Procurar
Close this search box.

Selma Uamusse: “É preciso haver um entendimento melhor daquilo que é a realidade da classe artística”

Selma Uamesse | Divulgação
Selma Uamesse | Divulgação

Com mais de 20 anos de carreira, Selma Uamusse tem trilhado um percurso singular na música portuguesa. Nasceu em 1981 em Maputo, a capital moçambicana, mas mudou-se em 1988 para Portugal. Cantou com os Gospel Collective, Cacique ‘97 ou os Wraygunn antes de, nos últimos anos, numa fase mais madura do seu percurso, lançar-se em nome próprio, reconectando-se com as suas raízes moçambicanas.

Lançou os álbuns Mati (2018) e Liwoningo (2020), onde canta nas línguas do seu país, explorando as respetivas polirritmias e polifonias, além de sempre ter estabelecido colaborações com diferentes artistas ao longo dos anos.

Na edição deste ano do festival MIL, do qual a BANTUMEN foi parceira, a cantora de 42 anos participou num debate sobre um dos principais desafios da indústria da música de hoje: as tours. São um grande objetivo para qualquer artista, mas podem revelar-se muito exigentes e desgastantes, podendo facilmente afetar a saúde mental do performer. Afinal, não faltam exemplos, de algumas das maiores estrelas mundiais da música, que nos últimos anos têm adiado ou cancelado digressões por não se encontrarem mentalmente bem. O facto de já não ser tanto um tabu até pode ser benéfico, mas há muitos fatores de pressão que recaem sobre os músicos.

Por outro lado, a pandemia abalou a indústria da música ao vivo e foram muitos os técnicos — essenciais para os espetáculos — que deixaram a área em busca de outra fonte de rendimento. Quando os concertos puderam novamente realizar-se, muitos não regressaram aos seus postos de trabalho, não querendo voltar para empregos precários que, em circunstâncias extremas como aquelas que vivemos, não lhes garantiriam qualquer tipo de segurança e estabilidade. A inflação generalizada e o aumento do custo de vida também tornou as tournées mais dispendiosas do que nunca. A BANTUMEN entrevistou Selma Uamusse sobre esta temática tão pertinente para os dias de hoje e acerca da sua experiência enquanto mulher negra em Portugal.

É importante haver estas convenções, conferências, onde se produz pensamento associado à música e à cultura? Sentes essa importância enquanto pessoa que está enquadrada no circuito?

Até mais do que ser uma assídua assistente dos concertos do MIL, porque há muitos vocacionados para programadores ou que já vi ou que posso ver noutra altura, tenho tentado ir assiduamente a quase todas as conversas. Por várias razões. Primeiro, porque são conferências com muita proximidade. Ou seja, há sempre a sensação de que, se eu quiser falar com aquela pessoa, independentemente de estar a ouvi-la enquanto público, facilmente posso chegar a ela. E acontecem muitas coisas e, como toco fora, interessa-me conhecer outras realidades e estar próxima. Mas há sempre assuntos que são interessantes e tenho muita curiosidade em ouvir outros colegas, as suas experiências, as coisas que correm bem e mal; ouvir quem edita, quem programa, quem produz e quem executa. Para mim, é fundamental, para quem trabalha na indústria da música, que haja uma plataforma como o MIL. Muito por causa desta proximidade e de poder ser uma plataforma em que rapidamente ouves alguém a dar algum testemunho sobre alguma situação e podes-te relacionar de uma forma direta e rápida. Num tempo em que a informação e o conhecimento circulam de uma forma muito mais rápida, com a digitalização, há muitas coisas que já não funcionam by the book como antigamente. Há uma espécie de despertar para outras realidades que às vezes ainda não nos são próximas mas que já estão lá e precisamos de ser acordados para elas. Por isso, respondendo à tua pergunta, sim [risos]. É mesmo fixe o trabalho que o MIL faz e é muito importante para quem trabalha na indústria da música.

Esta temática também é particularmente pertinente. Por um lado, tem-se falado muito mais de saúde mental e também tem sido, desde os artistas independentes aos grandes artistas de milhões de fãs, um tema recorrente, inclusive com estrelas pop mundiais a adiarem ou cancelarem tours por esse motivo porque as tours são muito exigentes e há uma série de fatores que influenciam isso. Por outro, a questão financeira, já que a pandemia e a inflação abalaram o ecossistema da música ao vivo e os custos das tours… E como tu tens a experiência portuguesa mas também de atuar lá fora, e com vários projetos, também tens essa perspetiva. Sentes que é uma altura muito desafiante para as digressões?

