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“És preta, a tua pele brilha como ouro, o teu cabelo é uma coroa”: a história de amor e empoderamento por trás de “Negravilhosas”

Livro Negravilhosas | @cisneygoncalves
Livro Negravilhosas | @cisneygoncalves

Se é verdade que as questões de representatividade e empoderamento têm tido cada vez mais destaque ao longo dos anos, não é menos verdade que todos estes temas fazem parte de um longo processo de desconstrução de estereótipos e de viagens frequentes a lugares a que nem sempre queremos voltar.

A linha que divide o ser e o aceitar o que se é é ténue, frágil e nem sempre linear. Como passamos para os nossos filhos verdades que, por vezes, nem nós aceitamos? Na equação que nos define, o que devemos somar? O que devemos subtrair? O que devemos multiplicar e dividir?

Entrevistámos Selma Pires, psicóloga, mãe e autora do livro Negravilhosas, um relato de amor, empoderamento e aceitação onde as filhas são as personagens principais. Atualmente a viver em Inglaterra, não deixa de parte as suas raízes angolanas naquele que afirma ser o seu processo de cura e explica-nos a forma como as linhas da maternidade e da psicologia se podem cruzar em prol de um bem maior.

A história por trás de um livro, a importância de quebrar ciclos geracionais, a psicologia enquanto mecanismo de autoconhecimento, o papel dos pais e educadores, o homem africano, a representatividade, a importância de nos conhecermos e curarmos antes de ter filhos. A psicologia lado a lado com a maternidade e o agradável sabor da “colheita”.

O que é que queres contar com este livro? O que é que está por trás da criação dele também? 

O que quero contar com esse livro é a importância da representatividade na nossa comunidade africana, que é super importante, e o que é que está por trás são as minhas filhas, as minhas negras, como diz o livro. Estás a ver a importância? Mesmo a forma que elas se olhavam antes no espelho e a forma que elas se olham hoje é muita diferença porquê? Porque eu e o meu marido fomos à procura, para saber mais. Porque depois de ter três crianças, cada uma com o cabelo diferente, uma textura diferente, uma com o cabelo mais curto, outra maior e para não ter aquele olhar de dizer “a mana tem o cabelo maior do que o meu”. Porque infelizmente no seio familiar, mesmo na nossa comunidade africana, tem as tias que dizem estás a entender? Ah o teu cabelo é assim o teu cabelo é assado então eu quis trazer um livro que contasse uma história real do que é que as minhas filhas passaram, mas de uma forma que é que uma linguagem que todas as crianças percebessem, que olhassem para aquilo e dissessem “uau eu também já pensei assim”.

Esse trabalho de conceção do livro, de idealização, foi fruto da mãe, da psicóloga ou das duas?

Primeiro foi da mãe, depois foi da psicóloga. Porque tu tens que ter atenção daquilo como tu vais escrever e tens que as palavras chaves não é? Que é para ver qual é a pessoa que tu vais atingir. Porque às vezes quando estás a ler algo tem sempre alguma coisa, uma palavra e tu dizes “uau meu Deus”. Ficas com aquilo na mente e vais para a cama a pensar naquilo. Então, primeiro foi a mãe, depois foi para a escola e depois foram os dois. 

Se uma criança não sabe do poder que ela tem, não sabe da cor que ela tem, da beleza dessa cor, isso mata uma criança

Selma Pires

E olhando assim do ponto de vista geral, e tendo em conta que as crianças absorvem muito, de que forma é que a representatividade tem impacto na construção da identidade de uma criança negra? Como é que se gere isto tudo? 

A representatividade é muito importante. Primeiro ponto porquê? Porque faz com que uma criança vá para fora de casa com uma atitude diferente. É uma coisa que digo às minhas: “filha, tu vais para a rua, tu vais sair com uma roupa africana e vais meter o teu cabelo afro. Se alguém te disser “ai preta, ai que feia”, tu vais dar um sorriso porque sabes que és uma preta.”

Tu és preta. Primeiro lugar. Mas o teu cabelo é lindo. É uma coroa.

Isso tem que começar dentro de casa. Quando dizemos isso a uma criança, ela tem noção que é muito importante mesmo. Mesmo que alguém diga “ai que cabelo feio”, ela vai sempre responder: “o meu cabelo é uma coroa”. É muito importante porque aquela criança quando crescer ela já não vai crescer como muitas vezes nós crescemos, adultos feridos, porque temos ali uma criança a bater à porta a dizer “olá, eu quero que me oiçam agora, por favor”, porque em pequena ninguém ouviu.

