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Karla da Silva, a cantora carioca que vive e respira o samba

Karla da Silva | ©Caio Amaral
Karla da Silva | ©Caio Amaral

Karla da Silva, nascida em 1984 no bairro da Madureira, Rio de Janeiro, é uma artista versátil — cantora, instrumentista e, acima de tudo, uma apaixonada pela música. Cresceu imersa num ambiente artístico, onde o som da viola e a poesia se entrelaçavam, moldando a sua afinidade com a música desde os primeiros anos de vida. Embora tenha tirado o curso em Letras, foi na música que descobriu a sua verdadeira paixão e vocação.

A sua jornada musical começou em 2007, sendo profundamente influenciada pelo samba, soul e jazz. O seu reconhecimento como artista ampliou-se quando participou na primeira edição do programa “The Voice Brasil”, alcançando a posição de semifinalista. Impulsionada pelo sucesso do programa, Karla da Silva decidiu mudar-se para São Paulo, levando a sua música para os mais variados palcos em todo o país.

Agora, em Portugal, compromete-se a continuar a partilhar a sua autenticidade e verdade através da sua música, transportando consigo a essência única do samba, que ultrapassa fronteiras e encanta em qualquer lugar.

Podes partilhar connosco o teu percurso de como foste de seguir os teus estudos em Literatura para uma carreira na música, especificamente ligada ao samba tradicional?

Eu sempre escrevi. O que chega pra mim, primeiro, é a música, mas atraída pela palavra. A palavra muito… Sempre foi muito sagrada e a poesia sempre me comoveu muito. Começo a escrever aos 12 anos começo a escrever e em seguida consumi muito poesia e literatura. Um dos primeiros livros que li foi Dom Casmurro, de Machado de Assis.

E aí quando eu chego ali no final do primeiro ano do segundo grau, que seria a secundária, me apaixono muito pela literatura. Nessa altura, eu estudava violino, porque também me interessava muito pela música clássica. Pedi um violino ao meu pai, e o meu pai, com muito esforço, conseguiu me dar um. E aí decido que o que eu queria fazer era estudar literatura.

Sendo que o meu trabalho de final de curso na universidade eu vou falar de filosofia, vou falar de Vinícius de Moraes, dentro da literatura. O samba já está ali presente, de uma forma ou de outra. O samba eu caminhei nele. Nnasci em Madureira, nasci na terra primordial do samba, no Rio de Janeiro. Acho que, em algum determinado momento, tanto essa poesia, essa literatura que fui buscar, que fui estudar, tanto por dom e depois por busca intelectual, isso se une ao samba, que é a tradição de onde eu venho, que é a minha escola, a minha raiz, e a música mais urbana por conta das minhas vivências da época, do momento.

Começo a ir para São Paulo, começo a ouvir o rap, começo a ouvir cantores que já faziam uma fusão de sonoridades. A arte que produzo, de uma maneira geral, começa a ser influenciada por essa modernidade, por essa urbanidade também.

“Festejo e Fé” foi um marco significativo na tua carreira. Qual foi a inspiração por trás deste EP?

“Festejo de Fé” foi um disco muito especial, que depois se tornou um EP. Foi um trabalho em que eu começo a pesquisar composições de autores da minha geração.Então, eu vou gravar Marcelo Fedrá, vou gravar Pedro Ivo, Alan Rocha, que eram músicos, compositores, artistas, que estavam ali no meu meio, que participavam deRodas. É um disco que tem uma fundamentação muito na questão da minha fé. Ele antecede um pouco a minha iniciação no Candomblé, e ele traz muito essa sonoridade. É engraçado porque hoje a ouvir um disco que foi gravado em 2008, eu hoje ouvi trabalhos como o da Luedji Luna e diversos artistas, vejo que o quanto que nós fomos vanguarda, nessa sonoridade. Já em Festejo de Fé, a gente usava ali junto com MPB, com a bateria, usamos um toque tradicional do Orixá, nós usávamos claves, sonoridades, influências da cultura do candomblé, dos toques, dos cânticos, das louvações aos orixás.

É um disco muito importante para mim, por ser o meu primeiro disco, o meu primeiro álbum. Quando gravei esse disco, eu trabalhava na Petrobras. Eu era secretária no Jurídico da Petrobras, aos 25 anos. E me forcei ser mandada embora, fui mandada embora e com o dinheiro dessa rescisão, uma parte usei para gravar esse disco, então é um disco muito importante, ele é um divisor de águas para mim.

O programa de televisão “The Voice Brasil” ajudou-te a obter apoio para a pós-produção do teu álbum através de crowdfunding. Como foi participar no programa?

