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A comunicação para o desenvolvimento não é mais a mesma – que bom!

Opinião de Josi Paz
Consultora e especialista em mudança social e de comportamento

Quando ouvi a expressão “Comunicação para o Desenvolvimento”, pela primeira vez, questionei-a: que comunicação é essa que tem como ponto de partida desenvolver quem está do lado de lá?

O nome soou como uma abordagem extremamente vertical. Afinal, a palavra “desenvolvimento” tem a ver com um modelo de pensamento que classifica o mundo entre evoluídos e atrasados; e atribui aos evoluídos a polémica missão de resgatar os outros do suposto atraso.

Conheci primeiro a expressão “Communication for Development”. Mesmo quando o termo era mencionado em português, usava-se a sigla que resulta das três palavras em inglês, “C4D”.

Isso deixa evidente a forte influência dos países ricos do hemisfério norte no entendimento sobre tal comunicação.

Josi Paz

Soube depois dos esforços dos países pobres do sul, que não falam inglês, para a adopção também da sigla “CpD”. Seria injusto reduzir à questão do nome a fundamental contribuição que a comunicação para o desenvolvimento representa, para muitas organizações e países. Entretanto, as palavras sempre estão no curso de algum discurso e aludem a narrativas diversas. Por isso, vale a pena refletir um pouco sobre o debate existente hoje em torno desse nome, principalmente no sector humanitário.

Comunicar para desenvolver

A escola desenvolvimentista ganhou força no pós-guerra, e essa força estava na expansão dos mercados e nas novas formas de exercer poder político e económico. O sucesso do modelo contou com um forte aliado: os meios de comunicação. A partir dos anos setenta, a escola desenvolvimentista seria duramente criticada, mas o seu protagonismo, nos anos cinquenta e sessenta, transformou a relação entre os países num planeta com distâncias geográficas cada vez menores.

A chamada comunicação de massa ajudou a encurtar o caminho entre produtos, ideias e pessoas. Com mais jornais impressos, cartazes, rádio e o aparecimento da televisão, as mensagens foram ainda mais longe. Assim, foi atribuída para a comunicação a função de recuperar as grandes economias.

Os sentidos que as pessoas atribuíam às mensagens disseminadas ainda não tinham ganhado a força mercadológica que têm hoje. Actualmente, como sabemos, consumidores são ouvidos antes mesmo que novos produtos e serviços sejam imaginados, e tudo é segmentado ao máximo.

Surgem naquele período termos como “público-alvo“, que usamos até hoje, como se as pessoas fossem, de facto, meros receptores dos conteúdos disseminados. Também vem dessa época a ideia de uma comunicação que tem pólos, estando o emissor em apenas um deles. Hoje, compreendemos que emissão e recepção não são papéis estanques.

As pessoas não recebem mensagens passivamente: elas emitem mensagens quando, por exemplo, boicotam produtos ou não se interessam por uma publicidade. De facto, comunicação também significa ouvir as pessoas.

Josi Paz

A partir dos anos sessenta, e ainda mais nos anos setenta, o acúmulo das críticas à abordagem desenvolvimentista levou a mudanças fundamentais na compreensão da comunicação. As pessoas agora podiam fazer a sua comunicação. A vida na fábrica e a vida no campo passaram a ser vistas como oportunidades para formar, educar, fortalecer lideranças – lideranças essas já organizadas, em alguma medida, nos movimentos sociais em diversos países em desenvolvimento. Quem aprende, também pode ensinar e, quem ensina, também pode aprender, como defendia o educador Paulo Freire.

As vozes da comunidade

A noção desenvolvimentista mantém-se presente hoje, em disputa com outros sentidos. Essa é a história das ideias: estão em permanente disputa de sentido, nunca desaparecem por completo. No entanto, a partir dos anos setenta, consolidou-se uma mudança importante de perspectiva sobre a comunicação: os saberes existentes já não eram vistos tão facilmente como atrasados.