Sim, há muita pressão, e por isso as questões da saúde mental são prementes. Porque um artista faz-se a tocar, por muito que haja um lado importante de criação… Pelo menos no meu caso, eu sou uma artista de palco. Quero é estar em palco e tocar. Há muitas pessoas a tocar, muitas vezes não há muitos meios, não há muita dignificação do artista e isso pode trazer alguma frustração: um artista que possa ser muito grande em Portugal vai para fora e é um artista pequeno e é tratado, obviamente, em função do patamar em que esteja situado nesses outros países. Por isso, acho fundamental que possamos falar sobre que tipo de apoios é que uma pessoa pode ter para não dar em maluca. No meu caso, há uma pressão adicional, que também é o caso de muitas pessoas — o facto de termos uma família, estarmos muito tempo fora, lidar com a ausência… Estar longe da família faz parte do nosso trabalho, tal como um médico tem que estar não sei quantas horas fora. Mas é não saberes se voltas para casa com dinheiro ou não. E se se justifica o investimento em estares em tournée fora pela falta de tempo, do qual abdicas, porque escolhes… Esse equilíbrio entre as nossas expetativas, o que é que acontece, o trato, aquilo que recebes e o distanciamento da família e do teu lugar de conforto e da tua casa são fatores muito determinantes no percurso de um artista. E se existe um momento em que a pessoa decide investir, na segunda tournée a expetativa é que pelo menos tenhas um break-even. Na terceira, a expetativa é conseguir ganhar mais algum dinheiro. Nós já estivemos nos EUA, gostávamos muito de poder tocar lá, há algum interesse, mas ir para lá implica um investimento gigante. Os vistos de trabalho são muito caros, ainda mais para um técnico de som, implica cachets muito baixos porque os cachets americanos são muito baixos para os próprios americanos, quanto mais para bandas estrangeiras que estejam em início de carreira… Então existe um lado muito romântico e lindo que é: vou tocar fora. Mas pode sair do pêlo. A pessoa chegar e perceber que não é nada daquilo que imaginou. Por outro lado, também pode ser surpreendida. No ano passado, estivemos no México e nem sei muito bem como é que surgiu esta tournée, porque foi organizada pela agência que tenho em Espanha, mas fomos muitíssimo bem tratados, correu tudo lindamente, tínhamos ótimas condições — de cachet, hospitalidade — e não é algo assim tão comum, que é começar no mesmo patamar que se calhar temos em Portugal. Existem muitas pressões e a primeira é do próprio artista, que investe dinheiro e horas de trabalho e tem expetativas, a nível de retorno financeiro ou do próprio público que consegue ou não fidelizar, e fazer uma tour de 10 datas e chegar ao fim e perceber que não se criou engagement, que não há vontade de haver uma continuidade, também é muito complicado. Por isso, uma das coisas que acho que são muito importantes para cada artista que tem uma tournée internacional é ter um booking local, de alguém que esteja no terreno e que possa dar continuidade ao trabalho que eventualmente possa ser feito. Eu posso ter uma agência aqui em Portugal e ter um pedido para um concerto na Rússia e ir tocar lá, mas é um evento pontual e seria importante poder encontrar uma estrutura que depois trabalhe os eventos que aconteçam na Rússia — é só um exemplo por ser um país grande —, porque pode ser muito frustrante… 

Não haver uma continuidade ou um progresso, não é?