Então e quando não há essa representatividade? Quando as crianças olham à volta e não se revêem, não se reconhecem, isso pode de alguma forma levá-las a criar os seus preconceitos? Isso, de certa forma, torna-as preconceituosas?

Torna. Se uma criança não sabe do poder que ela tem, não sabe da cor que ela tem, da beleza dessa cor, isso mata uma criança.

Eu digo que é uma alma que está ali está morta, porque quando ela crescer qualquer pessoa vai contar uma história e ela vai acreditar. Então, a falta dela [da representatividade] é muito má mesmo. Eu vejo adultos hoje em dia, com quem converso que dizem “Ai não gosto da minha cor, quero desfrisar o meu cabelo, ai o meu cabelo é muito feio”. E pergunto “os teus pais não falavam sobre isso?” Ah não. “Os meus pais até diziam que tinha que alisar o cabelo para ficar como o da minha colega [branca].”

Então com isso, os pais já matam os filhos em casa. E quando crescem o que é que acontece? Padrões, não é? Repetem-se e nós repetimos com os nossos filhos também. É como vermos hoje em dia mães que não conseguem também cuidar do cabelo dos filhos. 

E como é que isso se contorna? Sobretudo pais que têm filhos em idade escolar, quando há o primeiro ato de racismo, que é também um bocadinho fruto dessa falta de representatividade, como é que lidam com isso? O que quero perguntar é se há uma idade certa para falar de de racismo, de representatividade, de discriminação e o papel que os pais e os educadores podem ter no processo de desconstrução.

Vou falar do meu ponto de vista. Vou falar como mãe agora. Comecei a falar com quatro anos. A minha filha tinha quatro anos quando chegou a  casa e quis cortar o cabelo dela porque dizia que a colega dela tinha o cabelo muito mais bonito e ela achou-se muito feia.

Então parei, olhei e disse “tenho que fazer alguma coisa”. O nosso papel como pais é importante. Mesmo que os pais não saibam como vão falar. Pesquisem. Perguntem. Hoje em dia temos Internet. Digo que não estamos a pagar Internet em vão. Então é super importante que peguemos no acesso que temos à Internet para pesquisar. Foi o que fiz.

Como mãe, não tinha muita noção. Dizia “aconteceu-me e se acontecer com ela, ok, está tudo bem”, mas não está tudo bem. Tu sabes que não está tudo bem quando vês a criança a vir pedir socorro porque acha o cabelo feio. Então tens que pôr a mão na cabeça e dizer o que é que eu posso fazer diferente? Porque o racismo está ali à porta.

É por isso que já preparei as minhas filhas. “Tu és preta. Tu és bonita. Tu és uma rainha. Se lá fora alguém disser que és uma preta feia, põe na cabeça que não és. A tua cor brilha como ouro.” E vais-me perguntar se foi de um dia para o outro? Não. Foi um processo.

Mesmo que os pais não saibam como vão falar. Pesquisem. Perguntem. Hoje em dia temos Internet

Selma Pires

E há fases [nesse processo]? Como é que se vai desencadeando? Isto porque há pais que têm eles próprios dificuldade em reconhecerem-se como negros e a aceitar as suas feições ou cabelo, acreditando na mestiçagem como forma de proteger os filhos. Quando falamos de pais que também não se reconhecem, como é que eles preparam os filhos para o mundo lá fora?

Já recebi uma paciente assim. Disse-lhe que o primeiro passo é procurar ajuda. Fazer terapia. No caso dela [da cliente], a mãe desfrizava-lhe o cabelo desde os cinco anos e dizia que o cabelo dela era feio, tinha que estar cabelo “lambido”. Porque o cabelo lambido é que é aceite na sociedade. E ela era mestiça.

Mas as pessoas têm que entender que, no final do dia, para os brancos, os mestiços são pretos. É aí que temos que ver [a importância de nos reconhecermos]. Não é dizer coisas como “a minha cor é mais clara, eu não sou preta”. Tu és preta.

No caso da cliente, disse para ela voltar para trás. Perdoar a mãe para que a vida possa avançar. Porque ela diz que a vida dela está assim hoje e não educa a filha em condições de representatividade por causa da mãe. Disse “então perdoa a tua mãe”, uma vez que já sabes isso. Isso muda padrões. E padrões geram padrões, não é? Então, acho que é super importante.

