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Carla Costa Gomes: “O teatro ainda é muito branco”

Carla Costa Gomes | 📸 @pedro.mostardinha
Carla Costa Gomes | 📸 @pedro.mostardinha

Filha de pais guineenses, desde cedo, Carla Costa Gomes foi incentivada, principalmente pela mãe, a enveredar pelo mundo das artes. Nasceu em Setúbal e cresceu no bairro social da Bela Vista, que reúne pessoas vindas de diversos lugares do globo. A experiência de crescer entre tantas culturas fez com que Gomes formasse o seu carácter e percebesse como era rico o mundo em que vivia.

Mais tarde, profissionalizou-se em Animação Sociocultural e licenciou-se em Teatro. Na carreira nos palcos, já foi dirigida por encenadores portugueses e estrangeiros, além de ter trabalhado com as companhias Griot, O Bando, A Vara Teatro, Causas Comuns e Hotel Europa.

Para Gomes, crescer num local tão multicultural foi essencial para perceber o mundo de outra forma. “A minha infância em Setúbal influenciou-me de várias maneiras. Viver num bairro social com uma comunidade negra muito grande, uma comunidade de pessoas ciganas também e umas poucas pessoas brancas, para mim, isto, pelo menos dentro do contexto do bairro, sempre foi muito rico. Porque ali eu conseguia estar em segurança”, explica.

Foi nesse ambiente que Carla teve o primeiro contacto com a dança, a música e o teatro. “Depois, artisticamente, quando ingressei no conservatório, que é a escola de teatro e cinema, para mim foi sempre uma mais-valia. Sentia que isso acrescentava em todos os lugares a que eu ia, onde eu era a única negra. De repente, a minha forma de expressão era muito particular, com as minhas vivências, com a minha perspetiva, com todo o lugar que eu trazia. Não só histórico, da minha ancestralidade, como também muito do que eu tinha vivido naquele bairro em específico. Sabemos que são bairros marginalizados, mas nós temos uma riqueza imensa dentro dessas comunidades”, diz.

“Por outro lado, sinto que, hoje, tenho maior consciência do que é ter crescido num bairro tão rico culturalmente. Se calhar, na altura em que entrei, não tinha essa perceção. Agora, com esse distanciamento, consigo perceber o quão rico foi saber as línguas que falo além do português. O crioulo da Guiné, o crioulo de Cabo Verde, compreender o Manjaco, o dialeto falado pelos meus pais…”, pontua.

“Mas não tinha a perceção do poder que isso tem. Hoje consigo perceber e tento ganhar ainda mais empoderamento através disso. Tento conhecer mais, pesquisar mais e perceber a força e a segurança que isso me deu”, destaca.

Foi a mãe da artista que a incentivou a procurar o caminho das artes, mostrando vídeos e canções de origem africana. Ela conta que a paixão pela música veio bem antes na família, já que a avó, ainda no campo, ficava até tardiamente na lavoura a cantar. “A minha mãe foi efetivamente uma das pessoas que desde a minha infância quis sempre que eu enveredasse pela área artística. Aos fins de semana, por exemplo, ela mandava-nos vestir a rigor e assistir vídeos de Sakis (famoso artista congolês) e de Soukous (género musical popular do Congo). Assistíamos e depois reproduzíamos. Tinha um grupo de dança africana dentro do bairro com pessoas de vários países, guineenses, angolanos, cabo-verdianos… Um grupo muito coeso e interessante”, ressalta.

No teatro, os primeiros passos foram ainda na escola. “Decidi, muito através da minha mãe, a realizar uma audição em Setúbal. Ia fazer uma figuração para o espetáculo e a encenadora queria uma atriz africana. Eu não gostava muito do sistema escolar, porque quando és negro na escola és um bocado oprimido. Eu não gostava muito da escola, gostava de estar mais livre”, ressalva.

Cultura é sensibilidade, é olhar o outro com igualdade

Carla Costa Gomes

Ao crescer, Carla tentou seguir outras áreas e ingressou no curso de Animação Sociocultural e depois Psicologia, mas logo percebeu que tinha mesmo uma vocação para a atuação. “Escolhi um curso de Animação Sociocultural, que me tirava da rigidez das matemáticas e das gramáticas todas. No curso de Animação poderia experimentar, poderia improvisar. O curso não tinha praticamente nada de teatro, mas eu tinha uma professora que era atriz, que disse que eu tinha potencial. Entrei para Psicologia, mas decidi que queria ir mesmo para algo artístico”, comenta.

No entanto, mesmo na ânsia de mostrar a sua arte, a artista conta que sempre soube que o ambiente não era favorável para uma pessoa negra. “Entrei a saber que teria muitas dificuldades para trabalhar, porque o teatro é muito branco. Estamos em Portugal, temos muitos atores negros, mas o teatro continua muito branco. Não deveria, porque estamos a falar de cultura e cultura é sensibilidade, é olhar o outro com igualdade. Eu já tinha a noção de que não seria tarefa fácil trabalhar só com teatro, então comecei a trabalhar com telemarketing… distribuía flyers. Eu sabia que, como atriz negra, não ia poder preocupar-me só com a parte artística, chegar ao teatro e só preparar o meu papel. Eu tinha muitas outras questões. Antes de qualquer coisa, comer e preocupar-me com outros fatores. Eu tinha que fazer mil e uma coisas para conseguir alimentar o sonho”, expõe.