Já estivemos no Brasil três ou quatro vezes, mas houve uma pandemia pelo meio. E temos uma agência no Brasil, mas com a pandemia, e mesmo a questão do anterior governo, que retirou imensos benefícios à área da cultura, fez com que houvesse aqui um retrocesso em relação a uma caminhada que estamos a fazer. E eu enquanto artista preciso de analisar: faz sentido voltar ao Brasil neste momento e começar de novo? Porque o Brasil tem imensos artistas, estão sempre a acontecer coisas, estávamos a fazer um caminho, de repente desaparecemos de cena durante três anos, e quando voltamos somos uma novidade. Há-de haver algumas pessoas que se lembram e que sabem, mas será que vale a pena fazer esse investimento? Porque já sabemos quanto dinheiro está envolvido, sabemos que sacrifícios é que isso implica, e uma pessoa não vai para o Brasil para estar lá dois dias e voltar… Que coisas é que se perdem noutros sítios onde já estamos mais sedimentados? São muitos fatores, mas acima de tudo a pressão da expetativa do que pode acontecer, a pressão do retorno financeiro e daquilo que se deixa para trás em relação àquilo que se vai encontrar é realmente muito grande e portanto acho que é muito pertinente falarmos sobre isto principalmente num panorama em que não há dinheiro para a cultura. Não há dinheiro… Há dinheiro [risos]. Se calhar não há é muito dinheiro alocado à cultura. E mesmo esta tentativa de o governo criar um fundo de apoio que as pessoas não percebem muito bem o que é ou o que acontece, acho que era fundamental para as pessoas que trabalham na indústria que existisse um estatuto que desse uma proteção social às pessoas, quando não podem trabalhar. Mas essa proteção e esse fundo não pode ser completamente distanciado daquilo que as pessoas normalmente recebem. Vou dar um exemplo hipotético: um fundo diz-me que, se estiver sem trabalhar, posso receber 500 euros. Mas eu normalmente recebo cinco mil euros. Se paro de trabalhar por algum motivo, não vou conseguir pagar as despesas da minha família com 10% daquilo que normalmente ganho. Acho que é preciso haver um entendimento melhor daquilo que é a realidade da classe artística para que esses apoios sejam adequados e para que as pessoas não desistam. Estamos a viver um período de crise imensa em relação a técnicos, porque muitos deixaram de trabalhar porque não tinham o que fazer. Porque, se os músicos ficaram, os técnicos ficaram muitíssimo desprotegidos numa altura de pandemia e de muita dificuldade.

Até porque os técnicos não têm a visibilidade que muitos artistas têm que não paga diretamente as contas mas pode influenciar…

Não paga contas mas pode trazer outras possibilidades em relação às coisas que se podem fazer. Podem-se fazer participações, aparições para quem é mais influencer no meio dos artistas [risos]… Os técnicos, apesar de poderem trabalhar com vários artistas, têm muito mais limitações em alturas que não se pode trabalhar.

Há 20 ou 30 anos a venda dos discos era uma receita significativa para os artistas, pelo menos para quem tinha algum público hoje em dia, como sabemos, a principal fatia do rendimento dos músicos vem dos concertos. Achas que essa mudança na indústria faz com que haja mais esta pressão sobre as tours, porque é mais importante os artistas estarem hoje em tour, porque é aí que fazem o seu rendimento?

Sim, os discos e o merchandise foram uma parte significativa e boa do rendimento dos músicos. Mas também quando se vende discos nem toda a gente ganha dinheiro com eles. Há aqui uma modificação das coisas, enquanto artista começo a senti-la um bocadinho mais, que a nível de direitos de autor começo a ver muito mais valores ligados ao digital, que também acaba por ter algum peso, ainda que mínimo… Mas acho que, quanto mais se trabalhar na legislação em relação ao recebimento de direitos dos artistas por aquilo que passa nas vias digitais, pode haver uma transição muito positiva para quem é autor, mas a verdade é que nem todos os músicos são autores. Obviamente que há uma grande pressão sobre as tournées, porque as próprias editoras começaram a ir buscar dinheiro aos concertos dos artistas, que era uma coisa que não acontecia e agora vê-se muito. Não é o meu caso, mas tenho alguns colegas cujas editoras recebem uma parte dos cachets, porque é daí que vem o dinheiro. E depois há uma imensa pressão, que uns sentem mais do que outros, para os artistas, principalmente aqueles que só trabalham no circuito português, que é: tens de estar sempre a produzir. Porque lanças um disco, dois anos e tens que fazer outro para poder tocar, porque os programadores já querem outro concerto. E é uma loucura porque uma pessoa nunca tem tempo, nunca tem espaço para criar de uma forma sem pressão… Não há tempo para descanso. Porque tem sempre que haver novidade… Não se pode repetir o mesmo disco, o mesmo repertório, as mesmas roupas… Acho que isso traz uma imensa pressão para os músicos. Não me posso queixar porque, entre as saídas e o facto de a minha música poder ser um pouco menos comercial, eventualmente possa ter alguma coisa nova em cada concerto… O último disco que lancei foi em 2020 e continuo a tocar. Tive um enorme privilégio porque comecei a tocar em 2014 e ainda não tinha disco. O meu primeiro só apareceu em 2018. E antigamente era assim que funcionava. A pessoa estava na estrada, tocava e tocava, e depois: agora, já posso gravar um disco.

