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“A nossa luta pode até ser semelhante, mas as nossas dores são sentidas e vividas de forma individual”, Regina Lima

Regina Lima | DR
Regina Lima | DR

O atual contexto pandémico veio reforçar, uma vez mais, a importância da saúde mental. Por muito que já se tenha desconstruído a importância da Psicologia e o papel do psicólogo, não só a nível pessoal, mas também o impacto a nível coletivo, nomeadamente no que diz respeito à forma como nos relacionamos e a perceção que temos dos outros, a verdade é que, para alguns, o assunto continua a ser tabu e a comunidade africana é disso exemplo.

Apesar dos avanços, persistem alguns estigmas e preconceitos associados à Psicologia e demais áreas de intervenção. Do mesmo modo que se começam a abrir algumas portas, existe ainda alguma resistência, muitas vezes, causada pela quase forçada necessidade de superar tudo sozinho/a.

Falámos com a psicóloga Regina Lima, licenciada em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, com Mestrado Integrado em Psicologia Clínica e da Saúde na área Cognitivo Comportamental e Integrativa, e que atualmente exerce a sua atividade na Clínica dos Arcos, em Lisboa. O local onde trabalha é conhecido por fazer interrupções voluntárias de gravidez e foi justamente sobre isso que falámos: gravidez; aborto; a forma como uma IVG pode afetar o psicológico da mulher; o acompanhamento psicológico na comunidade africana, a necessidade de entender as particularidades da comunidade e de que forma isso ajuda a desenvolver um trabalho mais eficaz; a mulher negra, os estigmas, onde estamos e para onde caminhamos.

Queres explicar, em linhas gerais, como surgiu a tua relação e gosto pela Psicologia?

O desejo de compreender e ajudar os outros a nível emocional manifestou-se desde muito cedo, mas o primeiro interesse no plano profissional foi na área da medicina, na especialidade de pediatria.

 No entanto, no secundário, a disciplina de filosofia, centrada em questões sobre a existência humana e o conhecimento, revelou-se atrativa desde a primeira aula, estimulando a vontade e necessidade de saber mais. Este interesse ganhou uma forma mais clara com a disciplina de psicologia, parecendo ter organizado dentro da minha cabeça aquilo que gostaria realmente de fazer.

Diria que dadas as dificuldades no acesso ao curso de Medicina e, já havendo este gosto pelos processos da mente e do comportamento humano, a escolha acabou por ser natural.

Quando falamos de Psicologia Clínica, estamos a falar de que tipo de intervenção/área de atuação?

Psicologia clínica e da saúde com a vertente cognitivo-comportamental e integrativa, uma abordagem clínica que assenta na relação entre pensamentos, emoções/sentimentos e comportamentos. De uma forma muito sucinta, a intervenção baseada na terapia cognitivo-comportamental tem como principal objetivo identificar padrões de pensamentos, crenças, emoções e comportamentos que estão na origem dos problemas, apontando, a partir daí, técnicas para alterar essas percepções disfuncionais e permitir a substituição por processos mais funcionais e saudáveis. Esta abordagem destina-se a intervir nas diferentes perturbações psicológicas e emocionais como a depressão, ansiedade, perturbações psicossomáticas, perturbações alimentares, fobias, traumas, dependência química, entre outros. Atualmente, atuo com enfoque nos problemas mais ligados à ansiedade e depressão.

É possível prestar um acompanhamento, mesmo o psicólogo não estando bem emocionalmente?

Gostaria de salientar que o psicólogo é, antes de tudo, um ser humano. Como tal, tem emoções, sentimentos, frustrações e momentos menos positivos, pelo que tem também as suas vulnerabilidades, sendo suscetível de sofrer de problemas psicológicos como qualquer pessoa. Como psicólogos, é-nos recomendada psicoterapia ou acompanhamento psicológico, sendo um benefício para o nosso bem-estar emocional e também para a qualidade do serviço que prestamos. Quando a nossa sua saúde mental está comprometida, dificilmente conseguiremos realizar uma intervenção de qualidade, pois torna-se complexo ajudar alguém a nível psicológico se, psicologicamente, também estivermos a passar por uma fase delicada. O papel assistencial que exercemos é fundamental na promoção do bem-estar da pessoa, não só a nível psicológico como físico e social, e a nossa prática deve ir ao encontro desta premissa, sendo que a prioridade é fazer bem a quem a nós recorre e, consequentemente, evitar causar algum tipo de dano. Para podermos prestar este bem-estar também precisamos de estar bem, e só conseguimos cuidar dos outros cuidando de nós em primeiro ligar.