E isso leva-nos a um tema que acontece muito na nossa comunidade. Traumas geracionais, ciclos tóxicos. Como é que os pais quebram isso? Porque voltar atrás é, muitas vezes, reviver toda a infância e “desarrumar” certas coisas que estavam guardadas, mas que às vezes podem ser importantes.

Não é às vezes, é sempre importante. Se não vais lá para trás e arrumas as gavetas, querendo ou não, as escolhas vão-se sempre repetir-se. É importante voltar para trás. Para a tua vida continuar a avançar, tens que perdoar, para que não olhes para os teus filhos como um fardo, porque no final do dia é o que acontece. Se vamos repetindo [padrões], quem vai ser atacado são os nossos filhos, mais ninguém. Vamos querer ser bons pais e não vamos conseguir.

Posso dizer que amo muito as minhas filhas mas, se não me curar, vou maltratá-las. E, para mim, até posso dizer que não, que estou a tratar muito bem, mas não estou.

Antes de ter filhos, digo sempre isso: “procura”. Faz terapia e faz terapia de casal. Vê como é que estás e depois tem filhos, para que não vomites aquilo que foi vomitado para ti. Há até uma imagem no Google que é a mãe a dizer umas palavras, a passar na cabeça da criança. Então, hoje em dia nós fazemos o mesmo, mas acredito que muito melhor porque, hoje em dia, os pais já param para ouvir. Tanto que a minha mãe diz “no meu tempo tu não ias estar a falar como a tua filha fala”, mas hoje eu dou abertura para que a minha filha fale e diga “Mãe tu estás errada, mãe tu magoaste-me”. Aí eu sento-me, meto-me no lugar dela e digo “não, espera, eu realmente falhei”.  

E tens aqui um um lado diferente. Tu és mãe e és psicóloga também, então, até que ponto é que estas duas linhas não são muito ténues? Onde é que começa a mãe e onde é que acaba a mãe para depois começar a psicóloga?

Querendo ou não, está tudo misturado. Há pessoas que dizem “ah não, mas eu consigo separar”. Eu comecei a dar conta que ser psicóloga salvou-me. Ajudou-me a ser a melhor mãe que sou hoje. Estás a ver? Porque a mãe que eu era não era saudável para as minhas filhas. Não era.

O que é uma mãe saudável?

Uma mãe saudável é uma mãe que ouve os filhos. Antigamente não ouvia as minhas filhas. Já cheguei a dizer “sou tua mãe, ponto”, “fui eu que te pus no mundo”. Um clássico. Hoje em dia não. Se ela vem ter comigo e diz-me que está magoada, tenho abertura para perguntar “Onde é que a mãe te magoou? O que é que a mãe fez que tu não gostaste?”. E há pais que têm medo dessa pergunta. O que é que a mãe fez? O que é que o pai fez que te incomoda? Porque se calhar os pais entendem como um julgamento, como uma falta de respeito.

“Estás-me a responder? Estás-me a faltar ao respeito? Tu não tens de falar. No tempo dos meus pais não era assim”, mas nós não estamos no tempo dos nossos pais. É por isso que tudo muda.

Digo à minha mãe que hoje em dia a minha filha vem questionar porque dou-lhe abertura, mas há uma linha que separa, não é? Ela não se vai esticar também, mas eu converso sempre. “A mãe fez alguma coisa que tu não gostaste?” “A mãe gritou muito comigo, eu não gostei”, aí tu tens que perguntar à criança porque é que a mãe gritou, o que é que ela fez naquele dia para tu gritares. Tens que meter a criança no lugar dela, também, para ela refletir e pensar depois. Porque temos que ensinar isso às crianças, a ter responsabilidade dos seus atos e a não se vitimizarem porque não quero que a minha filha vá para o mundo sendo preta e esteja ali naquela bolha de vítima.

Uma mãe saudável é isso. Aprendi a pedir desculpa. Antigamente, não pedia desculpa, ia dormir a achar que tinha razão porque sou mãe.  E esse pedir desculpa dos pais também está um bocadinho relacionado com aquela parte de deixar os filhos chorar, que nós temos sobretudo na comunidade, esta tendência de guardar as coisas, principalmente os meninos.

