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Gessica Correia Borges e a (in)visibilidade das mulheres negras na media

Gessica Correia | @apollo_evaristo
Gessica Correia | @apollo_evaristo

Gessica Correia Borges nasceu no Grajaú, um bairro periférico na cidade de São Paulo, e afirma que essa experiência moldou profundamente a sua trajetória pessoal. No Brasil, formou-se em Comunicação Social e, em 2017, mudou-se para Portugal para realizar um mestrado em Estudos Africanos na Universidade do Porto, onde se dedicou a uma pesquisa sobre memória, identidade e resistência, utilizando relatos orais de mulheres negras brasileiras.

Há cerca de um ano, iniciou a sua pesquisa de doutoramento em Estudos Culturais pela Universidade do Minho, focando-se nas representações de mulheres negras no cenário mediático português. Além disso, integra o projeto “MigraMediaActs – Migrações, media e ativismos em língua portuguesa: descolonizar paisagens mediáticas e imaginar futuros alternativos” (CECS).

Paralelamente, Gessica também se destaca no mundo literário, escrevendo poesias desde a infância. Em 2021, publicou a antologia Poetas Negras Brasileiras. Como ativista nos movimentos antirracistas, participa do Núcleo Antirracista do Porto (NARP) e da União Negra das Artes (UNA). Em conversa com a BANTUMEN, a artista e poeta discorre sobre a sua trajetória acadêmica e pesquisas.

Como a experiência de crescer no extremo sul de São Paulo influenciou a sua carreira e interesses académicos?

Tenho bastante orgulho do bairro em que cresci. Sou um pouco bairrista nesse sentido, gosto muito de falar do Grajaú e da cultura criativa do Grajaú. É uma região que formou ou que foi origem para várias pessoas que eu admiro hoje, até pessoas super famosas no Brasil como o rapper Criolo. Então, ter crescido nessa região foi importante nesse sentido de uma criatividade que acho que é muito característica da periferia, sabe? Não só de se saber se virar, saber existir no mundo. Desde muito nova tive que aprender a me virar, porque os pais trabalhando fora, não tinha muito apoio dentro de casa ou muito acompanhamento.

Então, tive que me virar desde muito cedo para estudar, para começar a trabalhar, para, enfim, entender as dinâmicas da vida em São Paulo. Mas também em termos artísticos era um bairro muito vivo, tinha sempre muitas oficinas acontecendo, muitos workshops, muita gente se movimentando culturalmente para promover educação, cultural, social e política das pessoas que moravam ali. Por mais que fosse uma região bastante pobre e desprovida de apoio, as pessoas sempre se juntaram a essa importância do coletivo, que também é uma coisa que eu carrego até hoje. As pessoas sempre se juntaram para promover a melhoria uns dos outros. A minha ação como pessoa política tem tudo a ver com essa dinâmica na qual eu cresci lá no Grajaú. 

É importante também dizer que cresci numa família pobre. Sou filha de pais nordestinos que migraram na década de 1960 da Bahia para São Paulo para tentarem uma vida melhor. Uma história muito comum entre as famílias do Sudeste. A minha mãe foi empregada doméstica a vida toda, o meu pai é motorista. Eles não tinham educação formal, sabiam apenas escrever o nome, pessoas semianalfabetas. Eu fui a primeira geração da família que completou os estudos, que depois teve a chance de fazer uma faculdade, devido a ações de política pública. Se não fosse a bolsa eu nunca teria entrado na faculdade.

Crescer na periferia não te permite sonhar muito alto

Gessica Borges

Então, quando fui crescendo, não tinha aquele sonho, aquele interesse académico. Já me era permitido sonhar um pouquinho mais do que os meus pais, então já me era permitido sonhar em fazer uma faculdade. E era uma coisa que até os meus 13, 14 anos, eu não tinha noção se poderia conseguir. Porque eu ia fazer como, quem ia pagar a minha faculdade? Meus pais não tinham absolutamente nenhuma condição. Ser aprovada em uma faculdade pública no Brasil, é uma dinâmica cruel, porque exclui a maioria das pessoas que estudaram em escolas públicas, como eu, em detrimento de pessoas que têm chances de estudar em escolas particulares, com ensino mais elevado e que têm tempo de fazer curso pré-vestibular. 

Então, o acesso às faculdades públicas hoje, que está um pouco melhor, não era tão facilitado assim há dez, doze anos. Eu não tinha essa perspetiva, nunca sonhei em entrar numa faculdade pública e não tinha dinheiro para pagar uma faculdade privada. Até que mais perto dos 17, 18 anos, que é quando se está finalizando o ensino médio, eu comecei a ouvir falar de políticas públicas. Honestamente, o meu sonho não era muito ambicioso, crescer na periferia não te permite sonhar muito alto. Era uma coisa assim, um passo de cada vez, e deu certo. 

Poderia nos falar mais sobre a sua pesquisa de doutoramento em Estudos Culturais, especificamente sobre o foco em mulheres negras e ativismo no contexto mediático?

