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“Contrate artistas pretos, porque isso é reparação histórica também”, MC Martina

MC Martina | RÜLIO
MC Martina | RÜLIO

É de papo reto, como a própria refere. Nascida e criada no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, a rapper, poeta e produtora cultural MC Martina usa a palavra como uma arma. Os versos são um escape à violência que “adoece” a sociedade e marca o quotidiano nas favelas do Brasil.

Na adolescência já escrevia, mas foi só, aos 19 anos, quando ouviu outra mulher negra recitar, que se identificou e percebeu que a poesia também podia falar das suas vivências. Estava a trabalhar num evento de literatura, e essa mulher era Mel Duarte: “Vi outra mulher preta, com uma realidade semelhante à minha. Achei muito legal, me inspirei muito, e aí só fui”.

Desde então, idealizou o Slam Laje – a primeira batalha de poesia falada do Complexo do Alemão, e um dos primeiros slams a serem realizados dentro de uma favela do Rio de Janeiro. Foi também uma das fundadoras da iniciativa cultural “Poetas Favelados”, que faz ataques poéticos nos transportes e escolas públicas.

Hoje, com apenas 25 anos, Martina mostra que a poesia é “bagulho acessível”, enquanto cria uma nova narrativa sobre um território “que é marginalizado” e “criminalizado”. O que faz é um ato de resistência. Por isso, também quer inspirar outros, e fazer da arte um motor de mudança.

Para ti, qual é o poder da palavra?

A palavra é muito poderosa. Porque uma palavra, ela levanta, e uma palavra, ela derruba. Já tive situações em que fui recitar e que quem precisava de uma palavra era eu. Mas a gente sempre tenta absorver de várias formas diferentes. A palavra é muito importante. Para mim, é uma ferramenta de ascensão social. Também é a minha carta de alforria. 

Sentes que as tuas palavras têm impacto na vida de outras pessoas?

Sim, porque vejo, no dia a dia, o retorno do público. Algumas pessoas se emocionam, outras pessoas ficam felizes. Porque remete à infância, remete a alguma memória afetiva que elas têm, ou a alguma situação que elas estão vivendo no momento. 

Escreveres sobre a realidade da favela. Isso é também um processo de autoconhecimento?

É, sim. Acho que é autoconhecimento sobre si, sobre o território, sobre o outro, sobre como você se relaciona com o seu próximo, com o lugar onde você vive,

mas também consigo mesma. Porque a gente fala que a violência que acontece, no dia a dia, aqui no Rio de Janeiro – essa falsa guerra de drogas, que, na verdade, é guerra dos pobres – e esse racismo, que acontece de forma diária na nossa sociedade, adoece a gente. Então, temos de ter uma válvula de escape.

Como é que o Slam Laje marcou o Complexo do Alemão? Consegues ter a perceção do impacto?

Já se tornou uma referência! Hoje em dia, chego em casa, chego na casa da minha mãe e as crianças vêm-me procurar, perguntam quando vai ter [slam] de novo. Os moradores já são um público fiel. Então, tem gente que sempre vem, vem gente de outros lugares…

Estamos criando uma nova narrativa sobre um território, que é marginalizado, que é criminalizado. Estamos criando uma nova forma de entender literatura, que não é uma coisa formal, uma coisa erudita, é um bagulho acessível, que pode falar, sim, sobre a nossa realidade. Pode, sim, ser legal. 

O slam vêm muito para tornar a cultura da literatura mais divertida. Vem para quebrar o estereótipo que tem sobre ler. Porque muitas pessoas acham que favelado não lê. Favelado lê, sim. Só que a gente está consumindo informação o tempo todo. E o slam é uma forma democrática de a gente mastigar informação, de tornarmos temas muito complexos de forma didática.

Consegues escolher alguns versos que mais te identificam enquanto pessoa ou enquanto artista?

Esse é um poema do teu primeiro livro, Nunca Foi Sorte, Sempre Foi Poesia, que lançaste no ano passado, com textos que retratam a realidade das favelas cariocas. O que te levou a lançar este livro?

Eu falo que tenho dois filhos. O meu primeiro filho é o Slam Laje, que é a batalha de poesia que organizo há seis anos no [Complexo do] Alemão, e o meu segundo filho é o Nunca Foi Sorte [Sempre foi poesia]. 

