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David J. Amado: “Faço ballet clássico, mas sou gueto, sou queer e sou intelectual”

David J. Amado | © Produção exclusiva para a BANTUMEN, novembro 2023
David J. Amado | © Produção exclusiva para a BANTUMEN, novembro 2023

David J. Amado nasceu na Jamaica, no “campo do campo”, como o próprio define. Aos 12 anos, mudou-se para Nova Iorque, nos Estados Unidos, local onde que deu os seus primeiros passos no mundo artístico. Na América, formou-se em Música na Columbia University em Nova Iorque. Teve aulas de dança na técnica Graham e ainda foi aprendiz na Companhia Alpha Omega Theatrical Dance (AODT). Tal formação o levou à companhia de dança Corpo Cidadão no estado de Minas Gerais, no Brasil. Essa formação levou-o à companhia de dança Corpo Cidadão, no estado de Minas Gerais, no Brasil. No entanto, devido à situação económica e política desfavorável no Brasil na altura, Amado mudou o rumo da sua trajetória para Portugal.

Apesar de ter consolidado a sua carreira como dançarino, ao chegar ao país, começou a envolver-se no mundo do audiovisual, como realizador de cinema. Na sua arte, seja nas telas ou nos palcos, ele deseja explorar as narrativas de pessoas negras e queer. “Cheguei cá em fevereiro de 2017 e a minha jornada tem sido interessante. Portugal não oferece o mesmo que o Brasil ou os Estados Unidos. Então, comecei a trabalhar como realizador de cinema e coreógrafo. Aqui em Portugal, sempre senti que não via as histórias que queria ver. Não via os corpos no palco que desejava ver. Por um lado, isso é muito triste, mas, por outro, se estivesse noutro país, acho que não conseguiria criar coisas com o meu nome”, afirma.

“Até para os artistas brancos, em Portugal, não há muitas oportunidades. Imagina para um imigrante, negro e queer. Sinto que não há muita abertura, não só para o meu corpo, mas também para as histórias que gostaria de contar. Então, comecei a criar as minhas obras. No Brasil e em Nova Iorque, tinha uma carreira como intérprete, não como realizador. Não sentia necessidade de o fazer, porque havia muitos realizadores de cinema, dança e teatro. Mas, aqui em Portugal, não há tantas pessoas. É triste porque existem muitas pessoas talentosas, mas não têm oportunidades. Vejo que aqui não há a mesma valorização da cultura que vi nos outros países onde estive”, explica.

Como coreógrafo, David J. Amado procura incorporar vivências plurais para construir histórias poderosas. “O ballet clássico, tal como é visto atualmente, é baseado na supremacia branca e em valores retroativos. Quero que o ballet clássico seja acessível a todos. Para pessoas negras, para pessoas queer… Para pessoas que não têm o ‘corpo adequado’ para o ballet clássico. O ballet clássico continua a ser muito elitista e fecha muitas portas. A arte ensina, mas as pessoas dentro da arte fecham muitas portas para pessoas como eu, pessoas com vivências mais diversas. O meu papel como professor é tornar as aulas de dança clássica mais acessíveis”, destaca.

O seu filme de dança Velveteen, inspirado no livro The Velveteen Rabbit, de Margery Williams, retrata a jornada de um jovem negro e queer que, atormentado pelo ódio por si próprio, procura aceitação e auto-descoberta. Já o filme True Colors explora a masculinidade e como o homem negro e queer se encaixa nesse contexto. Os filmes foram exibidos nos festivais de cinema Berlin Lift-Off Festial, Afropolitan em Bruxelas e na Mostra Ousmane Sembene de Cinema, no Brasil. Além disso, o canal de televisão RTP África transmitiu as obras para Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Cabo Verde. “As histórias que conto sempre envolvem pessoas negras, as protagonistas também são negras, são queer. Então, uso essa forma de arte para contar as nossas histórias, porque temos que ter essa possibilidade. Amo dança de rua e dança afro, mas a dança clássica também faz parte da nossa história. Não é apenas uma arte europeia, como dizem, nem apenas para corpos europeus. É para todos“, explica.