E agora é ao contrário.

Tenho que gravar um disco para poder tocar. E tens pessoas que gastam milhares de euros a gravar um disco e depois não tocam em lado nenhum, ou porque não estão dentro do circuito ou porque as coisas não são recebidas da forma que se espera… Acho que isso é um terror, porque o dinheiro ganha-se a partir dos concertos. E com a própria questão das redes sociais, nas quais um músico vê os outros músicos a tocar e depois não se vê a tocar… Estamos a falar de questões de saúde mental, são coisas que não matam mas que podem moer, principalmente se a pessoa não estiver no ativo, se estiver a passar por dificuldades financeiras, se teve o azar de lançar um disco numa determinada altura… Como a Capicua, que lançou um disco mesmo um pouco antes da pandemia e obviamente foi muito prejudicada por isso — e ela escreveu sobre isso, por isso é que estou a falar do caso dela —, isso cria uma grande angústia. A pressão de ver os outros trabalhar e nós não estarmos a trabalhar… Daí eu falar da extrema importância de poder existir um estatuto de trabalhador intermitente, que nem sempre consegue estar no ativo, porque não tem nem pode nem consegue estar sempre nos píncaros, no máximo da sua capacidade e produtividade, e precisamos de descansar. Sem dúvida que as tournées criam uma grande pressão — e cada vez mais — por ser a principal, e muitas vezes a única, fonte de rendimento de muitos artistas.

Selma Uamesse

Muitas pessoas desconhecem músicos moçambicanos. Se tiver que perguntar a uma pessoa na rua, dificilmente conseguem nomear alguém

Selma Uamesse

Queríamos também abordar a tua experiência enquanto mulher negra em Portugal. Como vieste para Portugal muito cedo, suponho que tenhas sempre partilhado muito as duas culturas, que seja essa a tua experiência acima de tudo.

Sim, vim para Portugal com seis anos, mas há aqui uma coisa que diferencia um bocadinho: vim para Portugal muito cedo e cresci sempre cá, e não tinha cá família nenhuma, mas os meus pais quando eu tinha 13 anos regressaram para Moçambique. Então, quando volto para Portugal volto já para viver sozinha, mas tenho sempre uma ligação muito forte com Moçambique. Andava sempre entre ambos os países, embora tenha continuado a viver cá. Enquanto os meus pais nunca se consideraram, vá, emigrantes, porque vieram cá para estudar e depois foram-se embora, eu terei sido muito mais emigrante do que eles. Tenho uma vivência moçambicana, mas como a comunidade moçambicana era muito pequena, a minha vivência foi muito próxima da portuguesa e foi-se africanizando mais… Porque também estudei sempre em escolas onde era a única aluna negra, a única aluna africana… Mas o meu lado africano acaba por se tornar mais vivo em 1999 ou 2000 quando entro para o gospel, onde havia muita gente e pessoas de todas as nacionalidades, como de São Tomé, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau… É aí que começo a estreitar os relacionamentos com a comunidade afro-descendente em Portugal, e que faço grandes amigos. Mas a minha ligação à cultura moçambicana manteve-se sempre muito — mas era a Moçambique, lá; não tanto aos moçambicanos que estavam aqui; e, depois, mais tarde, com toda a comunidade lusófona por via de outras nacionalidades.

