. Os principais membros deste grupo já acompanhavam o meu trabalho, enquanto escritor e poeta, e pediram-me para partilhar algumas técnicas de recitação de poemas de forma mais dramática. 

Aceitei o desafio e passámos uma tarde inteira juntos, a falar sobre escrita e dramaturgia poética, recitar de poemas e entre outros assuntos. No fim desse encontro, fiquei ainda mais encantado com o desfecho, cantaram a música cuja parte da letra está transcrita nas primeiras linhas deste texto.

O que nos diz essa música é sinónimo de muita força e do contrariar as adversidades que se podem encontrar nos diversos percursos: “com caminhos escuros e matas medonhas, andamos. Desistir não está nas nossas cabeças. Com os pés no chão, espinhos no chão, andamos. Desistir não está nas nossas cabeças…”. 

O entoar dessa música fez-me lembrar a canção com o título “bu tem di osa”, que passa no filme Nha Fala (2002), de Flora Gomes, que diz, em parte, o seguinte: “ora ku bu pera tchiu antis di bu salta. Bu tem di osa. Ora ku bu misti fasi amor, mas um bias. Bu tem di osa…”. Ou seja, numa tradução livre: “quando esperas muito antes de saltares, tens de ousar. Quando pretendes fazer amor mais uma vez, tens de ousar…”. E a música continua relembrando sempre que se deve agir perante as hesitações.

O Ami Ku Nha Sunhu andou durante três anos da sua existência a contrariar as adversidades, lutando contra as imprevisibilidades, tendo no seu âmago encarnado o verdadeiro sentido da música que eles próprios escreveram e deram melodia. Não escolhem e nem escolheram espaços perfeitos para realizar os seus ensaios. 

Qualquer sítio onde pudessem caber e serem autorizados ou não, lá estavam para preparar os seus trabalhos com mais afinco. Sem apoios apropriados e sem recursos, decidiram enfrentar e criar as suas próprias histórias, escrevendo-as, montando todos os cenários e filmando com uma única câmara o seu primeiro longa metragem intitulado “Princesa Makuta”. Assim se fizeram jovens dignos de surpreender tudo e todos com o filme que se estreou no passado mês de julho.

Sem querer falar inteiramente do filme, partilho aqui algumas notas que considero serem muito interessantes e de destaque nesta primeira longa metragem dos jovens do grupo Ami Ku Nha Sunhu. 

O filme retrata um facto real e de injustiça que recai sobre a Princesa, pelo facto de seu pai, Rei, lha impedir de viver a sua juventude de forma apaixonante com o amor da sua vida, Ntimis, um grande pescador. Essa aproximação virá trazer grandes problemas para o pescador, que legitimamente devia assumir-se como Rei do Reino Pata Na Tchon, por ser a única pessoa restante da linhagem.

O início do filme resgata um comportamento quase em extinção, em que um grupo de crianças pede ao tio, um contador de histórias, que lhes conte a história da Princesa Makuta. Este, por sua vez, vai guardar o livro que estava a ler e começa a tocar, cantar e a contar a história para as crianças sentadas numa esteira. É através desse conto que vai desenrolar-se toda a história do filme, acompanhada de uma sonoridade e voz única do multi-instrumentista guineense Mû Mbana. 

Hoje em dia não verificamos o tal comportamento em que os mais velhos de uma determinada família criam relações de proximidade, onde as crianças estarão motivadas a ouvirem histórias para as ajudar a ter, cada vez mais, uma memória histórica sobre o passado e lições de vida.

Um outro aspeto que podemos retirar enquanto ensinamento do filme é que não temos que continuar a perpetuar casamentos arranjados, por mais que queiramos negociar o casamento das nossas filhas nunca devemos interferir nas suas aventuras, enquanto jovens que precisam de adquirir experiências para serem adultos mais responsáveis e que possam decidir sobre as suas vidas e com quem querem viver. 

Esse ensinamento é uma das críticas que se pode ver no filme, pois, o Rei decide que a Princesa Makuta deve casar com o Príncipe Nitube de Reino Kezari, por força de imposição. Em contrapartida, recebe alguns bens monetários e promessas por parte de Nitube.

O mais impactante de todo este trabalho é a adesão do público guineense, principalmente jovens, que dizem sem soltar as suas vozes que têm “fome” de assistir e/ou presenciar atividades culturais no país. Querem a existência de espaços maiores e que sejam um investimento nacional, onde todas as pessoas possam caber. Pois, o que aconteceu na estreia do filme nunca foi visto naquele que é o único e maior espaço fechado de apresentação de um espetáculo ou exibição de filme.

Estávamos empilhados no Centro Cultural Franco Bissau Guineense e a quantidade de pessoas que ficou do lado de fora por não conseguir sequer entrar para estar de pé ou aqueles que ligaram para saber se havia lugares ou não foi enorme. Dava para encher novamente a sala do Centro. Um registo nunca visto nesse espaço que surpreendeu e deixou boquiaberto a todos os que diziam que estes jovens nunca poderão ser aquilo que sonham ser e fazer.

Os artistas do grupo Ami Ku Nha Sunhu demonstraram ser resilientes e ousados porque, apesar de não receberem nenhum tipo de apoio para a conceção da sua primeira obra cinematográfica, conseguiram demonstrar que, embora com escassos recursos, têm capacidades e motivações para fazerem mais e melhor. 

Esse espírito é transversal a todos os jovens guineenses que se estão a revelar em diferentes esferas, sendo que a motivação, ousadia, capacidade e o sentir a Guiné-Bissau não lhes faltam para criarem novas coisas e reinventar o país, que outrora era de honra e glória.

Abaixo podes ver o trailer do filme Princesa Makuta, disponível no YouTube.

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Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

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