Podemos assumir que o rap feito na “tuga” tem uma identidade ou mesmo uma “linguagem” ao qual as letras têm de se reger? O crioulo há dez anos era ostracizado – falado por imigrantes e seus descendentes e muitas vezes associado a marginais – hoje já é banal, passa na rádio, os miúdos brancos ouvem rap crioulo e até sabem as letras de cor… mas a aceitação ainda está longe de ser total. Só os artistas que preencham as quotas da considerada “normalidade” é que passam a ser mainstream nos meios de comunicação das massas.
Jair Filipe Moreno vem do bairro da Outurela/Portela, em Lisboa. Tornou-se Jair MC, sem grandes compromissos, tinha apenas vontade de cantar, de ser ele próprio enquanto “debitava palavras sincronizadas
como um metronomo” nos instrumentais.
Os seus videoclipes transpiram raiva e revolta e a curiosidade em saber quem é o rapper por trás da cara zangada levou a BANTUMEN a uma entrevista vídeo com o próprio. Bem ao contrário do que nos transmite nos visuais das suas músicas, o sorriso de Jair MC enche a sala. É descontraído, simpático e com uma enorme vontade de falar de si.
A vida não lhe sorriu muitas vezes, o bairro onde cresceu deu-lhe ferramentas para escolher um caminho que não o seu, sempre. Canta revolta dentro das suas letras e liberta a sua alma com um microfone na mão.
“O facto de ter crescido no bairro da Outorela/Portela faz-me ter uma visão diferente de quem não cresce. Cresci dentro de problemas, entre a escolha do certo e errado, as amizades e bandidagem, mas acaba tudo por ser escolhas que fazes. Eu sempre soube dividir as coisas, e sabia bem o que queria fazer”, explicou.

A música acaba por ser o escape à realidade vivida nos bairros e acaba por produzir nas pessoas sentimentos e influências. “O meu primeiro tema gravado foi a brincar. Nunca pensei em ser rapper, fiz um som e o pessoal curtiu”.
Jair não teve uma cultura musical em casa, os seus ouvidos ouviam as melodias, versos e coros que deambulavam pelo bairro, de casa em casa, desde Funaná à Kizomba. A música juntava e conectava as pessoas, a união que se sentia dentro da Outorela fez com que o MC fizesse mais músicas.
“Amor é o que sinto por Cabo Verde”
Canta em rap “tuga” e em crioulo. É descendente de cabo-verdianos. Cada vez que canta em crioulo, aproxima-se mais da sua cultura, representa uma comunidade que muitas vezes é marginalizada pela língua que fala. Hoje, o crioulo já é mais aceite, muitos falam e querem saber mais. Mas será que essa aceitação é total ou por partes? “Eu apenas sinto que represento o meu povo. A comunidade portuguesa também já ouve e percebe crioulo, não me sinto mais cabo-verdiano, sinto que represento a minha cultura. Amor é o que sinto por Cabo Verde”, explicou com um sorriso.
Em 2011 juntou-se a Jamba e juntos criaram o grupo DSK Family. Queriam fazer o que gostavam de fazer, sem que alguém lhes dissesse como fazer,. Queriam cantar sem que fossem obrigados. As gravações de temas foram-se tornando parte integrante da rotina de ambos, o bairro já os conhecia bem, mas foi o single “Liberdadi” que fez com que a comunidade crioula e não só prestasse atenção nestes dois miudos, que queriam apenas cantar juntos.
“Liberdadi” chegou a mais de 400 mil pessoas, numa altura em que o YouTube não alcançava as dimensões que alcança hoje. A música tornou-se num hit que fala sobre liberdade “para que te soltes, te sintas livre dentro da tua música e do que fazes. Não tínhamos noção que fosse chegar a tanta gente, e na altura era mais difícil divulgar uma música que saia diretamente do bairro, mas conseguimos de forma natural e orgânica.”
O grupo não acabou mas, em 2018, Jair rumou para uma carreira a solo. Cada um seguiu o seu caminho, focados em novos projectos. À medida que foi crescendo, Jair Filipe Moreno prestou mais atenção ao que se passava à sua volta e baseava-se nas suas experiências para escrever. Não tem um ídolo, nem segue tendências, canta o que lhe vai na alma sem grandes preocupações com as visualizações e a fama que se cria na Internet.
“Não sou um gajo de influências, sou verdadeiro, não penso em que língua escrevo, escrevo o que sinto. O crioulo tem pernas para andar’. Não quero cantar o que está a dar no momento, quero que as pessoas me sintam. As visualizações não são importantes, como artista é importante para motivar a pessoa, vais querer fazer mais. Mas para mim, as views não mostram o talento da pessoa.”

Jair prefere que o parem na rua e digam o que acharam da sua música, nem que sejam apenas 10 pessoas, para que fique feliz. ” Na Net posso ter muitos views e ninguém a dizer que gostaram da música, pelo contrário até posso ser gozado. E como artista quero que ouçam sempre a minha música, quero sentir que as pessoas sintem a minha música. As views são necessárias mas o artista não deve levar isso em conta.”
Tudo o que possa existir dentro do mundo da música Jair quer explorar como se o amanha não existisse e a vida dependesse de uma melodia, de um BPM ou de uma letra. Assim como em cada concerto que dá, dá tudo o que tem de si, quer porporcionar ao público uma experiência diferente, mais perto dele e é isso que se pode esperar da sua atuação no Festival Iminente, em Lisboa, no dia 21, sábado.
Jair procura dizer a verdade nas suas letras, verdades que arrepiem, que libertem, que façam chorar e sorrir. Partilhar vivências e experiências é o mote do EP que o rapper está a preparar. “Quero que as pessoas vejam verdade e entrega na minha música. Tudo o que possa depositar na música de bom vou fazê-lo para que as pessoas me sintam”, concluiu Jair.
“Não Confio em Ninguém“, “Fora Di Controlo” e “Chateado” são algumas das músicas mais populares de Jair MC. Abaixo, vais conhecer um pouco melhor este artista de quem vais, muito provavelmente, ouvir falar mais vezes.
Wilds Gomes
Sou um tipo fora do vulgar, tal e qual o meu nome. Vivo num caos organizado entre o Ethos, Pathos e Logos – coisas que aprendi no curso de Comunicação e Jornalismo.
Do Calulu de São Tomé a Cachupa de Cabo-Verde, tenho as raízes lusófonas bem vincadas. Sou tudo e um pouco, e de tudo escrevo, afinal tudo é possível quando se escreve.