O Nunca Foi Sorte é um projeto literário que tem várias camadas. O livro é uma camada. Também tem um filme, que é uma outra camada. E ele vem para a gente conversar sobre banzo, sobre autoestima, mas também sobre humanidade. Porque ele fala muito sobre como nós, enquanto pessoas negras, em vários momentos da nossa vida, somos desumanizadas. E por conta disso, a gente se desumaniza e se acostuma a achar que é normal sofrer violências, que é normal sentir um vazio e não entender o que é isso. O livro é sobre isso, é sobre levantar essa reflexão, é sobre o resgate da nossa memória ancestral. Ele fala sobre vários assuntos.

E a quem queres chegar? Aos moradores das favelas, numa lógica de consciencialização, de empoderamento, ou às pessoas que vivem uma realidade diferente, mais privilegiada, e que não conhecem realmente os problemas destas comunidades?

O público-alvo do [Slam] Laje são os moradores. Porque acredito que nenhuma mudança virá de fora para dentro, e, sim, de dentro para fora. Então, é a gente se ouvir, se escutar, é fazer as crianças sorrirem também. Do nosso público, 90% são crianças. É muito bonita a forma como somos abordados por elas, a forma como muitas crianças nos tratam. Aí você pega o retorno e vê a importância de você fazer aquilo. Não é por status, não é por media. É acreditar no que você está fazendo e saber que, se lá atrás, quando tu eras criança, alguém foi gentil contigo, hoje, em adulto, a gente retribuí. Isso também é ancestralidade.

Como é que foi crescer, enquanto mulher, negra, no Complexo do Alemão?

Crescer foi uma parada. Acho que tive uma boa infância. Fui cercada de pessoas que amava, tive uma boa educação, gostava do lugar onde vivia, sendo que a minha realidade não era fácil. Eu via as coisas faltando em casa. Queria ajudar a minha mãe. Vi hoje uma reportagem – uma matéria da Nicki Minaj – falando que, nós adultos, achamos que as crianças não sabem o que é a pobreza, mas as crianças sabem, sim. E eu fui uma criança preta pobre, favelada. Cresci vendo faltar tudo em casa, e sou a filha mais velha. Então prometi, para mim mesma, que quando crescesse não deixaria nada faltar. Tento honrar isso. A minha maior conquista hoje é conseguir ajudar minha mãe, em casa.

Disseste numa entrevista, no ano passado, ao Estadão Expresso, que tinhas “uma dificuldade absurda para conseguir o reconhecimento” que acreditavas que merecias no mercado” e disseste também que, às vezes, o dinheiro ainda ficava apertado para tudo o que era preciso. Ainda faltam oportunidades?

Se me perguntas assim, “Martina, o que é que tu és?”, eu falo, “eu sou artista”. Porque trabalho a arte em várias camadas. Faço poesia, faço música, apresento como mestre de cerimónia, faço teatro também, fiz um filme, estou dialogando com várias linguagens artísticas. Mas acho que no mercado – não só eu, mas vários outros artistas, que vieram do mesmo lugar incomum, como eu, ou seja, que vieram de periferias, que são pessoas negras – a gente é muito desvalorizado, é tratada como mão de obra barata, e essa é a minha crítica à indústria. Às vezes, a gente até consegue chegar num lugar, mas quando chega pagam-nos menos da metade do que pagariam [a outros artistas], por exemplo. 

Se você pesquisar no Google, encontra esta referência: um homem branco ganha mais do que uma mulher branca; uma mulher branca ganha mais que um homem preto; e um homem preto ganha mais do que uma mulher preta. Eu estou na base dessa pirâmide. Posso fazer a mesma coisa que um artista branco vai fazer, mas, só por ele ser homem branco, vai ganhar mais do que eu. É isso que falo sobre desigualdade no mercado de trabalho, porque isso afeta a nossa vida em várias escalas. O que deixo de reflexão, um convite pra quem for ler essa entrevista, é: contrate uma mulher preta, contrate artistas pretos e não tenha medo de gastar dinheiro com eles, porque isso é reparação histórica também.

Já recitaste no Espaço Favela do Rock in Rio, no Festival Virada Cultural Amazónia de Pé, no Museu da Arte Moderna. São sítios onde, certamente, estiveste perante um público diversificado, com pessoas com diferentes vivências. É diferente, do que quando o fazes na tua comunidade? Nestes sítios, o que é que muda?

Eu sei entrar, e sei sair. Antes de abrir a boca, o meu corpo já fala. Sou uma mulher preta, retinta, moro no Rio, sou cria do Alemão. Mas acredito que, com as minhas letras, consigo dialogar com várias gerações. Consigo dialogar com uma criança, com um adulto e com um idoso. É diferente a animação, mas não tem como. Acho que onde a gente foi, fomos bem recebidos. Nem todos os lugares, mas em geral.

Sentes que a mensagem chega a todos os espectadores?