A participação no “The Voice Brasil” foi um caminho muito próspero pra mim porque participei na primeira edição, uma edição muito genuína, com artistas muito genuínas, que teve como vencedora, uma mulher negra, lésbica, fora dos padrões europeus. Então foi muito genuíno. 

Foi a primeira edição para Rede Globo, era o primeiro para todo mundo. Fui semifinalista e isso me deixou muito contente, ter chegado até ali. E foi uma marca muito importante, durante muito tempo, acho que até hoje, ou em qualquer lugar do mundo quando você fala The Voice, as pessoas sabem que você atravessou algumas portas para poder chegar naquele programa, que você provou para algumas pessoas que você realmente sabe fazer aquilo, sabe cantar. Gerou muito reconhecimento, reconhecimento da imprensa, reconhecimento dos contratantes. 

Fora que eu ganhei um público muito grande no Brasil e no mundo. Eu saí numa lista das 40 melhores blind auditions do mundo, do The Voice Mundial. Fiquei em 13.º lugar, dentro dos 40 melhores, foi um produtor norte-americano que fez essa lista, então você ganha um reconhecimento mundial, até hoje as pessoas me olham em alguns lugares e elas falam, nossa, conheço vocês em algum lugar, as pessoas guardam a sua carinha ali. Foi uma estrada muito bonita que gostei muito de ter caminhado nela. Tenho orgulho, tenho gratidão e foi um desafio muito interessante de participar.

O teu estilo, tanto na música como na moda, é frequentemente descrito como híbrido e eclético. Como defines o teu estilo musical?  

Esse estilo musical híbrido, ele reflete na minha moda e no meu lifestyle, de uma maneira, porque é muito verdade pra mim. Canto aquilo que é verdade, aquilo que me comove, e a minha arte é o que é verdade para mim e o que me comove.

Esse estilo é bem difícil de definir, porque ele é um… ele bebe de muitas fontes. Eu tenho uma fusão muito grande de géneros e de perspectivas, informações e gostos. O meu próximo disco é um disco de samba chamado Sotaque, em que uso o samba como uma linguagem e as influências e as fusões como uma língua, uma linguagem. Posso definir o meu estilo musical assim. Meu estilo musical tem muitos sotaques. É uma língua, porque é uma língua que fala de brasilidade, que fala de ancestralidade afro-brasileira, fala de música popular brasileira e de sambas e batuques e jongos e música negra brasileira, mas ela conversa, meu estilo conversa com diversos outros estilos e influências, tanto da música brasileira, quanto da música africana, quanto da música afro-americana e não só. Poderia definir assim o meu estilo, o meu lifestyle, minha moda, meu jeito, muito cheio de influências e interferências de tudo aquilo que eu vou absorvendo ao longo da minha caminhada.

Eu nasci nos anos 1980 e, de lá para cá, bebi de muitas fontes de música, tanto da contemporânea como do passado, e isso reflete no meu jeito de ser e naquilo que consumo.

Eu sempre digo que sou um movimento negro. Sou uma negra em movimento

Karla da Silva

Dizes então ser inspirada por várias fontes, incluindo vibes urbanas africanas, mistura de estilos e a era dos anos 1950-1960. Podes elaborar sobre como estas inspirações influenciam a tua música?

Por exemplo, a música dos anos 1970, tanto do Brasil como mundial, vamos dizer ali, mais precisamente Estados Unidos, a música estadunidense e inglesa, talvez, reflete bastante no que eu ainda componho hoje em dia, ainda tenho influências setentistas. Tanto na minha poesia, quanto nos arranjos, no tipo de instrumento e de intenção que eu dou nas levadas, por mais que eu esteja falando de samba, vou usar um piano, são sonoridades que conversam comigo. O Samba, bossa nova, do jazz. São sonoridades que me movem muito, que são muito verdade para mim, fazem parte do meu berço, eu bebia dessas fontes.

Cresci numa casa de músicos, de cantores. Nós ouvíamos todo tipo de música do mundo inteiro e aprendemos a refinar o nosso gosto para tudo sempre a conceito, e isso se tornou uma influência para mim também. Eu nasci no berço do samba, mas me debrucei muito sobre diversos estilos, porque tínhamos essa abertura também em casa. Na minha casa nós ouvíamos de Djavan, mas também ouvíamos Beatles, Ella Fitzgerald, Elza Soares, Gilberto Gil, João Bosco. Por isso, a minha influência vai desde os tambores dos terreiros de Candomblé, que frequento desde criança, até as batidas de Fela Kuti. 

