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“Através das artes podemos tentar fazer uma transformação social”, Ana Tica

Ana Tica | 📸 @mss.nanah
Ana Tica | 📸 @mss.nanah

Os avós maternos de Ana Tica, nascidos em Cabo Verde, vieram para Portugal em 1973 – um ano antes da deflagração das independências dos territórios ocupados por Portugal em África. Porém, embora Tica tenha nascido em Lisboa, já no ano de 1979, na infância, nunca deixou de ouvir frases como “de onde és?” – o que a fez começar a perceber qual era a sua real condição: uma pessoa negra, filha e neta de imigrantes. 

Licenciada em Animação Sociocultural e pós-graduada em Gestão de Organizações de Economia Social, a sua vivência pessoal levou-a a trabalhar com Desenvolvimento Comunitário. Em 2021, foi uma das fundadoras da União Negra das Artes (UNA), iniciativa que reúne diversos profissionais negros em Portugal que trabalham na área da cultura. Além disso, desde 2001, atua em grupos do movimento negro, pan-africanista e de luta antirracista. Produtora e agente cultural, em 2006 foi responsável pelo projeto Putos qui ata cria (miúdos que estão a crescer, na tradução do crioulo de Cabo-Verde), que recebeu um prémio de boa prática pelo Comissariado Europeu para a Educação, Formação, Cultura e Juventude. 

Ana Tica conta que, os pais e avós, que chegaram numa primeira leva de imigrações dos PALOP, sentiram um conjunto de problemas e discriminações. Por isso, para tentar proteger os filhos das mesmas dificuldades, essas pessoas passaram a negar elementos cruciais da sua origem. “Claro que não se pode generalizar, é a minha experiência e a de muitas outras pessoas. Mas, quando nos educaram, os nossos pais acabaram por fazer algumas escolhas na tentativa de que nós não passássemos por determinadas situações que eles haviam passado quando chegaram. No meu caso, por exemplo, a minha mãe sempre lutou muito para não viver em comunidades, em bairros. Mesmo a nível de língua. Em Cabo Verde fala-se o crioulo mas muitas famílias fizeram essa opção de não ensinar o crioulo aos filhos, com medo de que isso fosse prejudicar o nosso desempenho escolar. Mas, na verdade, por mais que os nossos pais tenham tentado proteger-nos, nós somos pessoas negras. E facilmente a sociedade devolveu-nos a uma série de questões”, explica. 

A agente cultural afirma que, quando criança, não entendia quando algum colega dizia que ela não era portuguesa, afinal, havia nascido em Portugal. A incerteza foi-se intensificando à medida que não encontrava pessoas semelhantes a si no seu entorno. “Eu própria não tinha a experiência de viver em Cabo Verde, então, no fundo havia muita coisa que desconhecia. E tinha essa ilusão de que quando conhecesse os meus pares começaria a debater essa questão. Porque muito cedo na escola passei a ser chamada de preta. Tudo isso foi sempre contribuindo para um mal-estar, que foi crescendo, uma dúvida se eu era portuguesa ou não. Afinal, quem era eu?”, indaga.

Na ânsia de estar em grupos, de realizar projetos de impacto e ajudar a população, Tica resolveu virar a sua trajetória para a Animação Sociocultural. “Vejo a coisa de forma circular. Acho que o meu percurso de vida influenciou a escolha académica e também encontrei na Animação Sociocultural e no desenvolvimento comunitário uma ferramenta para trabalhar no desenvolvimento das comunidades. Mas, no fundo, o que me leva a chegar à comunidade é a minha necessidade de estar entre pares, de ir ao encontro da juventude. A minha necessidade de ir ao encontro de referências afrocentradas. Em Lisboa, particularmente, encontro essas referências nos bairros. Sobretudo, atualmente, nos bairros sociais”, pontua.

Foi quase aquele momento em que deixo de ser objeto social para passar a ser sujeito

Ana Tica

Foi por meio da graduação que Tica começou a ter um contato mais próximo com os seus pares, como a própria refere. Com isso, a artista passou por um processo de reconhecimento da própria identidade. “Também com essa particularidade de não ter muitos pares à minha volta, ficava um bocado isolada com essas questões. Quando eu já tinha alguma autonomia, comecei a ir atrás desses lugares onde havia mais presença negra em Lisboa. Chego, primeiro por via da Animação Sociocultural, a um curso que me chamou atenção porque tem essa dimensão de cultura, artística, ao mesmo tempo, trazia essa preocupação com o social. Então, foi uma área que me agradou porque através das artes podemos tentar fazer uma transformação social”, ressalta.

“Logo no primeiro ano da faculdade tinha que fazer estágios integrados e escolhi ir aos bairros sociais. Nos bairros fiz imensos amigos, malta da minha idade. Comecei a perceber que havia outro discurso, protagonizado por nós. Foi quase aquele momento em que deixo de ser objeto social para passar a ser sujeito. Através dos outros, das reivindicações”, comenta.