E no teu percurso musical começaste mais ligada à música negra americana, ao gospel e à soul, os Wraygunn também tinham essas influências…

Sim, a ideia dos Wraygunn era precisamente essa. Começo o percurso com o gospel, vou para os Wraygunn, mas depois começo a sentir uma necessidade de entender algumas coisas mais ao nível da música, que é quando me ligo ao jazz, e vou estudar. Pelo meio, estava a tocar com Cacique’97, que puxava muito por este lado afrodescendente, e eu como nunca tinha calculado ser uma artista a solo, fui fazendo inúmeras colaborações — como com os Buraka Som Sistema ou com Sean Riley, várias matrizes — mas quando decido ter uma carreira a solo tudo o que me fazia sentido era pegar em toda essa bagagem e voltar a casa, a Moçambique, e ir às minhas raízes, onde tinha tanto para aprender e mostrar ao mundo. E não digo isto de forma pretensiosa, é só porque muitas pessoas desconhecem músicos moçambicanos. Se tiver que perguntar a uma pessoa na rua, dificilmente conseguem nomear alguém, mas se perguntar três músicos angolanos ou cabo-verdianos, saberão nomear uma série deles. Portanto, tive sempre um sentido de missão, de poder, aproveitando a minha localização geográfica estratégica, dar a conhecer esse meu legado moçambicano. Às vezes as pessoas perguntam: “porque é que não canta mais em português?” E para mim é muito fácil explicar, até porque venho de uma família assimilada, ou seja, a minha família que está em Moçambique para ter um melhor estatuto socioeconómico rejeitou as suas origens. Ou seja, a minha mãe e as minhas tias não falam fluentemente as línguas de Moçambique. Então, o meu trabalho é sobre mostrar as polifonias e polirritmias que existem em Moçambique, através dos instrumentos tradicionais e de algum estudo que vamos fazendo em relação a ritmos e sons, mas é também trazer à comunidade portuguesa, afrodescendente ou não, a realidade de línguas — são línguas, não dialetos — que nos foram retiradas e que eu decido apropriar-me delas porque elas são minhas mas ainda há um receio de nos apropriarmos de uma coisa que é da nossa cultura mas com a qual nós não lidámos de uma forma diária. Por isso, o meu trabalho como Selma Uamusse — além das vertentes em que trabalho, de mais ou menos ativismo — tem como génese esta missão de dar a conhecer Moçambique pelas coisas incríveis que tem. E uma delas são as nossas línguas. Não só é uma afirmação enquanto moçambicana, mas, mais do que tudo, traz outros sons, outras fonias, outras sensações e possibilidades que acho que é a coisa mais bonita que a música tem, a forma como ela nos faz sentir, independentemente de entendermos o que é que está a ser dito ou não. É uma riqueza que faço questão de continuar a ter, mas isso não me impede de cantar rock n’ roll, jazz ou outras coisas. Mas, no que diz respeito à minha matriz e àquilo que quero dizer, quero poder dizê-lo nas minhas línguas.

Sentes que falta fazer essas pontes, aproximar mais Moçambique de Portugal em termos culturais? Claro que também terá a ver com a comunidade mais reduzida.