Isso tudo é influência pra mim, porque a arte é livre e é onde posso ser livre. Num mundo padronizado, racista, e tão cheio de correntes, de aprisionamentos. É na arte que consigo me libertar e florescer, de uma maneira ampla, plural e libertária, me empoderando e empoderando outras pessoas também.

Viver como uma pessoa negra no Brasil, é um tema que costuma discutir nas suas entrevistas. Pode partilhar mais sobre as suas experiências que experienciou devido ao racismo no Brasil. Utiliza a sua arte e música para abordar ou combater essas questões?

Eu sempre digo que sou um movimento negro. Sou uma negra em movimento, constante, desde sempre. E eu já sou um combate ao racismo em si. É claro que através da minha poesia e do meu discurso eu busco empoderar os meus irmãos e minhas irmãs e denunciar e expor o privilégio branco, expor tudo aquilo que mantém essa máquina assassina, que é o racismo, não só no Brasil, mas em todo lugar que eu vou. Mas, sobretudo, no Brasil é muito cruel o velado, aquilo que é velado, aquele racismo à brasileira, racismo por debaixo dos panos, em que ninguém é racista, que é proibido falar sobre racismo, mas o racismo existe e as pessoas sofrem, as pessoas pretas sofrem todos os dias, os olhares, os mísseis, os mísseis invisíveis que são os olhares, palavras e tudo, então eu acredito que eu gostaria, busco ser cada dia mais engajada e informada. 

A informação, o estudo, o escurecimento das ideias e a leitura, o contacto com a literatura antirracista, com teóricos e pensadores negros, tanto contemporâneos como do passado, isso empodera a gente e faz com que a gente consiga se defender e se proteger mais. Entretanto, a minha própria presença, ela já é um escudo e uma luta antirracista.

A minha presença como eu sou, na minha essência de mulher negra, lésbica, gorda, candomblicista, artista. Eu já sou o ativismo em si, caminhando por aí, pelas ruas e vencendo o meu olhar sempre em frente, de cabeça erguida, o que é difícil. O racismo é muito covarde, ele vai deteriorando a tua força.

Mas é mesmo na ancestralidade, nos orixás, na minha fé, naquilo que cultuo e no que acredito de música, de arte, de futuro, que busco essa paz, essa utopia chamada paz. 

Porquê é que te decidiste mudar para Portugal? 

Eu ainda não sei porque eu decidi mudar de país. Na verdade, sempre quis mudar de país.Eu amo o Brasil, amo o Brasil indiscutivelmente. É a terra que nasci, que é o meu orgulho de ter nascido lá.Mas eu sempre soube que eu não morreria no Brasil. Que em algum momento eu iria para fora do Brasil.Eu nunca pensei para onde, sempre pensei na Europa. Nunca pensei em nenhum outro país da própria América, mas vim para Portugal em 2018 fazer uma turnê e, quando cheguei no Brasil, senti muita vontade de voltar. Parecia que eu não deveria ter ido embora.

A princípio, eu queria muito morar em Paris, me encantei por Paris, por aquela pluralidade, aquela imagem de epicentro europeu, que hoje em dia nem tenho tanto assim, respeito, adoro, amo, gosto sempre de Paris, mas já não tenho esse desejo de ter lá a minha casa. Eu gosto que seja meu quintal mesmo, que eu vou, que frequento, que canto e que volto. Portugal, a cada dia, me mostra o porquê de eu ter vindo para cá, se apresenta. Embora não seja fácil viver aqui, não seja fácil se construir como esse ser imigrante, esse ser no mundo, ainda mais difícil com essa crescente xenofobia e as dificuldades também da sociedade em si. Não só para mim, mas para o povo, para todos, mas eu gosto muito de viver aqui e foi uma escolha que foi acontecendo.

Acho que no primeiro momento eu vim como um experimento, mas que depois de uns dois,três anos eu falei, não é aqui que eu quero ficar, porque gosto muito de vivera qui, gosto da tranquilidade. Já morei em muitos lugares do país, morei no extremo do interior e na capital. O resultado é que eu gosto muito.

Essa mudança geográfica influenciou a tua música e visão artística?

A maior influência que a mudança geográfica trouxe para a minha música e para a minha vida foi me aproximar ainda mais do meu país (risos). Foi aqui em Portugal que me vi, indiscutivelmente, como uma voz do samba e a continuação do também da minha geração, seja cá, nesse continente como uma voz do samba e da música brasileira, da música, sobretudo a música afro-brasileira. Essa foi a principal influência, porque quando você tá longe daquilo que você é da sua terra, é que você consegue se enxergar como um um pedaço de tudo, da minha cultura, do meu povo.