A palavra protagonismo também recebe um papel de destaque na trajetória de Ana Tica. Segundo a profissional, é preciso que as pessoas negras contem as suas próprias histórias. “E então, começo a me juntar a coletivos, a grupos. Fiz parte do início da Plataforma Gueto, que nem era Plataforma Gueto. Começamos com um jornal que trazia notícia de vários bairros, o que se passava. Para sermos protagonistas, escrever as nossas próprias notícias. Porque nós não nos víamos em lado nenhum e sempre que se falava sobre nós era nessa perspetiva de alguém que fala sobre o que aconteceu, mas sem nunca dar a voz às próprias pessoas que viveram essas situações”, salienta.

A atuação de Ana Tica nos bairros sociais sempre foi forte. Ela relembra a formação dos bairros autoconstruídos e também da implantação do Programa Especial de Realojamento (PER), que ocorreu em Lisboa no ano de 1993. Na altura, mais de 37 mil pessoas habitavam em moradias precárias, o que levou o governo português arrancar com um projeto de 40 conjuntos habitacionais, ao longo de dez anos. “Na verdade, são bairros municipais em que houve um deslocamento de comunidades, estou a falar maioritariamente de comunidades cabo-verdianas, que durante vários anos viveram em bairros autoconstruídos. A determinada altura houve um programa fundamental que foi o PER, que decide que era necessário dar melhores condições de vida a esta população”, sinaliza.

“Aquando das independências, a população dos PALOP começa a procurar Portugal, o país ‘irmão’, para procurar melhores condições de vida. Mas, no fundo, não teve um acolhimento e acabou por crescer em terrenos baldios da cidade. As pessoas foram-se agrupando, foram ficando nesses locais mais centrais, que eram mais fáceis para desenvolver as suas atividades profissionais. Mas com o tempo esses lugares acabaram por tornarem-se incómodos. Então, acabou por haver esse programa especial, que o mote era dar habitação condigna às populações realojadas, que eram, na sua maioria, pessoas racializadas. Mas que, na verdade, em muitos casos, tirou as pessoas do centro para levá-las para as periferias, sem acessos, sem equipamentos de lazer…”, disse.

Tica revela que, a partir daí, viu que aqueles que viviam em más condições de vida eram, em sua maioria, pessoas negras. “Então, quando eu vou à procura dos meus pares, na verdade, encontro situações de muita vulnerabilidade. Muitas situações pelas quais lutar, já que esses lugares acabam por ser rotulados, têm menos acesso à educação. E até como muitas vezes a intervenção policial é feita nesses locais, que cria muitas situações de abuso, de violência. Deparei-me com muitas situações de injustiça. A animação era uma forma de trabalhar com grupos, na melhoria da sua qualidade de vida. Então, [era necessário] passar por todas essas etapas [para] sonhar uma realidade e desenhar um projeto, ações, que ajudem a chegar a esse lugar que imaginamos”, expõe.

Cada experiência foi fundamental para que a agente cultural percebesse o seu lugar no mundo, e como poderia trabalhar para combater o racismo. Ana Tica também é uma pan-africanista ativa (movimento que surgiu no final do século XIX e que incentiva a comunhão de todos os países do continente africano e também da sua diáspora contra a opressão e exploração). “Essencialmente, tive uma experiência em que tornei-me negra. Mas isso infelizmente acontece por negação. Eu nasci em Portugal e, na minha conceção de criança, eu era portuguesa. Mas fui passando por sucessivas situações que me fizeram pôr isso em causa. E é aí que me descubro negra. Quando eu me descubro negra percebo que esta experiência é transatlântica, é transgeracional. Essa experiência liga-me a corpos que estão nos Estados Unidos, no Brasil, em África”, discorre.

O pan-africanismo não é uma guerra contra pessoas brancas, como muitos preferem concluir. É uma ideologia, uma doutrina, que acredita na solidariedade e união dos povos africanos como forma de potencializar a voz e a presença afrodescendente no contexto internacional. “O que eu acho muito interessante no movimento pan-africanista é que ele parte não tanto deste combate com a branquitude. É um movimento que tem mais a ver com o conhecer, olhar para trás, perceber as nossas raízes, para nos fortalecermos a partir daquilo que é a nossa cultura, estar mais focados naquilo que nós podemos construir e alimentar”, destaca.

Para Ana Tica, o pan-africanismo também é uma forma de empoderamento de pessoas afrodescendentes, independentemente da região do mundo onde estiverem inseridas. “É uma coisa de nós para nós. De nos empoderar, com o nosso conhecimento. Eu vejo a questão da negritude como uma coisa que acabamos por desenvolver por nos sentirmos excluídos, enquanto o pan-africanismo está mais focado na identidade africana, no resgate. Eu acho que o pan-africanismo une-nos de forma internacional”, finaliza.

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