Segundo Amado, os corpos negros ainda são excluídos do ballet clássico. “Sinto uma subestimação. Muitas vezes, quando digo que sou dançarino clássico, as pessoas, até mesmo as pessoas negras, não acreditam. Faço clássico, faço ballet. Com as pessoas negras, já estou habituado, percebo que é porque não temos referências aqui em Portugal. Não temos pessoas negras em companhias de dança clássica. Por um lado, sei que não é por mal, é apenas falta de referências e ignorância”, pontua.

“Mas das pessoas brancas, acho que é algo mais profundo. Acham que o corpo negro só é adequado para fazer certas coisas. E, se for na arte, é apenas para danças urbanas, danças de rua, danças que não são consideradas ‘belas’ e ‘elegantes’. Mas isso vai além da arte. Sinto que em Portugal, os nossos corpos só são adequados para trabalhos braçais ou de limpeza. Fazer arte não é para pessoas negras, é o que eles pensam. Então, também estou a usar a dança clássica para quebrar esses estereótipos e mostrar que o corpo negro é capaz de fazer tudo e, talvez até mais do que qualquer outro corpo, porque é um corpo cheio de história, cheio de poder, cheio de beleza e cheio de potencial”, afirma.

Ao iniciar a sua trajetória na dança, o coreógrafo inspirou-se no trabalho de pioneiros como o cubano Carlos da Acosta e o americano Desmond Richardson. “Carlos da Acosta, um homem negro de Cuba, praticava dança clássica. Hoje em dia, tem uma companhia de dança clássica em Cuba. Desmond Richardson, que dançava no Alvin Ailey American Dance Theater, desempenhou papéis principais com esta companhia muito prestigiada”, destaca.

No campo do audiovisual, a sua principal influência são os filmes de Spike Lee, que exploram o protagonismo negro. “Em termos de cinema, admiro muito Spike Lee, um realizador que conta exclusivamente histórias negras. Até hoje, é uma grande referência para mim”, afirma.

No entanto, para além dos grandes nomes, o coreógrafo destaca as influências que recebeu de pessoas do seu quotidiano. “Mas também existem pessoas da minha juventude que não são famosas, rapazes e raparigas, pessoas trans com quem convivi. Eram tão talentosos e tinham tanto potencial, mas não tinham recursos para fazer o que Carlos Acosta, Spike Lee e Desmond Richardson faziam. Mas ainda penso nessas pessoas. Nunca tive contacto com Carlos Acosta ou Spike Lee, mas essas pessoas jovens influenciaram-me muito na altura, e é por causa delas que hoje faço tudo o que faço”, destaca.

Como homem negro jamaico-americano, o artista considera que possui uma visão plural do conceito de negritude. “Imagino que o facto de ter vivido em tantos países e ter tido tantas vivências faz com que o meu conceito de negritude seja mais amplo. Porque não vivi apenas num país, vivi em muitos. Muitas culturas, muitas línguas. Espero que, quando alguém olha para o que faço, seja em cinema ou em dança, recebam uma visão universal e plural da negritude”, declara.

É arte como ativismo, arte como cura, arte como resistência

David J. Amado

E o seu talento já foi reconhecido pelo governo português, pois em 2020 foi beneficiário do programa de apoio a projetos do Ministério da Cultura (GDA) com o filme Velveteen. “Recebi cerca de três mil euros, mas investi cerca de oito mil, então foi um custo elevado. Custou-me não só financeiramente, mas mentalmente, psicologicamente, dei tudo. Chegou a um ponto em que, quando terminei o filme, pensei que talvez nunca mais fizesse outra coisa. Talvez fosse o fim. Senti que dei tanto para este filme que não tinha mais nada a oferecer. Este filme faz parte de mim a um nível muito profundo. Foi apenas uma bolsa, mas ao mesmo tempo foi uma afirmação do meu trabalho e do meu talento. Diria que essa bolsa me deu mais confiança”, explica.

