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“Hip Hop – Quatro décadas de Rap em Portugal”, o livro que conta as memórias do hip hop tuga

Hip Hop Tuga - Quatro Décadas de Rap em Portugal ©Ricardo Farinha
Hip Hop Tuga - Quatro Décadas de Rap em Portugal ©Ricardo Farinha

Esperamos que seja óbvio. A BANTUMEN curte hip hop. Arte negra puxa sempre o nosso interesse e ficámos curiosos quando soubemos que o Ricardo Farinha – jornalista que colabora com a nossa revista digital – ia escrever um livro sobre os 40 anos do movimento cultural em Portugal. Hip Hop- Quatro décadas de Rap em Portugal é extenso o suficiente para o considerarmos uma enciclopédia sobre o nascimento e evolução do género musical urbano.

As 416 páginas são dedicadas a diversos artistas que contribuíram para o desenvolvimento e maturação do hip hop tuga, com passagem pelas histórias e estórias de Johnny Def, General D, Black Company, Da Weasel, Mind da Gap, Djamal, Boss AC, Dealema, Sam The Kid, Valete, Força Suprema, Chullage, Regula, Allen Halloween, Nerve, Capicua, DJ Ride, Plutonio, Dillaz, Slow J, T-Rex, entre vários outros.

Ricardo tem 28 anos e, na faculdade, já escrevia alguns textos mais informais para sites de música. A cultura sempre teve a sua atenção – desde os longínquos dias em que o pai do pequeno Ricardo o presenteou com uma enciclopédia musical – e daí a juntar-lhe a vontade de escrever um livro foi um processo natural.

Num dado momento, durante um café com uma amiga e colega de jornalismo de longa data – alguém em quem confiava – Ricardo revela a ideia deste livro sobre a história do hip hop português. Ela gostou muito da ideia, sobretudo pela boa fase que o género vive e como isso poderia repercutir no lançamento da obra. Estava assim dado o ponto de partida. O processo foi lento, a editora Penguin estava em reestruturação mas o sinal verde apareceu. Considerando o lado investigativo da obra, imagina-se que o processo seria complexo e moroso mas, quando questionado, o autor diz que, em termos de dimensão, foi “normal”.

O jornalista diz que é “alma velha” e que a parte mais interessante do processo de criação do livro foi o mergulhar no passado e contar histórias, que não viveu e não presenciou, pois não estava vivo, “ou era muito pequeno para poder ter memória.”

Hip Hop – Quatro décadas de Rap em Portugal é um livro que explora o passado e o presente, e quisemos entender como foi a experiência dessa viagem e as transições e evoluções do estilo em Portugal. Tal como Ricardo explica na introdução do livro: “Os primeiros rappers portugueses são hoje pessoas de meia-idade, muitos deles pais de filhos crescidos. O hip hop tuga, que cresceu muito nos últimos anos, está numa fase de maturidade e tem já uma longa história.”

Passos em silêncio, na ponta dos pés, até à reivindicação. Aqui para ficar.

General D e Rapublica, como estrelas cadentes sem previsão de chegada, foram a combustão de uma nova era na cultura portuguesa. Chegamos, ouvem-se as vozes com beat surreal. Intenso enquanto durou, curto e aceite apenas por um mini nicho de artistas e pioneiros do hip hop tuga.

Entre dez a 15 anos depois, novas vozes queimam a atmosfera, mais forte que nem meteoritos. Estamos a falar de Sam The Kid, com o videoclipe de Poetas de Karaoke no telejornal. Será esse o marco de aceitação do hip hop em Portugal? Talvez, mas a verdade é que “embora não seja linear, acredito que a aclamação generalizada que hoje se faz sentir não é porque a indústria e a sociedade decidiram abrir as portas — é porque o rap tornou-se tão grande e incontornável que essas portas simplesmente não aguentaram a pressão. A democratização foi imposta”, explica-nos.

Para Ricardo, 1994 foi como uma altura de testamento, de pôr o hip hop no mapa. Dois discos, do Rapublica, e do General D, que eram uma espécie de EP, com os álbuns no ano seguinte. Há igualmente o fenómeno dos Black Company, Boss AC e Da Weasel que chegam ao mainstream na altura, mas ligeiramente ignorados nessa fase inicial. Nesse momento, o hip hop ainda “é olhado como se fosse uma moda passageira, não são levados muito a sério. Foi assim que foi visto na altura pelos meios de comunicação e pela a sociedade no geral. (…) O fenómeno apareceu mas o interesse foi temporário e lentamente dissipou-se. O hip hop mergulha no underground e nascem intenções independentes. Os artistas gravam em casa ou fazem acordos com fábricas. Mais cassetes e mixtapes de tornam-se disponíveis e, aí sim, cria-se o movimento. O hip hop cresce com a mistura dos artistas independentes e dos mais conhecidos, como uma fusão orgânica de talento e persistência, até à década seguinte. “Em 2005, 2006, foram marcos fortes, o hip hop chega ao mainstream e decide ficar por lá, com Sam the Kid e Poetas de Karaoke e o álbum Praticamente. Boss AC estava em altas de popularidade com o álbum Ritmo, Amor e Palavras, juntamente com Valete e o Serviço Público, super marcante, um álbum anti comunicação social, anti indústria musical, mas muito ouvido e respeitado”, explica Ricardo.