Continuo a ser atriz, mas tenho muitas atividades em paralelo. Como pessoa não privilegiada não conseguiria chegar e viver só de teatro. Mas gosto dessa versatilidade, gosto de adaptar-me”, conta.

Todo o estudo e empenho como profissional não protegeram Gomes do racismo. O espaço no teatro para atrizes negras é quase inexistente. “Acredito que temos desafios diários, basta sairmos do nosso porto seguro que é a nossa casa. A partir do momento que saímos da porta para fora, é sempre um desafio. Temos constantemente que provar que aquele lugar é também nosso, que tu deves estar lá e que tens competência para estar ali. Há sempre um questionamento. Como é possível que aquela mulher esteja ali? A nível artístico, infelizmente, continuamos a viver isto, porque sabemos que o racismo é estrutural. Só que tem umas camadas, muitas vezes não percebemos onde é que ele está, mas ele está lá”, alega.

“Hoje, em situações de poder somos muito questionadas no sentido da nossa competência. Como pais, temos que proteger os nossos filhos de agressões sistemáticas. E temos que nos posicionar e temos que encontrar um lugar de segurança para eles. Porque sabemos de onde viemos e qual a nossa bagagem pessoal e histórica”, afirma.

Ao sair do contraste entre ser a única ou parte da minoria, para passar a estar rodeada de outros artistas negros, Carla sentiu-se muito mais segura e fortalecida. “Tenho alguns trabalhos que foram muito marcantes para mim. Recentemente, tive um projeto em que éramos apenas atores negros e foi interessante também que, de repente, estávamos ali numa linguagem muito fraterna, estávamos num lugar de segurança”, conta.

Ao discorrer sobre o papel da arte no combate contra preconceitos, Gomes afirma ser necessária a abertura de mais oportunidades para pessoas negras. “A cultura deveria ter mais esse papel. A cultura deveria unir mais e separar menos. Quando vamos representar um papel, por norma, o papel não tem cor. São as pessoas que tomam a decisão e, neste caso, as pessoas que decidem que o papel tenha a cor X ou Y são, maioritariamente, brancas e, normalmente, somos logo excluídos. Acho que o teatro deve começar a abrir possibilidades, e isso só acontece quando vamos adquirindo consciência. As artes têm esse poder de chegar às massas e, se eu chego às massas de uma forma não preconceituosa e não racista, é um poder imenso”, expõe.

Com uma longa carreira em companhias de teatro, Carla Costa Gomes aponta que foram poucos os momentos em que se sentiu verdadeiramente bem-vinda e aceite. “Sou muito franca. Nunca me senti muito pertencente a companhias porque, às vezes, dizem mesmo sem dizer ‘olha, tu não pertences’. Tenho algumas companhias com as quais identifico-me mais, como a Griot. Mas posso dizer que nunca idolatrei companhias. Não houve aquela pertença efetiva. Instintivamente, não criei essa ligação. Tenho referências em pessoas específicas, pessoas de imenso talento”, explica.

Além dos olhares de desaprovação, a atriz reflete sobre como a avaliação para as pessoas negras é mais brutal e injusta, uma marca do racismo estrutural. “Durante muito tempo não me via nos espelhos, chegava e dizia ‘ok, sou a única negra’. Era avaliada de uma maneira muito desigual. Hoje, consigo perceber a dureza que foi e a capacidade que tive de estar sempre a ser posta à prova e em causa. Na altura não percebia sequer, há um racismo estrutural muito forte e muitas coisas não nos damos conta. Na altura não percebia que estava a ser agredida”, revela.

“Na infância, na escola, diziam-me para voltar para a minha terra. Mas com o tempo fui tendo uma maior perceção. Adquiri essa consciência de forma gradual e acredito que só assim estaremos mais preparados para lidar com o racismo”, expressa.

Gomes, por mais que seja apaixonada pela arte, não nega que ainda há um longo caminho a ser trilhado antes que atores e atrizes negros consigam exercer a sua profissão sem se preocuparem com o racismo. “Pessoas brancas não querem falar sobre o racismo. Outras não querem aceitar, não há essa vontade. Também acho que ainda há uma necessidade de haver um maior entendimento daquilo que estamos efetivamente a falar, porque uma coisa é eu dizer e a outra é eu sentir ou passar por. Gostava sinceramente de passar por processos artísticos em que não tivesse que me preocupar tanto com essas questões, estar mais livre para criar e não ter preocupações porque a minha pele é negra. Sei que ainda estamos longe de atingir isso, mas sei que podemos caminhar nesse sentido”, enuncia.

Para Gomes, a reparação é necessária e não pode tardar nem mais um minuto sequer. “Vou continuar a trabalhar nesta área, obviamente, mas sempre com os olhos postos em outras possibilidades. As pessoas negras também têm uma força brutal e uma resiliência incrível, mesmo depois de tudo isto, conseguem reinventar-se e continuar a criar. E vindo de um lugar que não é o mesmo do seu colega branco, porque a meritocracia é uma falácia. Agora a questão é que as pessoas tenham consciência e façam uma reparação prática disso”, finaliza.

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