De que forma te “desligas” ou que mecanismos usas para não absorver os problemas dos teus pacientes?

Quando estou com um paciente canalizo para si toda a minha atenção e dou o melhor para o poder ajudar, mas desligo este foco quando termina a consulta. Essencialmente, direciono a minha mente para o “aqui e agora”, focando no momento presente. É certo que existem situações que nos prendem mais do que outras fora do contexto de consulta, mas abordo-as no sentido de me ajudar a conduzir o processo em si, fazendo com que não seja “engolida” pelo problema.

Trabalhas na Clínica dos Arcos, uma instituição muito conhecida por fazer interrupções voluntárias da gravidez. Sentes que, de alguma forma, este assunto ainda é um tabu?

Apesar da legalização e despenalização do aborto ter acontecido há mais de dez anos em Portugal, em determinados momentos, sinto que este assunto é ainda tabu, infelizmente. O próprio feedback das mulheres que chegam à clínica confirma a existência do estigma que ainda persiste, pelo relato da forma como são tratadas por alguns profissionais das instituições de onde são encaminhadas ao saberem que desejam interromper uma gravidez, muitos deles objetores de consciência. E o mais surpreendente, é verificar que este tabu existe no seio das relações pessoais, notando-se até uma certa discriminação dentro da própria família e amigos, a quem algumas mulheres revelam receio de contar sobre a situação.

Ao nível do acompanhamento, quais são as questões que as mulheres mais colocam antes e depois do processo?

As questões mais frequentes recaem sobre a parte médica do procedimento, configurando as questões mais práticas da consulta informativa, essencialmente, possíveis complicações e consequências de interromper a gravidez, nomeadamente na fertilidade, isto é, se poderão engravidar novamente. Para algumas mulheres a questão prende-se mais com a tomada de decisão, a dificuldade em lidar com as dúvidas e a ambiguidade que pode caracterizar esta escolha. É muito comum a necessidade de validação, de que estão a fazer o mais correto e de que tudo irá correr bem em termos médicos. Fundamentalmente, desejam que transmitamos a segurança e a confiança que precisam para avançar com a decisão de interromper a gravidez. Após o processo, surge por vezes o receio de consequências a nível psicológico, nomeadamente se poderão ficar traumatizadas, assim como a dificuldade em lidar com o facto consumado de terem interrompido a gravidez, revelando sintomas de tristeza e arrependimento. O apoio psicológico pode ser prestado em todas as fases do processo.

A culpa que algumas mulheres sentem depois da interrupção pode ser causadora de depressão ou ansiedade? Em que sentido? E de que forma se pode intervir no sentido de combater?

O caminho percorrido até a tomada de decisão envolve muitas variáveis e pode ser um momento de grande ambiguidade e hesitação para algumas pessoas. Após o aborto algumas mulheres podem apresentar dificuldades psicológicas, muitas vezes ligadas a estados de sofrimento emocional pré-existentes. Cada gestação é vivida de modo muito particular por cada mulher, e a culpa que as pode acompanhar após a interrupção de gravidez pode estar relacionada com concepções existentes acerca da maternidade, com o sentimento de que se cometeu uma atrocidade, um acto imperdoável, com o ter feito algo que no fundo não seria a sua vontade, com os valores culturais e pode interferir significativamente no bem-estar psicológico da mulher.

Consequentemente, poderão existir prejuízos no seu dia-a-dia, afetando significativamente a sua qualidade de vida, o que pode culminar no aparecimento de sintomas depressivos e ansiedade. Sendo todas as intervenções adequadas à individualidade de cada mulher, o papel do psicólogo clínico, de um modo geral, passa por ajudá-la a legitimar e aceitar os sentimentos que está a experienciar e a aumentar o seu nível de auto-compaixão. A intervenção pode consistir em fazer uma retrospetiva e ajudar a mulher a centrar-se nas razões que a levaram a interromper a gravidez e nas informações de que dispunha no momento da decisão, focar a sua atenção no momento presente, fomentar o envolvimento em actividades prazerosas e posteriormente olhar para os seus planos futuros.  