Mistura de vibes, é o que pensamos. Underground com mainstream. Imagina “Morangos com Açúcar” no mesmo espaço cultural que o hip hop underground. Imagina o grupo Nigga Poison a receber o Globo de Ouro da SIC em 2006, como Banda Revelação. “Acho que sim, nessa altura, o hip hop chega ao mainstream com a ajuda da diversidade cultural desse período”.

“Então vocês são brancos e fazem rap?”

Sam The Kid destacou-se como um dos maiores nomes do hip hop em português. Para quem não é da geração que acompanhou o início do movimento ou para quem ainda não leu o livro de Ricardo Farinha, a ideia que fica é a de que Sam abriu as portas do hip hop para a comunidade branca. Há quem vá mais longe e chame essa fase de embranquecimento do hip hop em Portugal que, consequentemente, levou à “aceitação” do género nos media. Perguntamos a Ricardo o que acha sobre isso. “O Sam é o primeiro de uma geração, das edições independentes. Estão lá metidos o Chullage, o Regula, o Black Master, o Valete, artistas dos anos 90 e inícios de 2000, que ganham bastante força com a sua experiência musical. Eu acho que o que falhou para muitos dos artistas dos anos 90 foi que os meios não estavam na posse dos artistas, as editoras e a comunicação social tinham muito peso e, quem não tinha acesso a isso, não conseguia construir uma carreira. Além de que, muitos jovens artistas que faziam música na altura, especialmente na zona de lisboa, não vinham de contextos sociais favoráveis”.

Nos anos 90, dificilmente conseguia-se um rendimento do hip hop. Os artistas tinham que trabalhar e “deixar a música em segundo plano, em terceiro plano, até deixar de ser um plano”. O estilo musical não era levado muito a sério, não havia um horizonte à vista e a hipótese de um artista lançar um disco independente era reduzida. Havia mixtapes de DJs, mas não tinham peso fora do circuito underground.

Além de Sam, o exemplo perfeito do ‘fenómeno rappers brancos’ são os Mind da Gap. Não só eram brancos e do Porto, como eram de classe média, e tinham acesso ao hip hop devido a famílias cultas ligadas às artes. Podiam ter escolhido o rock ou jazz mas escolheram o rap. “Mind da Gap também tiveram que lidar com aquela pergunta dos media: “Então vocês são brancos e fazem rap? Essas perguntas também existiam, eles apareceram primeiro e tiveram que lidar com isso. Durante a pesquisa para o livro, na RTP Arquivos, há uma entrevista que juntou os Da Weasel, Black Company, General D e os Mind da Gap. Estavam todos a falar dos seus álbuns, a falar da nova cena que era o rap, e levam com essa pergunta em frente à plateia, e tiveram que abordar isso, portanto era algo normal na altura.” Ricardo diz que a pergunta desconfortável acabou por criar uma abertura para que outros miúdos brancos se identificassem com o hip hop.

Apropriação ou troca cultural? A resposta nunca é consensual. As transfusões culturais são inevitáveis. A curiosidade, as migrações, o open mic para a consciencialização coletiva através de ritmo e poesia… Mas que não restem dúvidas, “apesar de tudo, o rap no início em Portugal, foi mega racializado, principalmente nas comunidades de Lisboa, como a geração dos Republica, geração negra que aproveitou o uso de um novo meio de partilhar mensagens de crítica social e política, brutalidade policial, desigualdades sociais, racismo, etc”.

Ricardo recorda General D, rapper político e assertivo, que entrou no mundo do hip hop com o livro de reclamações na mão. “Ninguém estava habituado a ver um jovem negro daquela geração a impor-se, a meter o dedo na ferida. Estamos a falar de uma altura em que havia skinheads em todo o lado, um período tumultuoso na sociedade. O General D acaba por ter a coragem que teve, com os seus trajes africanos, e com o espaço [dado] nos media foi possível abordar esses temas difíceis na altura”.

Best of the best e as plataformas digitais

Perguntamos a Ricardo se poderia dar-nos um top dos nomes de referência do hip hop português das últimas décadas. A resposta: “Vou pensar em voz alta. General D obviamente que deve estar na lista. Black Company, que foi o primeiro grupo a fazerem hits e tours, abriram os shows da cantora Tina Turner, foram atuar no Brasil, França, tiveram um enorme impacto cultural na cultura que deve ser respeitado. Os da Weasel, não sendo hip hop puro e duro, conseguiram abrir muitas portas e mentalidades. Os Da Weasel conseguiram fazer uma transição do pessoal que ouvia rock, que era muito forte nos anos 90, a fase do metal meio rap meio rock, os Linkin Park e Limp Bizkit dessa vida, para um estilo mais hip hop, trazendo mais fãs para esse estilo musical.”