Vêm dessa época noções como “agentes de mudança” e a ideia  de uma comunicação que precisa ouvir as vozes da comunidade. Ganha força a comunicação que é realizada na, para e com as comunidades rurais, muitas vezes a se confundir com a comunicação rural e a educação para o campo.

Comunidade pode ser entendida sob uma ideia romântica e meramente colonialista, mas outro artigo seria necessário para discutir esse ponto. O que destaco é que, de um lado, o fortalecimento da comunicação para o desenvolvimento no campo ainda ecoava o modelo desenvolvimentista, pois partia do pressuposto de que era preciso levar o progresso para zonas remotas. Porém, de outro lado, firmou de modo decisivo o protagonismo do componente comunitário na comunicação.

 “Nada sobre nós sem nós” é  a perspectiva que guia até hoje a comunicação para o desenvolvimento.

Josi Paz

Nos anos dois mil, sob essa outra perspectiva, a prática da comunicação para o desenvolvimento passou a destacar-se em outro sector: o do trabalho humanitário.

A comunicação para o desenvolvimento foi tornando-se, assim, sinónimo de contextos de emergência, da mobilização e do engajamento comunitário, realizado pelas agências internacionais. As agências das Nações Unidas passaram a definir o modo de fazer esse tipo de comunicação e a incorporá-la na sua estrutura.

Muito além da media

Com a adopção da comunicação para o desenvolvimento, pelas organizações internacionais, o seu conceito passou a incluir a combinação de diferentes técnicas, muito além da media. Comunicação para o desenvolvimento passou assim a ser definida pela sistematização e qualificação das informações.

O uso da media, de estratégias e ferramentas mais tradicionais de comunicação continuaram – e continuam – a ser úteis, como advocacy e as tradicionais campanhas, mas ganharam importância as técnicas de geração de evidência, como surveys e avaliações rápidas.
Também foi ampliada a compreensão sobre feedback.

 Hoje, por exemplo, há uma linha sensível de monitoramento que envolve as curtidas e as partilhas nas redes sociais para a identificação de rumores e desinformação; e há também o uso de instrumentos que facilitam o retorno das pessoas sobre as actividades e projectos que estão a ser implementados: sugestões, reclamações e denúncias das pessoas afectadas.

Ainda se fala em comunicação para o desenvolvimento, porém, novas ideias pedem novos nomes, e esse antigo nome vem sendo amplamente revisto.

Processo e não mero produto

Nos anos dois mil enfraqueceu a ideia de uma comunicação que não ouvia a comunidade; que tinha como público-alvo apenas as comunidades rurais; e cujo principal objetivo era desenvolver e disseminar mensagens.

Em 2006 foi realizado o primeiro Congresso Mundial de Comunicação para o Desenvolvimento, resultante de uma parceria entre a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e o Banco Mundial, no qual a prática foi definida como “um processo social baseado no diálogo mediante uma ampla gama de ferramentas e métodos”, que busca uma “mudança em diversas áreas como escutar, gerar confiança, intercambiar conhecimentos e capacidades, construir processos políticos, debater e aprender para obter uma mudança sustentável e significativa”. Há um ênfase na diferença em relação aos meios de comunicação: “não tem a ver com as relações públicas ou comunicação corporativa”.

Ironicamente, hoje, nem a comunicação, nem o desenvolvimento, são mais palavras-chave da Comunicação em Desenvolvimento, embora esse ainda seja o nome da área de atuação e da carreira nas organizações. O que seria então essa outra comunicação para o desenvolvimento, que surgiu como crítica do modelo desenvolvimentista? 

Actualmente, a comunicação para o desenvolvimento aproxima-se, na teoria e na prática, da chamada ciência do comportamento: C4D virou sinónimo de outra sigla, SBC, “Social and Behaviour Change”, isto é, “Mudança Social e de Comportamento” (haverá  também a sigla MSC?).