Um dia, vendo as pessoas numa roda cantarem e aquilo era tão religioso, filosófico, empoderante, necessário para elas, que compus o “Samba Cura”, que é uma das minhas músicas, e entendi que é a minha missão. É um pouco além dos meus gostos. O samba me escolheu pra ser uma voz dele e eu preciso honrar isso.

Encontraste desafios por seres uma artista migrante negra em Portugal? 

Eu tive a sorte de encontrar movimentos muito prósperos aqui. Faço parte de alguns movimentos de samba aqui, as pessoas já estão há dez anos batalhando. Mas é um país muito fechado, muito fechado. Eu digo muito fechado para a arte, porque não sinto que seja um país onde a arte é um primeiro ou terceiro, um quinto bem essencial. Não é para o povo gostar, apreciar a arte, curtir, eu não sinto isso. E principalmente a arte brasileira, porque além dela ser muito ampla e acho que o público português tem muita dificuldade de discernir o que é a música brasileira em si, as suas influências, os seus lugares, as suas gavetas, as suas prateleiras, porque é uma música muito ampla, de um país muito amplo, de uma cultura muito próspera, muito grandiosa. Então, às vezes, as pessoas contratam um show de samba e elas querem ouvir Ivete Sangalo. Elas querem ouvir sertanejo, porque elas contrataram uma banda de samba para tocar música brasileira. Elas não entendem que música brasileira tem muitos subgêneros, tem géneros e subgêneros, enfim. 

Como é que navegaste e integraste as tuas experiências culturais brasileiras num contexto musical diferente em Portugal?

Tem essa questão que é muito rasa e tem questões muito profundas, como a questão da xenofobia mesmo, que isso tem provocado muitas barreiras para esse público daqui. Quando você liga o rádio por exemplo, você já entende qual tipo de música que funciona aqui. É muito parecida, porque são todas iguais, os cantores, as mesmas vozes, a mesma perspectiva, quase a mesma poesia, então você já entende que existe um jeito, um gênero meio único.

Fora que carrego a bandeira do samba. Sou uma mulher preta, cantora de samba, não escondo muito quem sou, sou o que sou, então não sei se eu agrado muito, mas eu também não estou muito preocupada porque vim ao mundo para fazer música, e existem pessoas que querem me ouvir. Eu faço música para essas pessoas, para as que não amanheceram ainda, para a pluralidade das coisas, para a pluralidade da arte, das pessoas, do ser humano.

Estou pouco me lixando para elas. Acho que elas precisam definitivamente, em algum momento, acordar porque o mundo continua, está aí, as coisas estão acontecendo. Eu faço música pra quem quer me ouvir. 

Defendo a bandeira de um gênero muito importante, que durante muito tempo foi a força de um povo excluído e, como diria Caetano Veloso: “O povo negro entendeu que o grande vencedor, se ergue além da dor. Tudo chegou sobrevivente no navio, quem descobriu o Brasil foi o negro que viu a crueldade bem de frente e ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente.”

O samba é um milagre de fé, o samba nasce e ele vem com esse povo, nasce da mistura, da fusão desse povo que veio sobrevivente do navio. Então se eu canto samba, eu já nasci quebrando barreira e eu estou aí pra isso mesmo, um peito para bala, de peito aberto, com muito amor no meu coração, porque eu canto com amor, acima de tudo. Não sou maior que a música, a música é meu guia, minha missão. E acredito nesse futuro melhor para o artista em Portugal, o artista no geral, e sobretudo para o brasileiro em Portugal. Acredito num futuro com menos ódio, com menos estigmas, com menos preconceito, com mais abertura, união. Eu acredito muito nesse futuro. Eu vejo esse futuro claramente.

Esse futuro vai ser construído com a mistura, com aquilo que muitos temem, que é a mistura, que é a miscigenação. Nós vamos vencer no amor, como uma roda de samba, onde todos se misturam, todos cantam e não há bandeiras, há só vozes, clamando por alegria, por catarses, porque viver é difícil pra todo mundo, para todos nós, para todo ser humano. Eu acredito que a gente vai se misturar, a gente vai se envolver, e quando for ver é tudo uma gente só, e aí não vai ter mais tempo para excluir. Parece utópico, parece romântico e talvez seja, mas é o que eu acredito. Sou cantadora. Isso é coisa de cantador. Cantador é assim, a gente vê o mundo com esses olhos, com os olhos da esperança.

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