Ricardo volta aos Mind da Gap e outros, que também permitiram descentralizar o rap. “Em Lisboa havia um foco maior no hip hop mas, desde muito cedo, no Porto já havia pessoal a rimar, e também no Algarve, como Johnny Def. Rapper de Quarteira, que é uma vila de pescadores, pobre. Quem morava lá eram os chamados ‘retornados’, negros que vieram das antigas colónias e que se fixaram ali.”

Algarve é um caso interessante. Devido à existência de turistas da Inglaterra e uma maior abertura internacional, as comunidades dessa área tiveram desde o início uma ligação mais forte com o exterior. As cassetes e influências de hip hop transformaram a cena cultural da ilha, desde os anos 80. Ainda neste best the best, Ricardo menciona também Chullage, artista mais influente da Margem Sul e sem background mainstream, herdeiro da crítica social de general D, e ainda Valete, outro ícone do movimento tuga.

A partir dos anos 2000, aparecem mais grupos mainstream, como os Expensive Soul. “Essa vibe que vem mais tarde, mais comercial, acaba sempre por ajudar as abrir portas. Tornam-se mainstream, com música para novelas etc.”

No início da década de 2010, Regula e rappers desse período estavam, como dizem os norte-americanos, on fire. Podemos ver o impacto do Regula nos últimos dez anos, em que o hip hop tornou- se cada vez mais comercial, e igualmente digital. O estilo torna-se mais estabelecido, os festivais são uma presença constante no panorama cultural. As plataformas digitais possibilitam a ligação direta com os fãs. É a Internet no seu inÍcio, romantizada. “Regula” teve os primeiros milhões de visualizações no YouTube. Mais recentemente, Spotify e Apple vieram para ficar. Aproximam comunidades, projetos e são alternativas de fácil acesso. “Os artistas ganharam força. Conseguiram sozinhos com a Internet e as plataformas sociais tornarem-se estrelas da música, com milhões de visualizações e fãs. Não precisam de editoras para nada e isso foi bom para os artistas e para a música no geral.”

A base norte americana, os emigrantes e Boss AC

“Sem prejuízo da plena soberania e do controlo sobre o seu território, mar territorial e espaço aéreo, Portugal concede ao Estados Unidos da América a autorização para: A utilização das instalações […] necessária à condução de operações militares resultantes da aplicação das disposições do Tratado do Atlântico Norte ou de decisões tomadas no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte [NATO], não havendo objeção de Portugal”, refere-se no Acordo Técnico integrado no “Acordo de Cooperação e Defesa entre Portugal e os EUA de 1995”.

Durão Barroso assina o acordo com os Estados Unidos, e os americanos estendem operações em Lajes, nos Açores. Os americanos trazem aviões militares, arsenal e algo mais importante, o hip hop. Jovens norte-americanos curtem a vibe dos tugas e fazem amizades, trocam ideias, arte e música. “Numa altura em que não havia muito acesso à informação, militares americanos em Portugal já ouviam rap, que era uma coisa muito maior nos Estados Unidos. Foi uma porta de entrada.”

À semelhança do que aconteceu no algarve, com os turistas, alguns artistas descobriram o hip hop através de pessoal que conhecia na base americana. “O Boss AC, que veio para Portugal em criança, tendo família de Cabo Verde, tinha um amigo na base das Lajes. Num mundo ainda não globalizado, não havia Internet, foi uma base nos Açores que o aproximou ao hip hop.” Contudo, Boss, filho de cabo-verdianos e fruto da crescente migração crioula, acabou por ter acesso a outra movimentação cultural. “Foi também uma mistura. Obviamente já havia pessoas a rimar em criolo desde muito cedo, como o Rapública, primeira compilação com rap em crioulo, em português e em inglês. No início, muitos rappers rimavam em inglês, a maior parte até, porque as referências eram americanas. Uma das influências para o rapper começar a rimar em português foi o Gabriel Pensador. O rapper brasileiro teve um mega impacto em Portugal na altura do lançamento do álbum, e que por acaso coincidiu com o inicio do rap português e ele influenciou de facto o pessoal a rimar em português.”

Hip Hop – Quatro décadas de Rap em Portugal retrata os vários elementos que compõem o anuário do movimento, as migrações e as línguas e culturas que aprenderam a coexistir, a movimentação das cassetes de lá para cá e de cá para lá… O livro é isso tudo e muito mais. Não tenta explicar-se ou a incitar a escolhas. “Gosto de pensar que escrevi sobre as peças do puzzle — cabe agora ao leitor construí-lo como achar melhor, sem encaixes obrigatórios”, termina Ricardo.

Depois de já ter sido apresentado em Lisboa, Ricardo Farinha vai levar o livro à Fnac Santa Catarina, na cidade do Porto, no dia 25 de novembro, às 18 horas.

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