Chega sim! O meu papo sempre foi reto.

Eu não circulo só em favela, eu circulo a pista também, não em ambientes de elite, eu não circulo nesses espaços, mas vejo muito esse aprendizado no slam, porque a cena de slam, de poesia falada no Brasil, é muito grande. E no Rio de Janeiro também. Então faço parte de uma outra geração de slam. Hoje somos referência para outras gerações, pessoas que são mais novas do que nós, que são de outros lugares, pessoas brancas também que a partir do que ouviram passaram a se educar, a se literar racialmente.

A luta contra o racismo, no Brasil é muito forte. Ao longo do teu percurso de vida, 25 anos, tens visto mudanças?

Há bastantes mudanças, sim. O Brasil é um país muito diverso. Acho que muita coisa melhorou. Temos de reconhecer essas mudanças. Não é o ideal, mas hoje a gente tem mais pessoas negras em posições de poder, em protagonismo nos media, nas publicidades, no entretenimento, na literatura… 

Lembro que li uma pesquisa, feita entre 2011 e 2014, que dizia que, entre esses anos, 90% dos romances publicados, no Brasil, eram de homens brancos. Penso que não temos esses dados para a poesia. Mas conheço mais autores negros, pessoas da favela escrevendo, recitando… então acredito que esse número diminuiu, e que o número de escritores negros aumentou. 

A gente está aí, disputando narrativa, disputando espaço, contando nossa própria história na primeira pessoa, mostrando para o mundo uma outra camada. Acho que a arte tem de ser profunda. Não gosto nada do superficial. Arte que é arte tem camadas. No teatro, eles falam que temos de quebrar a quarta parede e, na poesia, eu falo a mesma coisa: a gente tem de tocar as pessoas. Acho que está melhor o cenário, sim. Não é o ideal ainda. Ainda somos muito desvalorizados, mas está bem melhor.

É preciso mais políticas públicas também? Têm sido importantes?

Sim, bastante. Hoje em dia, no Brasil, acham que o segredo para tudo, para resolver as coisas, é segurança pública. Pelo menos, o Rio de Janeiro tem o governo que mais gasta dinheiro com segurança pública. Em nenhum Governo vejo a cultura protagonista. Investindo mais em cultura, em educação, em desporto e lazer, é possível que consigamos criar uma realidade melhor.

Isso vai no sentido do que defende o Movimentos, o grupo de jovens das favelas e periferias do Rio de Janeiro – de que fazes parte – e que acredita que uma nova política de combate às drogas é possível? A solução passa pela educação, pela cultura, pelo desporto…?

Faz parte dos nossos ideais, sim. Inclusive no Movimentos, atualmente, eu cuido da demanda da produção cultural. É fundamental, porque as pessoas acham que a guerra às drogas é a causa de muitas coisas, mas, na verdade, ela é a consequência. Porque a causa de muitas coisas é o racismo, é a pobreza, então a gente está discutindo a importância de entendermos porque que tem operação onde a gente mora, porque que a gente é tratado diferente nos ambientes onde a gente circula. É importante entender como o nosso corpo se relaciona na sociedade. 

E, como já referiste, isso só pode ser feito de dentro para fora. No site do Movimentos, diz: “Nada sobre nós, sem nós”…

Isto tem muito a ver com o fenómeno da Marielle Franco, no Brasil. Antes da Marielle, a política era outra. Depois de a Marielle surgir na política e de acontecer, infelizmente, o assassinato dela, a política mudou. Tem mais mulheres como vereadoras, como deputadas, em outras posições de poder… Mais mulheres negras, mais homens pretos, mais pessoas LGBT, como a Erica Malunguinho, a Erika Hilton… A política está mais diversa. Hoje, a gente tem um diálogo melhor com o governo, mas falta melhorar muita coisa ainda. O Estado precisa entender o favelado não como problema, mas como solução de muita coisa. 

Tens esperança de que isso vá acontecer ainda no teu tempo de vida? 

Não sei se vou ser viva ou não, para ser sincera. Mas a gente tem de ter perspetiva, tem de ter esperança. Posso me surpreender. 

Onde gostarias de estar daqui a alguns anos?

Quero tocar mais pessoas. Quero conhecer o Brasil todo. Quero muito que, a partir do Slam Laje, venham outras coisas no Alemão. Eu sou cria de projeto social. Se hoje faço o Slam Laje, como projeto social, foi porque, lá atrás, alguém fez um bagulho, quando era criança, que me atingiu. Então, espero que as crianças que estão no Slam Laje hoje, que assistem e participam, que, no futuro, elas façam os seus próprios projetos, ou toquem o Slam Laje.

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