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24% das mulheres negras em Portugal sofreu violência obstétrica durante o parto, diz estudo da SaMaNe

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A maioria das mulheres não recebeu explicações sobre os procedimentos realizados, nem pedido de consentimento, e pouco mais de metade foi informada sobre o plano de parto. Estes são os primeiros resultados do estudo “Experiências de gravidez, parto e pós-parto de mulheres negras e afro-descendentes em Portugal”, realizado pela Associação SaMaNe. É o primeiro estudo nacional sobre a problemática e “um ponto de partida” para tirar o tema da invisibilidade, acredita o coletivo.

Segundo o relatório, apresentado no último sábado, no Largo Residências, em Lisboa, mais de um quinto das mulheres negras e afro-descendentes no país diz ter sofrido violência obstétrica na gravidez (21,4%), relacionando essas situações “com questões de raça/etnia, idade, condição social ou outros fatores”.

A maioria das inquiridas, de um total de 158 mulheres, relatou “sentimentos positivos ao longo da gravidez”, mas um número significativo não se sentiu respeitada (10,7%) pelos profissionais de saúde, sentiu-se humilhada (33,5%) ou mesmo negligenciada(41,1%).

“O facto de ser negra influencia. O facto de ter um ar mais jovem também influencia. O facto de as mulheres negras serem rotuladas por terem muitos filhos, que não fazem mais nada a não ser ter filhos, também”, disse Iva, num dos vários depoimentos que constam do estudo, apresentado por Laura Brito, membro da Associação SaMaNe – Saúde das Mães Negras e Racializadas e também investigadora do Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra.

24% destas mulheres terá sido vítima de violência obstétrica, durante o parto, revela o relatório. Neste delicado momento da vida de uma gestante, uma percentagem considerável sentiu-se igualmente negligenciada (23,4%), não respeitada (19,7%) ou humilhada (17%).

“Eu tenho a certeza de que sofri violência obstétrica e tenho a certeza que foi mais acentuada por ser uma mulher negra”, indica Sara, outra das participantes neste inquérito, aplicado em formato digital, a uma amostra em que a maioria tem o ensino superior completo (60,8%) e é trabalhadora por conta de outrém (83,5%), contando o grupo com uma renda média familiar acima de mil euros.

Cerca de metade destas mulheres negras e afrodescendentes (50,6%) relata ter sido informada sobre o plano de parto e 58,2% indica ter podido negociar a tomada de decisões com os profissionais de saúde. Apenas 50% foi informada sobre as opções de tipos de parto, 82,3% a respeito dos sinais de urgência obstétrica, 68,4% sobre a amamentação na primeira hora e 75,9% sobre que maternidade deveriam procurar no momento do parto.

“Acredito que os profissionais de saúde têm ideias pré- concebidas daquilo que são as outras mulheres. Ou seja, aguentam mais a dor”, diz Kieza, outra das participantes, que relatou ter começado a ser cosida “a sangue-frio”, sem anestesia, após o nascimento do filho.

O inquérito – aplicado desde 2020 e que faz parte da tese de doutoramento de Laura Brito – revela ainda que a maioria das mulheres (84,4%) não teve um acompanhante da sua escolha em algum momento do trabalho de parto e que 65,2% não recebeu explicações sobre os procedimentos realizados, nem pedido de consentimento.

Senti que me ignoraram, que não elevaram as minhas expressões de dor, isso eu tenho a certeza que aconteceu. Agora, se estará diretamente relacionado com o facto de eu ser negra ou de eu ser uma mãe adolescente, fica difícil”, avança Heloisa, outra das inquiridas.

Após a alta, a maioria das participantes (55,1%) foi acompanhada pelo centro de saúde, com a maior parte das informações nas consultas a visarem a amamentação e os cuidados do bebé. Apenas cerca de metade recebeu informações sobre saúde mental (43%), saúde sexual (53,2%) e alimentação da puérpera (43%), lê-se no relatório. Sobre a ocorrência da violência obstétrica, no pós-parto, 26,4% das inquiridas afirmaram ter sofrido.

A importância dos números

Estella Monteiro, formada em psicologia, e uma das convidadas a comentar o estudo, este sábado, sublinhou o facto de a maior parte das mulheres que responderam ao questionário serem licenciadas, “o que não é representativo daquilo que é a maior parte da comunidade negra que reside em Portugal”. Não obstante, nota: “Temos um grupo que é estudado, que é informado, e que mesmo assim vê os seus corpos a serem fragilizados, a serem questionados, vê as suas necessidades a serem negadas”.