Existe algum padrão a nível de comportamento e/ou atitude nas mulheres que fazem abortos?

Decorrente da nossa experiência, verificamos em algumas mulheres atitudes muito semelhantes, relacionadas e dependentes do seu grau de decisão, mas cada caso é um caso. Mulheres que ainda não tomaram uma decisão revelam mais dúvidas e insegurança relativamente à decisão a tomar, tendo em conta todas as variáveis que influenciam esta decisão. O modo como cada pessoa lida com a questão da interrupção da gravidez depende muito do grau de aceitação da situação em que se encontra: por vezes é notória raiva e frustração, que acaba por ser projetada em nós, mas que está relacionada ao modo como se sente e como experiencia este momento.

Por outro lado, observamos que as mulheres que já têm a sua decisão seguramente fundamentada manifestam, essencialmente, o desejo de que o procedimento possa acontecer o mais célere possível. Para algumas mulheres, dependendo das suas circunstâncias de vida, abortar é a única opção possível no momento, acabam por ter de decidir algo sem grande opção de escolha. O peso do contexto de vida da mulher, a idade, a situação económica e profissional, a existência de filhos, a saúde dos seus relacionamentos, a conjuntura cultural – é preponderante.

Olhando agora para a Comunidade Africana e sobretudo para a mulher africana, é normal procurarem-te no sentido de pedir ajuda?

Existe por parte de algumas africanas uma maior descontracção e conforto quando se deparam com uma psicóloga negra. Há mulheres que chegam a verbalizar um sentimento de maior afinidade e proximidade devido à cor da pele e um maior à vontade para expressar situações particulares ligadas ao nosso contexto cultural.

Que tipo de questões são mais recorrentes quando falamos do acompanhamento psicológico da mulher negra?

As questões que motivam a procura de ajuda psicológica por parte da mulher negra acabam por ser parecidas às de todas as mulheres. Encontramos muitas semelhanças neste sentido, talvez percecionadas ou até colocadas de maneira diferente, tendo em conta a individualidade de cada uma. No entanto, posso afirmar, que o contexto cultural e algumas dificuldades enfrentadas especificamente pelas mulheres negras podem ser um factor diferenciador.

A imposição quase forçada da “mulher forte” pode interferir na saúde mental da mulher negra? Em que sentido?

A questão das expectativas criadas pelo contexto da mulher negra, e que vão sendo por si internalizadas desde a infância, podem multiplicar-se em crenças que irão interferir no seu modo de funcionamento psicológico, nomeadamente na forma de lidar com os problemas.

Normalmente, esta expectativa que existe da mulher africana, na convicção de que tem de ser forte e do mesmo ser esperado pelos outros, pode fazer com que deixe de reconhecer e expressar as suas necessidades, podendo levar à incapacidade de reconhecer as suas dificuldades como legítimas, a não aceitar ou a desvalorizar as suas vulnerabilidades e o seu sofrimento psicológico. O que se poderá traduzir, num sofrimento silencioso, dificultando um eventual pedido ou aceitação de ajuda tanto por aqueles que lhe são próximos como o recurso a ajuda psicológica de carácter especializado. Em consequência, tudo isto pode conduzir a um ajustamento psicológico desadequado tendo um impacto negativo na saúde mental da mulher, podendo levar ao aparecimento ou agravamento de dificuldades psicológicas.

É legítimo afirmar que, a nível da Psicologia, é necessário olhar mais para a comunidade africana, no sentido de fazer uma intervenção adequada às suas particularidades?

É legítimo. Primeiramente no sentido de um maior conhecimento da psicologia enquanto área de saúde ao serviço da comunidade africana. Seria importante trabalhar de forma a desmistificar e desconstruir algumas crenças em relação à doença mental, à psicologia e ao papel do psicólogo. Infelizmente, ainda nos deparamos com um estigma acentuado em relação ao indivíduo com uma perturbação mental, claramente associado ao desconhecimento sobre a mesma, e à invisibilidade que a caracteriza. Existe mais dificuldade em acreditar e lidar com o que não é palpável nem mensurável, logo a complexidade a nível da compreensão e aceitação é maior.

