Procurar
Close this search box.

IV Encontro de Cultura Visual: um espaço de debate fora da “macrocefalia” de Lisboa

Kitty Furtado, académica e investigadora | DR
Kitty Furtado, académica e investigadora | DR

Não é novidade que, nos últimos tempos, a capital portuguesa tem servido de palco para eventos que se propõem debater e/ou amplificar o discurso relacionado com questões raciais. Numa discussão que se quer nacional, as conversas estendem-se agora ao norte do país. A cidade do Porto acolhe nos próximos dias 23 e 24 de junho o IV Encontro de Cultura Visual, uma iniciativa com curadoria das investigadoras Kitty Furtado e Inês Barreiros, em conjunto com a oficina de teatro Mala Voadora.

A BANTUMEN teve oportunidade de falar com Kitty Furtado a propósito do encontro, que este ano se dedica ao tema reparações. “A forma como o capitalismo absorve tudo em seu próprio proveito e no sentido de se fortalecer faz com que certos assuntos muito rapidamente se transformem numa coisa que nunca foram”, começa por nos adiantar Kitty a propósito da discussão que afirma querer “recentrar”. Para a investigadora o tema reparações está na ordem do dia, mas é quando a discussão se torna aquilo que se pretende que ela seja que a percepção e disponibilidade para o tema tendem a mudar. Quando se fala de reparações “que têm a ver com cotas, com a restituição de objetos roubados, com políticas” o debate torna-se mais difícil. É como se o tema se tornasse uma vítima de si próprio: a forma como invade o espaço público leva muitas vezes as pessoas a achar que estão por dentro do assunto, quando na verdade, muitas vezes, não há amplitude e pluralidade no debate. Daí a necessidade de “recentrar” o tema e trazê-lo a si próprio.

Tenho cada vez menos confiança na vontade real do poder, seja ele qual for

Kitty Furtado

“Estamos a falar de coisas muito duras, muito difíceis e que não se resolvem em duas horas de (uma suposta) desconstrução”, conta-nos ao mesmo tempo que esclarece que um dos objetivos do encontro é debater e apresentar propostas políticas concretas. O encontro pretende ser uma base teórica para fornecer alimento para aquilo que se vai passar na oficina durante os 12 dias seguintes – numa iniciativa que convida músicos, artistas e ativistas a refletir sobre o tema para fazer uma apresentação pública no Teatro Mala Voadora nos dias 7 e 8 de julho.

Sem certezas daquilo que poderá ser apresentado, a investigadora é peremptória ao afirmar que o resultado será em tudo diferente da “conversa burguesa de chover no molhado”. Todo e qualquer objetivo artístico criado durante a oficina vai ser um espaço de reivindicação, com o objetivo concreto de ver mudanças políticas, ainda que não sejam para já.

A relação que Portugal tem com o seu passado colonial e a forma como as consequências de 500 anos de escravatura são vistas como “coisas do passado” são também alguns dos temas trazidos a debate. Para a investigadora, Portugal não devia esperar que as antigas colónias pedissem de volta o espólio indevidamente apossado – a iniciativa deveria partir dos dirigentes políticos de livre e espontânea vontade. Mas como reivindicar reparações políticas, sociais, culturais, quando “grande parte das instituições portuguesas foram fundadas com dinheiro escravocrata”? Furtado vai mais longe ao colocar em causa a própria história, que assume ser “falsa” e acrescenta que reparar o passado colonial é também reparar e reavaliar a narrativa histórica que prevalece até aos dias de hoje. Acredita que o facto se deve à “apropriação do discurso por parte de poder” e não se coíbe de dizer que “continua tudo na mesma”.

Na verdade, as discussões em torno de questões raciais/coloniais são muitas vezes “uma oportunidade para convidar umas pessoas, ganhar dinheiro, eventualmente, tudo menos o trabalho duro de reparar”. A forma como oradores, investigadores e académicos negros são convidados a falar sobre o tema apenas quando “não é para conversar” leva Kitty a duvidar das reais intenções de fazer algo.

“Tenho cada vez menos confiança na vontade real do poder, seja ele qual for”, diz-nos acrescentando que quando o discurso pacífico e aglutinante dá lugar a questões desconfortáveis, o orador negro é commumente visto como “vilão”. A verdade é que conversas em torno de racismo, reparações não têm elevado a comunidade negra a espaços de poder. Figuras como Joacine Katar Moreira, Francisca Van-Dunem ou Beatriz Dias, pese embora a importância que têm a nível de representatividade, não são nem podem ser usadas como exemplo de reparação. “O Obama foi eleito presidente do país mais poderoso do mundo e o racismo não acabou nos EUA”.

A reestruturação da comunidade não passa por um indivíduo, passa sim por um coletivo que se quer organizado e assente num trabalho de base diário. “Se pudermos, exigir (mais) dos representantes políticos, mas não é isso que vai mudar estruturalmente as coisas”.

No fundo, o que fazer? Como fazer? Quais os agentes de mudança? O que são efetivamente reparações e a quem cabem? Kitty Furtado lança o repto a quem quer saber mais sobre o tema: estar presente nas mesas redondas que terão lugar nos dias 23 e 24 de junho e ir até ao Teatro Mala Voadora, nos dias 7 e 8 de julho, para uma reflexão final conjunta. O encontro que este ano tem lugar no Porto, longe da “macrocefalia de Lisboa”, parte de uma base comum para uma partilha de ideias e reflexões diferentes. “É isso que se pretende”, não uma concordância unânime, mas um debate amplo sem tentativas de esvaziar o assunto, remata.

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

Recomendações

Procurar
Close this search box.

OUTROS

Um espaço plural, onde experimentamos o  potencial da angolanidade.

Toda a actualidade sobre Comunicação, Publicidade, Empreendedorismo e o Impacto das marcas da Lusofonia.

MAIS POPULARES