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Vânia Doutel Vaz, entre a dança e a liberdade de ser

Vânia Doutel Vaz | ©Erez Sabag
Vânia Doutel Vaz | ©Erez Sabag

Com uma trajetória ímpar, Vânia Doutel Vaz, natural de Setúbal, iniciou os seus estudos na Royal Academy of Dance. Em 2003, completou com distinção o curso de formação de bailarinos na Escola de Dança do Conservatório Nacional, em Lisboa. Além disso, aprofundou os seus conhecimentos no Curso de Pesquisa e Criação Coreográfica no Fórum Dança, onde teve o privilégio de colaborar com conceituados nomes como Vera Mantero, João Fiadeiro, Margarida Bettencourt e Emmanuelle Huynh.

Vânia já integrou companhias de renome, como a CPBC, Nederlands Dans Theater e Cedar Lake Contemporary Ballet e, no espetáculo “Sleep No More”, em Nova Iorque, assumiu o papel principal por um ano. Apesar de navegar na mais alta esfera da dança, em Portugal e no exterior, Vânia Doutel Vaz tem um olhar despretensioso e bastante terra a terra sobre a sua profissão e a forma como a dança embala a sua vida.

Angolana e criadora de dança, Vânia tem atualmente 38 anos. Nesta entrevista para a BANTUMEN, a bailarina conta-nos que começou a dançar ballet aos cinco anos. Lembra-se de momentos em que os passos fluíam naturalmente, por exemplo, após uma refeição. Ao refletir sobre como a dança se desenvolveu na sua vida, Vânia explica que esta tornou-se simultaneamente liberdade e abstração. “Acho que a ideia de abstração é mais precisa do que liberdade, porque a abstração é algo mais completo, com mais potencial, que realça traços da nossa personalidade. A dança, na sua essência, para mim, é algo bastante profundo, enraizado na história, ancestralidade e atravessando intensamente outras formas genéticas”, explica à BANTUMEN.

Além da carreira, considerando o papel da astrologia na sua vida, Vânia descreve-se como alguém que vive nas estrelas, fluida e até mesmo, líquida. A artista vê-se também como alguém sem limitações, recusando-se a ser definida por outros, pois sempre lhe foi concedida a elasticidade para explorar diferentes definições de identidade. “Não se preocupem com a vossa aparência, mas sim com o que querem ser e quem são verdadeiramente“, aconselhava a sua avó, criando assim uma barreira entre a família e as expectativas sociais e microagressões que a rodeavam na infância. O facto de ser a “cassula”, acabou por moldar parte da sua identidade. Muito ligada ao valor familiar e às lições que a moldaram até hoje, Vânia partilha que isso reflete-se profundamente no seu carácter e na sua essência. “Apesar de apreciar muito o meu espaço, o meu mundo e a minha privacidade, há um poder quando se trata de momentos coletivos”, partilha. Em geral, a artista acredita firmemente que todas as suas experiências foram poderosas em termos de criatividade e na manifestação do que desejava para si mesma. “Tive a liberdade de sonhar por mais tempo, acreditando que tinha a capacidade de fazer o que quisesse sem que qualquer barreira me fosse imposta no caminho.”

Vânia Doutel Vaz |© Luis Alberto Rodriguez
Vânia Doutel Vaz |© Luis Alberto Rodriguez

Inesperadamente, Vânia encontrou-se no ballet aos cinco anos, acompanhando a irmã mais velha que precisava de uma leve correção ortopédica. No entanto, enquanto a irmã decidiu explorar outros caminhos assim que melhorou, Vânia optou por continuar no ballet, questionando-se: “Porquê mudar?”. A partir daí, o seu percurso foi delineado por passos e piruetas, ao lado de Fernanda Mafra, uma professora licenciada pela Royal Academy of Dance. “Então, desde os meus seis anos que faço espetáculos. Inevitavelmente, havia uma relação orgânica com a dança, indo além do ballet, que por vezes pode ser bastante rigoroso, mas também com a musicalidade, com o espaço e movimento, seja em distância ou equilíbrio, que naturalmente cria uma ligação com o nosso cérebro. Uma ligação corporal que considero bastante especial no mundo do ballet”, declara ela. “No que diz respeito a exames, posso dizer que ficaria mais nervosa com um exame do que com um espetáculo. Tanto que a minha mãe inventava técnicas hilariantes não só para me motivar, mas também para acalmar a ansiedade que vinha com cada exame.” Até hoje, cada espetáculo é um momento em que a artista vive a sua verdade e liberdade.