O questionário, informaram as dirigentes da associação SaMaNe, continua aberto e o objetivo é agora chegar a mais mulheres, incluindo àquelas que têm com uma condição socioeconómica “mais desprivilegiada”.

Para Estella Monteiro, a existência de números é da máxima importância. “Precisamos de lidar com números para podermos justificar coisas injustificáveis. Mas se não for com números ninguém acredita naquilo que dizemos. A nossa palavra é constantemente posta em causa por causa destas nuances”, diz – referindo-se aos vários fatores que podem influenciar os tratamentos de saúde prestados às mulheres, no geral – como o cansaço e insatisfação dos profissionais de saúde, relativamente às condições de trabalho em que operam.

Sobre a experienciação do racismo obstétrico, Estella Monteiro, que foi também uma das participantes no inquérito, refere ainda “estudos que dizem que as mulheres que têm mais consciência das questões raciais são as que mais experienciam stress, durante e depois da gravidez”.

O reconhecimento da violência obstétrica

Já Miriam Pires dos Santos, fundadora da AfroPsis- Plataforma de Psicólogos Afrodescendentes em Portugal, e outra das convidadas para a apresentação do estudo, mostrou-se surpreendida com os resultados numéricos, levantando a questão do reconhecimento, por parte das participantes, do tipo de agressões em que se pode traduzir a violência obstétrica. “O que é que estas mulheres entendem como violência obstétrica, e até que ponto elas reconhecem que foram vítimas desta violência?”, questiona.

“Muitas vezes as vítimas de um processo de violência, como estratégia defensiva, adotam determinados mecanismos para se protegerem desta mesma ocorrência. Muitos deles são a negação”, explica a profissional, formada em psicologia. “Não sei até que ponto não terão estado aqui em ação alguns mecanismos autocorretores nesse aspeto, no momento de responder a este inquérito, mesmo sabendo que elas o fizeram de forma voluntária e sabendo qual era o tema deste estudo.”

Sobre este ponto, Carolina Coimbra, presidente da SaMaNe explicou que o questionário contém algumas questões abertas, que permitem ter uma diferente perceção da informação recolhida. “As mulheres diziam que não tinham sofrido violência obstétrica, mas depois, nas questões abertas, algumas contavam o que tinha acontecido e víamos que tinham sofrido [essa violência]”, afirma. “Mas não somos nós que vamos dizer aquelas mulheres [que foram vítimas] e estragar a imagem que têm dos seus partos. Não vamos ser nós a dizer que elas sofreram e que não devemos normalizar aquilo por que passaram”, termina.

De acordo com Miriam Pires dos Santos, há ainda outros fatores a considerar. “Mesmo nas equipas clínicas hospitalares compostas por mulheres, está impregnada uma forma de estar e um discurso machista, marcadamente discriminatório em relação a vários fatores que as mulheres apresentam”, sejam eles raciais, etários, socio-económicos, culturais ou outros. “Quando estamos em determinados contextos, fazemos uma certa identificação ao agressor, que é colarmo-nos a discursos de uma certa autoridade para nos distanciarmos daqueles corpos que estão a ser monesprezados”, explica, o que contribui para a reprodução de certos padrões de conduta.

Próximo objetivo: chegar a mais mulheres

Karla Costa, vice-presidente da SaMaNe, explicou que esta investigação procura colmatar a falta de informação existente, em Portugal, sobre violência obstetrícia perpetrada contra mulheres negras. “Existe um problema, mas que ninguém sabe dele”, referiu no arranque da apresentação. “Uma das formas de tentar falar sobre este problema é através de números e dados. Porque a partir do momento em que esse problema não é divulgado, não é relatado, não tem dados concretos, ele se torna invisível.”

Apesar de ser uma forma de violência que afeta genericamente as mulheres, o racismo é um fator que se sobrepõe a este tipo de agressão, tornando as mulheres negras mais vulneráveis a maus tratos durante o período de gestação.

Para além do racismo estrutural que, sendo transversal à sociedade, também existe no sistema de saúde, muitos profissionais têm ainda pré-concebida a ideia de que as mulheres negras são mais tolerantes à dor, não oferecendo por isso tão rapidamente analgésicos como a epidural.

A intenção desta investigação não é, no entanto, ter uma competição de quem são as mulheres que sofrem mais, sublinha o coletivo. Sendo este o primeiro estudo nacional focado nesta temática, a SaMaNe vê-o como “um ponto de partida”, para tirar o tema da invisibilidade e coloca-lo na agenda política, académica e social do país.

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