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Mali, Burquina Faso e Níger, novos ventos pan-africanistas?

©Reuters/Anne Mimault
©Reuters/Anne Mimault

A região do Sahel, composta por países como Mali, Burquina Faso e Níger, tem enfrentado graves desafios políticos e militares nas últimas décadas. Os três países têm lidado com a ameaça crescente do terrorismo jihadista, o que tem gerado instabilidade e insegurança na região. Contudo, há uma outra luta que impera nestes três países: a desvinculação com o projeto Françafrique, que mantém uma perniciosa influência do ex-colonizador na região, a nível político, financeiro e militar. Apesar dos contornos geopolíticos, económicos e sociais complexos, neste artigo, descortinamos o que levou aos últimos acontecimentos no Sahel, com as considerações de Sumaila Jaló, ativista e investigador guineense, e Mamadou Ba, ativista político luso-senegalês.

Mali: retirada das tropas francesas

No Mali, após nove anos de presença, a França retirou oficialmente as suas tropas em agosto, encerrando a Operação Barkhane, uma campanha militar de combate ao terrorismo iniciada em 2013. A operação inicialmente obteve sucesso, ao recapturar cidades do norte central do país, mas posteriormente enfrentou desafios significativos. Em janeiro deste ano, o Mali decidiu expulsar o embaixador francês do seu território, depois de uma intensa tensão entre os dois países.

A relação entre Paris e Bamako deteriorou-se após o golpe militar em maio de 2021 e as disputas sobre as eleições democráticas em janeiro de 2022. O governo francês citou a falta de comprometimento da junta militar, liderada pelo coronel Assimi Goïta, em resolver os problemas de segurança como motivo para a sua retirada. Contudo, a opinião pública no Mali também tornou-se cada vez mais contrária à presença francesa na região, considerando-a uma forma de neocolonialismo.

Sob a nova Constituição, aprovada de forma esmagadora com 96,91% dos votos, no referendo de 18 de junho, o francês deixou de ser uma língua oficial do país, relegada assim para língua de trabalho. 

Região estratégica para a exploração de urânio

O Mali está entre os 25 países mais pobres do mundo, 80% da população trabalha no setor primário (é também conhecido pelas suas exportações de algodão). O seu subsolo contém ouro (sete minas), especialmente perto da fronteira com o Senegal, onde é extraído em condições por vezes duvidosas. É o terceiro produtor africano (depois da África do Sul e Gana) do metal amarelo, explorado por multinacionais anglo-saxónicas, mas também possui minas de minério de ferro, bauxita, fosfato e mármore. Contudo, as explorações não chegam ao nível de um gigante da mineração como a República Democrática do Congo ou África do Sul.

Apesar de a França não ter relevantes interesses económicos no Mali, tem na sub-região. Começando com o urânio (elemento químico usado como combustível para gerar energia nuclear e também para produção de armas atómicas) do Níger. O país é o terceiro produtor mundial do mineral e é o principal fornecedor (um terço) da França – que é um dos cinco Estados com armas nucleares e com a energia nuclear a representar 75% da sua matriz elétrica.

Em 2008, o abastecimento proveniente do Níger representava 43% do total registrado pela Orano (ex-Areva), empresa francesa maior fabricante mundial de reatores nucleares e presente no Níger desde os anos 1970. A sublinhar que a empresa está também envolvida num escândalo de saúde pública naquela região, devido às elevadas taxas de cancro, doenças respiratórias e deformações causadas pela exposição à radiação.

No final de julho deste ano, um golpe militar ocorreu no Níger, com o objetivo de derrubar o governo do presidente Mohamed Bazoum – importante aliado francês. Em resposta às possíveis intenções de intervenção da CEDEAO e França, os governos militares do Mali e Burkina Faso emitiram comunicados conjuntos, alertando que qualquer intervenção militar contra os líderes do golpe no Níger seria considerada uma “declaração de guerra” contra os seus países. Mali e Burkina Faso afirmaram a sua solidariedade em relação povo do Níger, defendendo que este último tem o direito de assumir o controlo do seu destino e soberania.

Burkina Faso: oposição à presença francesa

No Burkina Faso, também há atualmente uma resistência à presença militar francesa. No início de 2023, o governo burquinabé anunciou o fim da Força Sabre Francesa no seu território, retirando-se dos acordos de defesa de 2018 que permitiam a presença de 400 soldados franceses no país. Manifestações e atos de vandalismo contra alvos franceses, como institutos culturais e a embaixada, refletiram o descontentamento com a presença francesa e a influência da “Françafrique”.