Num contexto em que o universo da dança é predominantemente representado por pessoas de etnia branca, Vânia destaca que, como muitos de nós, ela percorreu um caminho que esteve “quase paralelo” à sua própria vida. Durante a maior parte do tempo, as suas aspirações eram centradas na admiração por mulheres brancas, devido à escassez de diversidade no mundo artístico. “Acho isso bastante intrigante, especialmente considerando que iniciei os meus estudos de ballet no Vale da Amoreira, no Barreiro. Nas aulas, embora houvesse alguns estudantes brancos, a maioria era de ascendência afrodescendente. Consequentemente, a nossa professora, a Nanda, encaminhava esses mesmos estudantes para o conservatório, visando o aprimoramento técnico e todo o treino que tinham acumulado ao longo dos anos.

Por mais que a dança seja o centro da minha vida, não é a minha identidade, e também não me define.

Vânia Doutel Vaz

Com o tempo, mesmo no seu imaginário de estudo e no seu espaço educativo, a artista apercebeu-se de que não era a minoria. Esta variedade de referências foi alimentada por indivíduos que a inspiram profundamente, como Benvindo Fonseca, “que não é somente extremamente talentoso, mas também alguém com quem me identifico enquanto mulher negra, e que posso associar a qualquer pessoa da minha família.” Assim, a relação entre a sua identidade artística dentro do ballet e a sua identidade racial e física levou-a a várias jornadas de autoconhecimento. “Por mais que a dança seja o centro da minha vida, não é a minha identidade, e também não me define.” Neste momento, a sua maior inspiração e desejo baseiam-se em coisas que ainda não existem, e interessa-lhe associar-se a pessoas que pretendem criar outras maneiras de existir e retomar espaço.

Assim como em muitos outros espaços das artes performativas, o ballet e a dança contemporânea são amplamente reconhecidos por serem predominantemente frequentados por pessoas brancas. “O mundo começou a abordar mais abertamente o racismo, o exotismo e o tokenismo nos últimos anos, embora para muitos isso seja uma realidade há bastante tempo.” No entanto, só em 2010, quando se mudou para Nova Iorque, é que a artista percebeu verdadeiramente o nível de diversidade que o mundo tem para oferecer, apesar de ter crescido artisticamente num ambiente tão diversificado como o Vale da Amoreira. “Ao perceber que não estava sozinha, parecia que o problema não era tão evidente. Contudo, sem muita reflexão, sentia-me Portuguesa porque essa era a norma, de omitir o nosso lado Angolano. Era mais simples. Mas quando fui pela primeira vez a Angola, em 2008, e que teve repercussão no regresso dos meus pais em 2010, toda essa questão identitária mereceu uma reflexão mais profunda.” Ao desvendar as camadas do racismo e anos de microagressões, Vânia reflete sobre o vasto espaço disponível para mudanças drásticas nas companhias de dança, especialmente em relação ao ideal de corpo, que tende a ser europeu e livre de gordofobia na indústria criativa. “Da valorização de corpos magros a corpos brancos, a diversidade de corpos tem vindo a diminuir, e é necessário desconstruir essa narrativa, pois ser mais branco não significa ser melhor.”

Vânia assegura que já esteve em espaços que foram propositadamente diversificados para que ninguém se sentisse excluído, inspirados por mentes como Alvin Ailey, o fundador do Alvin Ailey American Dance Theater, um espaço dedicado a artistas negros que desejam explorar as suas raízes e a sua herança artística. Além disso, atualmente, está a trabalhar com o grande Trajal Harrell, o que lhe proporciona a oportunidade de se sentir em casa ao trabalhar com corpos diversos, de várias alturas e formas. “Sinto que estou sempre inserida em grupos que já são variados, sem que isso se torne numa missão notória que mereça ser estampada num jornal, como acontece bastante agora.”