Mães que tenham filhos rapazes, como é que gerem aquele ditado de “homem não chora”? Até que ponto é castrador? Porque a criança tem emoções, mas isto é algo que vem quase do berço.

Vem daquilo que nós aprendemos. Homem não chora, homem que chora é menina. Então isso tem que mudar. Daí eu estar sempre a falar sobre isso. Homem chora, sim. É normal o homem chorar, tens de trazer tuas fraquezas, é super normal. Eu via isso no meu parceiro, no meu irmão, via isso dos meus tios. Já me sentei com o meu tio e perguntei “tio, tu já choraste alguma vez?” “filha, homem não pode chorar”. E eles já têm quarenta, cinquenta anos, mas olha o pensamento.

Homem tem de chorar. Porque ao chorar estão a limpar o espírito. Chorar não quer dizer que vai ficar menina, não tem nada a ver. É importante que os homens chorem para que eles tenham uma relação saudável quando crescerem, no trabalho, numa relação amorosa, nas amizades. Para não terem problemas em dizer “magoaste-me e não gostei”. É super importante. E as meninas também, não é? Mas, pronto mas em relação às meninas está sempre subentendida a questão da fragilidade, então acaba por ser normal em parte, não é? Nos meninos ainda há aquela rigidez.

E podem todas estas questões, relacionadas com traumas geracionais, falta de representatividade, racismo, ter influência nas taxas de suicídio do homem africano? Mesmo a questão do colonialismo e a forma como o homem negro foi tirado de casa e tratado ao longo dos anos, isso pode ter influência?

Isso influencia, sim. Digo que nós africanos somos à base de energia. Ninguém nos percebe, não tem como. Só nós nos entendemos, pessoas de outras etnias nunca nos vão entender. lolFomos colonizados, então querendo ou não, os pais hoje em dia não se dão conta que eles também fazem o mesmo dentro de casa, mesmo não querendo fazer. Então esse homem, vai crescendo castrado. “Tu não falas, tu não tens que ter voz. No relacionamento tu não podes ter voz também”.

Digo isto porquê? Porque a pergunta que me estás a fazer agora foi a mesma pergunta que fiz há uns tempos a dois rapazes e eles disseram “nós homens hoje choramos sem lágrimas. Por tudo aquilo que vivemos antigamente, hoje não podemos falar porque somos vistos como frágeis. Então temos sempre que mostrar que somos fortes, que estamos sempre bem”.

Há muitos homens que se estão a matar e muitos pedem ajuda, mas pedem ajuda como? Sem lágrimas. Acredito que muita gente tem que olhar mais para os homens, com mais carinho, mais empatia, perguntar “como é que foi o teu dia?”

Uma vez perguntei a um rapaz “como é que foi o teu dia?”, ele ficou de lágrimas nos olhos e disse “a mim ninguém me pergunta como é que foi o meu dia”, estás a ver? Então, digo isso porque tenho marido, tenho irmãos, vi todo esse processo. Há uns anos, ele quase não falava, o meu irmão quase não falava também e hoje em dia ele já se abre.

Muita coisa tem que mudar. Digo que isso [traumas, problemas em falar, chorar] é um saco que os homens trazem desde o berço.

E no caso dos homens da nossa comunidade, como é que desconstróis o preconceito com a psicologia? Como é que trabalhas de forma a que a pessoa perceba que fazer terapia é perfeitamente normal?

A primeira coisa que faço é deixar a pessoa entrar e depois descalço-me. Digo “olha, estou-me a descalçar”. Isso é para quê? Para ficar com o pé no chão. E digo ao paciente “agora descalça-te também” para ter a mesma energia e, muitas vezes, as minhas sessões são online.

Oiço muitas vezes “ah isso não é para nada também, terapia é para malucos. Também só estou aqui com a minha mulher porque ela disse que é para estar aqui.” Então já começa assim. Eu digo “queres contar um tempo? Então diz-me lá como é que foi o teu dia hoje. Foi bom?”

Tenho de sair dali [da zona de desconforto] e perguntar como é que foi o dia. “Tens filhos? Conta-me alguma coisa que gostes. O que é que gostas de comer? Olha, gosto tanto de comer um funge”. A maioria das pessoas que tenho são mais africanas, então aí já consigo desbloquear aquela pessoa.