O presidente de transição, o capitão Ibrahim Traoré, tem sido um crítico contundente do papel dos gauleses na região e procura novos parceiros, como Rússia e Turquia, para garantir a soberania do Burquina Faso. Os discursos também têm ecoado ideais do assassinado presidente Thomas Sankara, defendendo uma abordagem mais independente e nacionalista para o país.

Pan-africanismo e desafios da CEDEAO

Apesar das claras assimetrias de poder e de uma longa história pós-colonial de intromissão nos assuntos domésticos das suas ex-colónias, a França tem demonstrado incapacidade em apoiar os governos locais com políticas que possam ajudar a restaurar a sua legitimidade e autonomia.

Os recentes eventos no Mali, Burquina Faso e Níger refletem um crescente sentimento anti-imperialista e uma procura por maior autonomia política e económica por parte dos países da região do Sahel. A causa é particularmente apoiada pela juventude desses países, que tem sido afetada pela instabilidade e pobreza causadas pelo terrorismo e pela ingerência estrangeira, sobretudo do ocidente.

Para Mamadou Ba, ativista político luso-senegalês, “a degradação das aspirações democráticas tem muito que ver com o mafioso esquema da Françafrique. Há, obviamente uma disputa geopolítica entre o “ocidente” e a Rússia pelo controlo das matérias primas, mas o que precipitou a situação foi a vontade da França de enfraquecer os poderes centrais para chantageá-los nas negociações sobre o controlo dos recursos, armando nebulosas organizações. Essas organizações invocam a cartada territorial mas, essencialmente, são sucursais de captura e controlo dos recursos naturais e implantam redes paralelas de exploração e venda de matérias-primas por forma a condicionar a soberania dos estados em definir os moldes de exploração e produção destas matérias-primas“.

A força desta nova sublevação política e militar contra a França ganha poder nas ruas. As populações, sobretudo a camada mais jovem, está a servir de caixa de ressonância de descontentamento e apoia os poderes locais na procura de novos parceiros, como a Rússia.

Sumaila Jaló, ativista e investigador guineense licenciado em Estudos de Língua Portuguesa pela Escola Normal Superior Tchico Té, Bissau, em 2017, e Mestrado em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 2020, acredita que o surgimento de um pan-africanismo verdadeiro – como o de independentistas como Amílcar Cabral, Thomas Sankara ou Kwame Nkrumah, exigiria uma visão unificadora e uma abordagem coordenada entre os Estados-membros da região e do continente como um todo, o que é uma tarefa complexa. “Ainda é cedo para falarmos de um pan-africanismo no sentido em que Nkrumah e outros líderes históricos do continente preconizavam. Para isso, será preciso compreendermos o modo como as agendas dos poderes a serem instituídos na corrente destes levantamentos militares almejam a integração económica e política no continente. E como essa agenda unificadora do continente se afirmará no plano geopolítico dominado pelas forças ocidentais de sempre. A Rússia pode ser referida aqui como um país que vê nos países africanos potenciais aliados na sua disputa com o Ocidente e na exploração dos recursos destes países, mas nunca na mesma proporção com as ex-potências coloniais no continente, como é o caso da França”, afirma Sumaila Jaló.

Sobre o recente golpe prepretado no Níger, o investigador e professor do ensino secundário, indica que “acontece na linha dos anteriores golpes na região africana do Sahel. Por um lado, o país é confrontado com o difícil desafio de combate ao terrorismo jihadista, o que o torna inseguro, tal como toda a região; por outro, e ligado ao primeiro aspecto, há uma crescente oposição da juventude nigerina, à semelhança do que tem acontecido em toda a sub-região ocidental da África, contra os domínios económico e geopolítico exercidos pela França na região. A estas causas podemos juntar a sua principal consequência: o sentimento de insegurança e o desejo da população em ver os recursos do seu país a serem usados para a melhoria das suas condições de sobrevivência“.