A intersecção entre a arte da dança e do cinema são, para o artista, indissociáveis. Como é possível? “Para mim, cinema e dança sempre foram a mesma coisa. Quando era mais novo, queria ser como a Janet Jackson. Porque ela fazia vídeos musicais com dança, com diálogos. Todos os seus vídeos eram quase como curtas-metragens. É por isso que quis dançar e fazer cinema. Não ia ao teatro para ver dança, ligava a televisão”, explica.

O dançarino também fala sobre a importância da educação sobre consciência racial nos seus projetos. “Tudo o que faço tem um lado académico. Em termos de referências, gosto muito de James Baldwin, Audre Lorde, Bell Hooks. Estou sempre a ler os seus textos e incorporo os temas dessas pessoas em tudo o que faço. Questões de amor, questões raciais, questões de identidade. Para mim, não é apenas arte pela arte. É arte como ativismo, arte como cura, arte como resistência”, afirma.

Apesar de ter formação em ballet clássico, o artista não renega a sua experiência com a cultura do gueto. “A minha experiência como pessoa negra também está relacionada com a classe social. Não sou um negro de classe média. Cresci numa situação de pobreza, tanto quando estava no campo quanto quando estava na cidade. Fui muito influenciado pela cultura do gueto, pela cultura das favelas. É algo que gosto de levar comigo. Muitas vezes, quando vejo pessoas negras em plataformas, sinto que há uma pressão para ser muito elitista, para compactuar com o capitalismo, algo que vai contra as vivências que tive“, explica. “Faço ballet clássico, mas sou do gueto, sou queer e sou intelectual. Não preciso fragmentar o meu ser para ser mais compreensível para os outros. Sou tudo isso e muito mais”, reforça.

Para o futuro, o bailarino já tem projetos em fase de produção. “Tenho dois projetos. Um curta, que se chama Sal na Ferida que vou lançar em 2024. É um curta-metragem sobre um queer cabo-verdiano que vive em Lisboa e se apaixona por uma mulher trans. Estou desenvolvendo o roteiro e pretendo filmar em 2024. O outro é o meu primeiro longa, então estou muito ansioso. Se chama Taste, é um drama musical com elementos de thriller e pretendo filmar entre 2024 e 2025”, detalha.

Com uma riqueza de experiências culturais que permeiam a sua trajetória, Amado explora essa fusão em todos os seus trabalhos artísticos e que espelham a sua visão abrangente sobre negritude. “A minha perceção de negritude é bem ampla. Quando faço obras consigo juntar várias culturas. Por exemplo, o curta Sal na Ferida. Eu não sou cabo-verdiano, mas estou aqui em Portugal, sou estrangeiro também. Vivo e convivo com eles, tenho muitos amigos de Cabo Verde. Eu consigo fazer a ligação entre a cultura deles e a minha cultura e fazer esse filme. Sim, Jamaica não é Cabo Verde e a experiência negra não é plana, é diversa. Mas temos ligações entre as culturas. Então, acho que com a minha perspetiva como jamaicano em Portugal, que não tem uma comunidade forte de jamaicanos, consigo juntar todos nós nas minhas obras”, ressalta.

Doravante, o que o bailarino e coreógrafo mais deseja é usar a arte para combater preconceitos e segregações. “Principalmente para as pessoas mais jovens, quero que elas saibam que vale a pena tentar, que vale a pena lutar e criar. Eu sei que é muito difícil aqui em Portugal, já que não há muitos recursos, onde não há muita abertura para várias narrativas, vários corpos, várias vivências. Mas vale a pena tentar, porque é só através da arte que podemos nos curar e mudar o mundo”, confirma David J. Amado, acrescentado um conselho para os seus pares: “Seja negro, seja queer, seja orgulhoso.”

Direção Criativa e Produção: David J. Amado 
Direção Artística e Fotografia:Souldazz 
Beauty: Juliana Diaz 

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