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O café, aroma de conversas e desigualdades


Há precisamente quatro anos, fizeram-me uma pergunta aparentemente simples: “O que une os portugueses?” Surpreso, respondi instintivamente que era o “café”. Nesse momento, estabeleci uma conexão peculiar e recordei-me de alguns colegas universitários que, frequentemente, reuniam-se num café e mantinham uma relação próxima. No entanto, essa resposta ampliou os horizontes desses exemplos e trouxe à luz um fenómeno intrigante: a omnipresença do café no tecido social português.

Nesta sociedade, onde as conversas fluem com a cafeína nas veias, os bares a café tornam-se espaços de discussão sobre variados temas, desde política e futebol, até às fofocas banais. Contudo, esses diálogos, muitas vezes, revelam ideias e falas racistas e discriminatórias. Os cafés são palcos sociais, onde a fervura das ideias mistura-se ao aroma forte da bebida, ambiente perfeito para a germinação e perpetuação de estigmas coletivos.

Neste contexto, o café apresenta-se como uma moeda social não convencional, onde as interações diárias são frequentemente impulsionadas pelo líquido negro e quente, que une encontros e opiniões. Simultaneamente, esse xarope amargo e revigorante carrega o peso de uma história complexa, servindo como fonte de sustento económico que durante muitos anos foi a base da economia portuguesa. Porém, por trás da beleza dos campos de café e dos cafés movimentados, existe uma narrativa da qual pouco se fala: o café como fator de exploração do povo negro.

O comércio histórico do café está marcado por relações desiguais e exploração humana, delineando uma sombra persistente na jornada daqueles que o cultivaram no passado e continuam a fazê-lo, colhendo os grãos que eventualmente enchem as chávenas de muitos cafés pela Europa. Assim, entre o aroma de um expresso e as conversas nos cafés, surge a dualidade do café como reflexo complexo da sociedade portuguesa. Uma bebida que transcende o seu papel de apenas estimulante para tornar-se um espelho que reflete tanto a comunhão social quanto as cicatrizes de uma história intricada.

Quatro anos após a minha primeira reflexão equivocada sobre o papel do café na identidade portuguesa, descobri que a verdadeira força coesiva dos portugueses é a saudade, e não o café como anteriormente afirmado. Não é apenas a saudade em si, mas a saudade enquanto elemento unificador. Esta está relacionada com a ideia do “poderia ter sido”, os desejos de um tempo passado e a difícil aceitação do legado das ex-colónias.

A saudade, que inicialmente parecia um mero sentimento nostálgico, revelou-se, com o tempo, como a cola que une os portugueses. É a saudade que gera uma identidade coletiva, um fio invisível que conecta as experiências e as memórias partilhadas por todos. Afinal, a saudade também carrega consigo o peso dos desejos não realizados e das escolhas que moldaram o curso da História de Portugal.

Ao olhar para trás, percebe-se que os portugueses carregam o fardo da consciência de não terem conseguido administrar as suas ex-colónias da maneira idealizada. Os sonhos de um império glorioso colidiram com a realidade complexa e muitas vezes cruel da colonização. O desejo de uma união fraterna entre a metrópole e as colónias não se concretizou, deixando um vazio que a saudade preenche de forma ambígua.

E depois?

A primeira vez que ouvi a expressão “preto, vai para a tua terra”, tinha 18 anos e jogava futebol no campeonato distrital. Lembro-me de ter pensado, por que raios falam do lugar de onde vim? Essa pergunta fez-me ter uma amarga constatação em relação ao que tinha sido dito.

Aquilo que os antigos colonizadores queriam, mas que foi negado, retorna hoje de maneira cruel usando a violência e o preconceito como resposta. A negação dos desejos do passado não resultou num esquecimento pacífico, mas num ressurgimento distorcido. Os anseios não realizados alimentaram um terreno fértil para conflitos e discriminações, manifestando-se como uma sombra do que poderia ter sido. Portanto, a saudade, que inicialmente parecia ser apenas um fio de nostalgia, revela-se como uma força mais complexa, capaz de moldar não apenas a identidade, mas também as relações sociais e as dinâmicas de poder.

A consciência falhada de lidar com o passado e os desejos não realizados geraram consequências que, com o passar tempo, manifestam-se através de pequenos e grandes discursos como o da xenofobia e o do preconceito. Assim, a saudade não é apenas um sentimento, mas um fenómeno social e histórico que exige uma compreensão profunda e um confronto honesto com as escolhas do passado para construir um futuro mais inclusivo e reconciliador. E, quem sabe, talvez depois disso, ninguém tenha de ouvir mais o “preto, volta para a tua terra”.

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