Questionado sobre a legitimidade dos novos poderes locais, conseguidos pela via de golpes de Estado, Mamadou Ba critica o jogo político viciado e capturado por uma elite cleptocrata. “A via eleitoral não tem sido capaz de responder à aspiração do povo, na sua maioria jovem. E a memória de Sankara, que ainda continua viva na consciência coletiva africana, faz acreditar aos povos africanos, nomeadamente aos jovens que, em vez da velha classe política corrupta ao serviço do neocolonialismo, a esperança de uma libertação total do continente, com um futuro melhor, pode estar nas mãos de jovens oficiais dos exércitos africanos. O que está a acontecer na África Ocidental é, deste ponto de vista, muito mais do que uma simples reconfiguração da disputa geopolítica entre potenciais ou, se quisermos, entre polos imperialistas estrangeiros. Este aspecto está obviamente lá, tal como sempre existiu, mas a diferença aqui é que, cada vez mais, surgem jovens lideranças africanas que têm iniciativa e não alimentam nenhum complexo que os amarre a uma filiação colonial com este ou aquele outro parceiro ocidental, russo ou chinês”.

Quanto à CEDEAO, “também enfrenta desafios em lidar com a situação na região. A possibilidade de enviar forças militares para intervir no Níger coloca a organização em uma situação delicada, pois alguns de seus membros estão alinhados com os líderes do golpe no Níger e se opõem a uma intervenção. Isso demonstra a incapacidade da CEDEAO em fortalecer instituições democráticas e resolver os conflitos na sub-região, uma vez que alguns de seus líderes são governantes autoritários com influência significativa na organização”, diz-nos por sua vez Sumaila Jaló.

Num próximo passo, cogitando a possibilidade destes países deixarem cair o Franco CFA, moeda utilizada por 12 nações africanas (Camarões, Costa do Marfim, Burquina Fasso, Gabão, Benim, Congo, Mali, República Centro-Africana, Togo, Níger, Chade e Senegal) e emitida pela França, um dos grandes problemas do franco CFA, como nos lembra o o jornal alemão Süddeutsche Zeitung, é que é “a última moeda colonial do mundo“. De facto, “os países membros devem depositar metade das suas reservas cambiais no banco central francês, cujos representantes têm direito de veto em todas as decisões relativas às taxas de câmbio e à oferta monetária”.

Para Jaló, a moeda “vai cair e será pela denúncia que dele fazem os jovens e sectores políticos com se identificam em vários países da África, sobretudo os francófonos. E a CEDEAO sabe que não tem volta a dar a esse destino determinado para a moeda que marca a dominação imperialista da França na África Ocidental e Central. Resta saber como se vai dar esse fim do domínio desse instrumento monetário francês, se só pela mudança do nome, ou pelo domínio total dos países da sub-região sobre a nova moeda”.

Em suma, a região do Sahel enfrenta desafios políticos e militares complexos, com a busca por maior autonomia e independência, o combate ao terrorismo e o papel da influência estrangeira sendo temas centrais de debates e protestos. A situação permanece dinâmica e exige uma abordagem cuidadosa e coordenada das partes interessadas regionais e internacionais para alcançar a estabilidade e o desenvolvimento sustentável da região.

Mamadou Ba acredita ainda que outros países podem juntar-se a este triângulo, depois do surgimento de novos líderes políticos “marcadamente anti-sistemas, anti-imperialistas e pan-africanista”.

É o caso no Chade, com Succès Masra e de Ousmane Sonko, no Senegal. Ambos são mal-vistos pelo ocidente e são perseguidos pelos regimes plutocratas, com o beneplácito, senão mesmo a cumplicidade dos antigos colonos, nomeadamente a França. É por isso que o que está a acontecer no Níger e a reação do Burkina, da Guiné, do Mali e das novas autoridades do Níger é uma consequência desta lógica de reconquista de soberania, de redefinição geostratégica e geopolíticas pelos próprios africanos, sem complexos nenhuns. O que está a acontecer também prova que as organizações regionais e sub-regionais e continentais africanas já não vão poder continuar a ser sindicatos de lacaios do ocidente e dos seus interesses.

Ba sublinha que a competição entre “polos imperialistas ocidentais, chineses e russos no continente fará face a uma geração de líderes que parecem encontrar inspiração e referências nas grandes figuras panafircanistas, N’krumah, Lumumba ou Sankara”, o que poderá ser a oportunidade única de “África finalmente resgatar-se a si própria, tornar-se a sua própria força e escolher qual direção seguir e qual o seu contributo para a multipolaridade geopolítica global“.

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