Existe uma grande demanda por peças que abordem temas políticos e que, simultaneamente, se foquem nas nossas experiências. Vânia acredita que, apesar de ser uma das maiores potências no mercado artístico, merecemos também ter espaço para arte menos excecional. Por outras palavras, não é necessário para nós, negros, atingir a perfeição e excelência o tempo todo para sermos valorizados. Deve haver um equilíbrio que nos permita deixar para trás as máscaras de super-heróis e, ao mesmo tempo, “deixar os abutres que exigem tanto de nós de boca aberta.” Esta ideia de desafiar expectativas é algo que a artista leva consigo para qualquer palco. “Por outro lado, o objetivo é poder trabalhar com amigos, pessoas que eu admiro, e que estão na minha comunidade para que possamos utilizar a nossa imagem para subverter a colonialidade que existe nestes espaços”, conta ela, dando ao espetador a oportunidade de ver o que quer, como quer, porque no final do dia “existe uma relação de poder em que eu estou ali só para entretenimento alheio. Mas será que estou aqui para me submeter somente a isso? Ou será que tenho direito de me desviar do que é esperado de mim?”

Devido à agenda preenchida de Trajal Harrell, que inclui diversos festivais por toda a Europa, e outros trabalhos para os quais tem sido convidada ao longo do ano, a artista encontra-se um tanto quanto sobrecarregada. “Este ano tem requerido muito de mim, o que leva facilmente a um burn out. Tenho viajado bastante e também mudei recentemente de casa. E a bem ou a mal isso tudo pesa.” Adicionalmente, por causa da sua maneira de ser e a dificuldade que sempre teve em afirmar-se e a dizer que não, Vânia declara que hoje em dia observa com orgulho a incapacidade de dizer que sim. “O que está a acontecer é uma imposição do meu cansaço e uma mudança necessária de comportamentos. Inevitavelmente, estou a escutar o meu corpo, que tem falado bastante alto, tenho priorizado o meu tempo, enquanto imponho a minha vontade e, em geral, tem valido muito a pena.”

Vânia Doutrel Vaz | © Lubanzadyo Mpemba
Vânia Doutel Vaz | © Lubanzadyo Mpemba

No que diz respeito aos artistas que ainda estão por vir e ao que gostaria de saber antes de ter embarcado nesta jornada, Vânia Doutel Vaz medita sobre o conceito de profissionalismo e talento, e quem define o que são. “Para mim, o profissionalismo vem de um lugar onde te dedicas ao que fazes de coração. E aí, acho que há necessidade de haver uma capacidade de interpretação do que é o teu limite e da devoção que pode ir para além do teu limite”, pondera. “Isto é para dizer que, no mundo da dança, há que existir um equilíbrio entre a nossa profissão e a nossa devoção para que ambos não entrem em choque. E que há que se ter cuidado para que não se perca o controlo, porque pode acontecer num piscar de olhos.” Em relação ao talento, a artista clarifica que existe o mito de que talento é tudo e que sem esse toque divino, é quase impossível. “E isso não nos devia parar de seguirmos os nossos sonhos porque tudo se aprende e domina com a prática. Só precisamos de saber onde pertencemos.”

Assim, torna-se inevitável perceber que, se Vânia fosse investida do poder para implementar mudanças na indústria da dança, ela advogaria fervorosamente pela não definição de conceitos de forma irrevogável. Afinal, muitas das frustrações artísticas advêm dessas delimitações entre o sucesso e a falta dele. “Por exemplo, se te asseguram que serás a melhor bailarina de todos os tempos e que terás uma carreira brilhante, mas se essa promessa não se concretiza, surge uma frustração avassaladora que acaba por manchar todos os outros triunfos que conquistaste ao longo dos anos. Por outro lado, há também aqueles a quem dizem que nunca alcançarão o êxito e saem desses espaços desanimados. No entanto, mesmo ao encontrar um percurso alternativo, permanece aquela sensação de limitação que te prende eternamente à ideia de que não serás capaz, gerando dúvidas constantes sobre o teu próprio valor.” Em geral, estas restrições, que têm a sua origem sobretudo no ensino, representam obstáculos tóxicos e perigosos que nos impedem de atingir tudo o que desejamos. Se dependesse de Vânia, ela promoveria uma transformação nesse cenário. “Criaria, então, uma dinâmica de ensino e educação onde haveria um investimento e uma capacitação das pessoas que ali estão para aprender.”

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

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