No âmbito de uma intervenção relativamente à comunidade africana, é necessário ter em conta o nosso passado histórico, marcado por momentos particularmente desafiantes para a saúde mental dos negros. Infelizmente, existem marcas vincadas  que foram transmitidas de geração em geração e continuam a ser perpetradas. Atualmente, continuamos a presenciar momentos de violência psicológica e não só, na nossa comunidade, entre outros desafios que nos marcam e nos podem condicionar. Considero importante conhecermos as ideias que os negros têm em relação aos próprios negros, a imagem que temos de nós próprios e a forma como isso influencia o nosso comportamento em sociedade e, partindo desta premissa, devemos intervir tendo em conta as particularidades que caracterizam a comunidade africana, o nosso contexto histórico, social e cultural.

Sendo tu mulher, negra e psicóloga, que caminho ainda nos falta percorrer?

Como mulher negra e psicóloga, diria que estamos a fazer um bom percurso, no sentido que não deixamos de lutar e resistir aos mais variados desafios que nos são colocados há anos, mas que ainda nos falta percorrer bastante desse caminho. Já conseguimos assistir a uma crescente valorização, emancipação e empoderamento da mulher negra e hoje, onde nos encontramos e nos lugares que ocupamos, já temos alguma presença e voz. Ainda assim, continuamos a lutar pela maior proteção da nossa integridade física e psicológica, pela busca de oportunidades, de inclusão e de uma sociedade mais igualitária, ou seja, pela conquista do nosso espaço e melhores condições de vida no geral.

Considero fundamental olhar para a saúde mental da mulher negra, exposta a tantas agressões ao longo do tempo, com consequentes feridas, e tornar o acesso aos cuidados de saúde mental mais facilitado, quer a nível das medidas e políticas em saúde, quer em termos económicos. Adicionalmente, devemos trabalhar mais numa ótica de prevenção da doença e promoção de bem-estar psicológico e não somente em termos remediativos/curativos.

Que conselhos deixarias a jovens/mulheres da nossa comunidade?

Primeiramente, devemos tentar praticar a compreensão, o respeito e a empatia, colocarmo-nos genuinamente no lugar do outro e sermos capazes de ajudar. A nossa luta pode até ser semelhante, mas as nossas dores são sentidas e vividas de forma individual: não sabemos aquilo pelo que alguém pode estar a passar e o nosso comportamento não deve ter a capacidade de causar mais dano. Salientar que nem sempre estaremos bem psicologicamente e não há mal nenhum nisso, reconhecer as nossas vulnerabilidades também pode ajudar-nos a visualizar as nossas forças. Pedir ou aceitar ajuda é um acto de coragem e o primeiro passo da caminhada em direção à melhoria.

Outra questão que tenho vindo a observar com cada vez maior regularidade ultimamente e gostaria de aconselhar, é a comparação face aos padrões a que estamos constantemente expostos: não se comparem, por mais difícil que possa ser atualmente, tendo em conta a acessibilidade que temos à parte da vida que é exposta pelos outros através das redes sociais. Sobretudo na camada mais jovem, onde a influência do grupo de pares acaba por exercer um papel significativo. Noto que a pandemia veio acentuar este excesso de comparação, uma vez que as redes sociais tornaram-se o meio de comunicação privilegiado, e a vida virtual passou a ser mais ativa, permitindo-nos também um maior acesso à vida dos outros. Embora sejamos seres sociais e este comportamento tenha uma componente expectável, por vezes a tendência é compararmos o que achamos ser o pior de nós com aquilo que os outros têm de melhor, tendo em conta que, normalmente, as pessoas partilham apenas o que querem mostrar, a melhor parte do seu dia, a sua melhor versão. Esta comparação acaba por revelar-se injusta, gerando insatisfação, sentimentos de inferioridade, frustração e insegurança, podendo influenciar significativamente a nossa auto-estima, e aumentar níveis de ansiedade e depressão, revelando um impacto psicológico negativo. Mais do que focarmos nos outros, e sermos guiados pelos seus padrões de vida, devemos permitir compararmo-nos connosco próprios, face à nossa versão passada, sendo este o caminho para o desenvolvimento e evolução.

Por último, afirmar que não se limitem e que não se deixem limitar pelos outros, ou por qualquer obstáculo. Acreditar que são capazes de conquistar os seus objetivos e sonhos: o importante é tê-los definidos e o primeiro passo está na mente de cada um, só ela nos pode mover ou travar, o sucesso começa com este percurso.

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