Mais uma vez: um nome nunca é apenas um mero nome. Mudar de “Comunicação para o Desenvolvimento” para “Mudança Social e de Comportamento” diz muito mais do que parece. 

Individual sim, social também

Certamente, há uma influência das inovações que estão a guiar comportamentos de consumo nesse deslocamento, como o monitoramento e a avaliação de insights de comportamento (behaviour insights).

No entanto, no contexto das organizações internacionais, a nova proposta também pode ser compreendida como uma (auto)crítica em relação àquela proposta inicial, de forte matriz desenvolvimentista.

A Agencia das Nações Unidas para a Infância (Unicef), por exemplo, expert histórica nas Nações Unidas em comunicação para o desenvolvimento, tem-se destacado nessa actualização. Na definição actual da Unicef, uma mudança social e de comportamento deve ser compreendida como “um processo baseado em evidência, que utiliza um mix de ferramentas de comunicação, canais e abordagens para facilitar a participação e o engajamento”, com o intuito de promover uma “mudança social e de comportamento nos contextos social e humanitário”.

No âmbito das Nações Unidas, de modo geral, esse também tem sido o entendimento. Em 2021, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, emitiu uma nota de orientação sobre a ciência do comportamento. No documento, ele reconhece que as entregas das Nações Unidas estão vinculadas a mudar comportamentos humanos. O documento orienta os servidores de todas as agências da Organização, para que apliquem os pressupostos da ciência do comportamento nas áreas programáticas e administrativas como saúde, género e clima, entre outros.

A nova perspectiva põe foco na resposta individual, bem ao gosto das práticas de mercado. Entender como as pessoas se comportam e identificar pequenas e grandes estratégias para provocar comportamentos desejados é algo já estabelecido na sociedade de consumidores na qual vivemos – com diferenças abismais no acesso a esse consumo, como se sabe – principalmente depois do advento da internet.

No entanto, para o trabalho humanitário, é importante assegurar que a voz das pessoas para a qual um determinado projecto se destina sejam efectivamente ouvidas. Se uma solução para um comportamento pode ser apoiada pelas agências internacionais, as pessoas das quais se espera a adopção de tal comportamento devem fazer parte da solução.

Trata-se, portanto, de uma tarefa mais complexa, do que best-sellers sobre mudança individual de comportamento gostariam. Empurrões não sustentam mudanças sociais e de comportamento, ainda que sejam muito úteis para começar.

A adesão, ou não, à vacina contra a COVID-19 nos diferentes continentes, por exemplo, sugere as limitações do foco individual e de categorias de insights globais de comportamento para dar conta da complexidade da questão.

Por isso, a perspectiva da mudança social e de comportamento é tão bem-vinda, pois leva em conta aspectos coletivos que configuram as respostas individuais; aspectos que são partes constitutivas das respostas individuais, e não apenas cenários nos quais os comportamentos individuais acontecem.

Mudanças sociais e de comportamento podem estourar cronogramas de projetos. Instrumentos para acompanhar essa nova dinâmica talvez precisem de ser aprimorados ou inventados, respeitando a diversidade dos contextos, e para isso devem contar com a participação das pessoas para os quais se destinam. Contexto individual, sim, mas coletivo também.

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A mudança social e de comportamento abre possibilidades de reflexão e acção para contemplar o outro em todas as instâncias do trabalho humanitário. Isso pode balançar o eixo de poder entre organizações internacionais e as pessoas que inspiram os seus mandatos; e representar uma conquista em termos de legitimidade, relevância, transparência, efetividade, sustentabilidade (não somente financeira) no cumprimento das missões.

As organizações não se podem colocar no lugar do outro. Ninguém pode, embora se diga muito essa frase em reuniões por aí. Mas é possível e necessário reconhecer a existência desse outro, enquanto outro, e buscar o diálogo. A perspectiva da mudança social e de comportamento está muito mais próxima desse ponto-de-partida.

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