Eu comecei o doutorado faz mais ou menos um ano. Eu sou das Ciências da Comunicação, no Brasil, sou formada em Comunicação Social. Vim fazer um mestrado aqui em Portugal em estudos africanos, que não tinha muito a ver com a Comunicação Social, então dei uma desviada no meu percurso. E agora, estou voltando para o campo da Comunicação Social, na verdade, entrando em contacto de novo com esse universo.

Porque senti a necessidade de se fazer ouvir outras vozes dos meios de comunicação em Portugal que não as habituais. Quando falo os habituais, estou falando especialmente de vozes masculinas, de vozes brancas, de vozes que estão na hegemonia da comunicação portuguesa. 

Meu projeto de mestrado teve a ver com mulheres negras e com histórias de vida. E eu queria reverter esse lugar de colocar as mulheres negras como objeto de estudo. Há alguns trabalhos em Portugal sendo feitos sobre media, sobre representações mediáticas envolvendo pessoas negras, desportistas, jornalistas, mas sempre nesse lugar de objeto de estudo. 

Raramente essas pesquisas incluem as perspetivas do próprio sujeito que está sendo estudado sobre aquele tema, sobre aquela temática. Me interessa também inverter essa lógica. Porque, como uma mulher negra, entendo a importância de me fazer ouvir. Quais são as minhas subjetividades, meus desejos, meus sonhos, as minhas ambições. Nesse começo, estou especialmente interessada nas mulheres negras do Jornalismo, que escrevem para o jornal Público.

Em 2024 vai ser o primeiro ano em que vou estar dedicada à pesquisa com mais tempo, porque vai ser financiada pela FCT [Fundação para a Ciência e Tecnologia]. Então, vai me permitir entender quais caminhos eu quero seguir. Provavelmente vai alterar muita coisa. A gente sabe que trabalhar com pesquisa é sempre fazer revisões dos planos que traçamos inicialmente. Mas a minha ideia é entender como é que essas mulheres negras que escrevem para os jornais mainstream, no caso o jornal Público, como é que se colocam, como é que elas são vistas, pelo próprio jornal e pela audiência. Eu estou falando, por exemplo, de Cristina Roldão e Luísa Semedo. Especialmente a Cristina Roldão. É uma figura bastante presente nos meios de comunicação. E me interessa saber também a perspetiva dela sobre os meios de comunicação. Como que ela existe como pessoa para além da figura pública.

Como membro da equipa do projeto “MigraMediaActs – Migrações, media e ativismos em língua portuguesa”, qual é o objetivo central desse projeto e qual é o seu papel nele?

Esse projeto busca descolonizar as paisagens mediáticas em Portugal, no sentido de entender qual o papel de imigrantes, de pessoas racializadas, de associações, de ativistas. Em produzir outras paisagens mediáticas que não as hegemónicas. O que essas pessoas fazem nos meios de comunicação, como elas atuam. Esse projeto busca, primeiro mapear, depois entender como é que essas paisagens são descolonizadas pelas pessoas, surge de uma perspetiva decolonial. Qual a participação dessas pessoas na construção de novas formas de pensar os meios de comunicação social no contexto português. 

Eu entrei como bolseira de doutoramento nesse projeto, dividido em várias tarefas. As tarefas são absolutamente transversais. Eu estou mais especificamente ligada a duas tarefas. Uma delas tem a ver com medias alternativas, tem o papel de mapeamento dessas medias, quem são as pessoas envolvidas. Especialmente as que estão preocupados com as causas das migrações, das causas étnico-raciais, etc. Também de uma perspetiva nos interessa, obviamente, a perspetiva de género, uma questão interseccional. E estou ligada com a tarefa dos ativismos migrantes, em que a gente está entrevistando pessoas que têm ligação com os ativismos aqui em Portugal. Pessoas racializadas, pessoas que estão ligadas a causas antirracistas, para entender como elas atuam na sua vida, e como elas enxergam essa ligação da sua vivência própria com os meios de comunicação. 

Como uma mulher negra e imigrante, quais são os principais desafios que você enfrenta ao pesquisar e promover a visibilidade de mulheres negras no contexto mediático em Portugal?

Em Portugal tem as barreiras linguísticas, especialmente dentro da academia, e também de uma forma geral no dia a dia da língua. A gente fala a mesma língua, mas temos dificuldade às vezes de nos entender. Ou o português do Brasil é classificado de uma forma inferior. Tem as barreiras da epistemologia, porque eu venho de uma cultura e de uma epistemologia diferente da que está em voga aqui em Portugal. 

Então também tem esse contra discurso, essa contra narrativa que eu tenho tentado construir aqui. E que é sempre essa luta. Estou tentando jogar o jogo colonial aqui. Tem as barreiras culturais clássicas, como as diferenças de como a gente encara as questões políticas. Eu acho que no Brasil a gente está muito mais embrenhado, muito mais comprometido com uma atuação política do que, em geral, nos contextos académicos sociais em Portugal.

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

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