Por um lado, é isso, sim. Por outro, tem a ver com a forma como os moçambicanos são. Não são muito de se mostrar. E depois existe um lado geográfico, porque Moçambique fica no Índico e todos os outros países da lusofonia estão no oceano Atlântico. Querendo ou não, faz com que haja menos voos, com que sejam muito mais caros, e que não haja esse diálogo mais rápido… E ainda há outra coisa: além de Moçambique ser um país pobre, não em termos de matérias-primas mas no que diz respeito à capacidade económica dos moçambicanos, não há um investimento sério na cultura por parte do governo. E quando falo de investimento falo mesmo de dinheiro, para poder exportar uma das coisas mais incríveis em Moçambique, que é a sua música. É o que Cabo Verde faz e o que Angola tem feito. Toda a gente sabe o que é kizomba e funaná ou morna. De Moçambique, se as pessoas tiverem de dizer alguma coisa vão dizer marrabenta, quando existem não sei quantas mil… Não existe uma proximidade muito grande com aquilo que é a música e a cultura moçambicana. E nós precisamos de cavar para podermos evidenciar cada vez mais aquilo que é a cultura moçambicana. Porque há muitos músicos muito bons que não têm, efetivamente, a possibilidade de ter plataformas que os façam poder criar carreiras fora de Moçambique. Muitos têm altos vídeos e fazem música incrível num circuito digital, mas depois não têm uma estrutura para poderem ser exportados e poderem fazer tours. Porque as viagens são caríssimas, não existem apoios institucionais, as pessoas não conhecem nem estão familiarizadas… Se calhar é muito mais fácil trazer o rei do kuduro de Angola para Portugal porque sabes que vai funcionar, do que trazeres os Timbila Muzimba, que são uma banda incrível de Moçambique, porque as pessoas não estão familiarizadas. E enquanto programador não sabes se vale a pena arriscar ou não. Este ano até houve vários músicos moçambicanos a tocarem cá. Recentemente, na Festa do Avante!, a Banda Kakana; anteriormente o Stewart Sukuma no Sol da Caparica; os Ghorwane no Festival das Músicas do Mundo… E isso já são passos que nunca aconteceram antes. Acho que nunca houve um ano em que eu visse tantas bandas moçambicanas a virem cá tocar, com o seu próprio esforço e investimento, mas também com o crédito dos programadores. Então acho que é super importante que os programadores possam arriscar para que haja outras sonoridades, mais diversidade ainda naquilo que é a música dos países de expressão portuguesa, e, neste caso em concreto, da música feita em Moçambique. Daí eu orgulhosamente usar as capulanas de Moçambique, mostrar os ritmos e cantar nas nossas línguas e sentir que tenho esse privilégio. Mas é porque vivo aqui e porque tenho uma estrutura cá, porque tenho um percurso que vem de outro registo, portanto sinto que tenho o privilégio de os programadores saberem quem sou e não terem medo de arriscar — uns mais do que outros, claro. Mas existe uma base de confiança muito maior, que eu gostava muito que fosse aberta e expandida a tantos amigos, colegas, que fazem música extraordinária em Moçambique.

Como dizias há pouco, na infância em Portugal eras muitas vezes a única aluna negra da turma. Essa diferença marcou-te muito?

Claro, marca porque não tens um sentido de identificação com as pessoas que estão à tua volta. E marca porque, no meu caso, senti por várias vezes aquela forma de racismo condescendente. Vim para Portugal no final dos anos 80, na altura era muito fácil eu ouvir “tu és uma preta especial, tu falas e cheiras bem, temos medo dos outros pretos mas de ti não”. Era quase uma dignificação de uma pessoa negra que é apreciada, mas por ser distinta dos outros. Isso cria muita pressão para quem está nessa condição. Enquanto criança, aquela pressão de ser sempre validada, de ser amigo de todas as pessoas porque a pessoa quer ser gostada para não ser colocada de parte, e tentar ser sempre o melhor possível. Obviamente que todos devemos ser a nossa melhor versão possível, mas não por sentirmos que temos alguma coisa a provar. E eu sempre fui muito boa aluna. Passado uns anos, comecei a questionar a razão pela qual eu era a pessoa que tinha muitos amigos, a razão pela qual tinha muito boas notas, e comecei a perceber que muitas vezes tinha a ver com esta questão de ter que provar a mim mesma e às pessoas que estavam à minha volta que eu era válida. E esse tipo de validação é uma validação que qualquer criança ou adolescente precisa de trabalhar para… Portanto, alguns dos meus melhores amigos vêm da infância, mas passei por ‘n’ episódios dolorosos e que me custaram bastante ao longo da minha vida, muitas vezes isolada como a única pessoa negra ou afrodescendente. E esse isolamento, para pessoas que cresceram em bairros sociais ou zonas mais periféricas — eu vivi sempre no centro de Lisboa — há outro tipo de pressão e de dificuldades.

Mas sentes que uma criança de seis anos que chega agora a Portugal vinda Moçambique tem, à partida, uma experiência melhor do que aquela que tiveste?

Muito melhor. Até porque havia questões fraturantes que não se falava nessa altura, as questões do racismo… Os miúdos hoje em dia, e eu tenho filhas pequenas e portanto vejo a forma como os miúdos falam entre si e como se tratam, e é completamente diferente do meu tempo. Existe obviamente um caminho ainda a fazer e a trabalhar, mas as coisas evoluíram.

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

Recomendações

Procurar
Close this search box.

OUTROS

Um espaço plural, onde experimentamos o  potencial da angolanidade.

Toda a actualidade sobre Comunicação, Publicidade, Empreendedorismo e o Impacto das marcas da Lusofonia.

MAIS POPULARES