Ponho-me sempre no lugar do paciente, porque em psicologia é preciso primeiro entender a pessoa e só depois trabalhar. Muita gente pensa que é só exercer o cargo. Não é só ganhar dinheiro. A maioria das pessoas que recebo são africanas, nós somos à base de energia, então olho para os olhos, para a boca, para o nariz, mesmo que a pessoa fique ali a desviar estou sempre a olhar.

Então, sabes aquela pergunta que deixou a pessoa desconfortável ou muda e depois no final volto para ali sem a pessoa dar conta? Às vezes a pessoa diz “mas já me fez essa pergunta, não foi?” e digo “já, mas já respondeste”, então faço uma brincadeira.

A Selma que sou nas redes sociais é a que sou lá dentro, tanto que acho que é por isso que recebo feedbacks que dizem “só vim à tua procura por seres preta e por me deixares à vontade. Tu és essa pessoa que és aqui”. É isso que eu quero para a nossa comunidade, é sermos sem filtros.

Até que ponto é que o facto de tu também seres preta ajuda a comunicação com alguns pacientes e abre caminho para para um trabalho mais profundo?

Muito mesmo e é muito importante. Vejo a diferença, é por isso que digo que as pessoas que não são africanas não têm noção do poder que nós temos. Não têm mesmo. Nós pretos, o quanto somos poderosos!

Vejo mesmo nas pessoas que indicam o meu trabalho. “Olha, a pessoa estava à procura de uma pessoa preta e indiquei-te o trabalho.” E eu “olha vens ter comigo porquê? Olha primeiro por seres preta”. 

E há pessoas que voltam mesmo para vir falar comigo. Não é porque querem terapia, querem só conversar comigo.

E já tive pessoas que, depois da terapia acabar, tornamo-nos amigas. E é uma coisa muito bonita. Às vezes, estamos ali só assim a olhar um para o outro e depois, no final, alguns dizem “pá doutora, desculpa não falei nada” e eu digo sempre “mas eu entendi. amanhã voltas outra vez”. E no dia seguinte a pessoa já volta mais leve. Então é aquela coisa, é aquela empatia. 

Temos que ter empatia. Digo sempre que é importante olhar. Olho-me no espelho todos os dias e digo “fogo, sou tão abençoada”. É o que digo, as pessoas não têm noção do que nós temos, das portas que podemos abrir, de outra pessoa nos ver ali dizer “uau ela é preta também posso chegar ali”.

A minha filha só acreditou que eu estava bem quando cortei o meu cabelo, quando ela viu o meu sorriso a ver o meu cabelo ali cortado, o meu afro

Selma Pires

E no dia a dia, como é que se trabalha a representatividade, tendo em conta que estamos num país de brancos? Porque, às vezes, quando dizes a uma criança para imaginar um médico, ela automaticamente imagina um senhor branco de cabelo grisalho…

Temos que trabalhar nós mesmos, temos que nos olhar no espelho mesmo. Digo às pessoas que olhar no espelho não é para procurar ramela, porque não importa aquilo que vais falar numa criança, a criança sente a tua energia, então temos que ter muito cuidado.

Começa por nós. Quando estamos bem, a criança vai acreditar. Vou voltar a falar do cabelo, a minha filha só acreditou que eu estava bem quando cortei o meu cabelo, quando ela viu o meu sorriso a ver o meu cabelo ali cortado, o meu afro. Agora ela também olha e diz “uau mãe, eu tenho o cabelo igual ao teu”. É isso que tem que ser e começa também pelas nossas comidas. Muitos pais não falam da nossa comida. Estamos num país branco, querendo ou não, então, muitas vezes, há aquela ideia de que não podemos comer coisas da terra, não é importante. Em casa comemos. “Aqui é a comida da terra da mãe, da terra do pai, nós comemos isso, comemos com a mão”. 

O mesmo com o nosso pano africano. “Filha, o nosso pano conta tantas histórias”. Pesquiso muito. E digo que só comecei a pesquisar quando tive filhos, quem são as nossas rainhas, o que é que aconteceu com a nossa história, bonecos africanos… hoje em dia tem no YouTube mas, quando pesquisei inicialmente, não encontrava nada disso. Hoje, ao encontrar esses bonecos, passo para outros pais também e ponho no Instagram.

Há pais que não tinham noção, mas nós também estamos aqui para ajudar. O meu trabalho é poder trazer essa realidade para os pais. Como psicóloga, como mãe também, se estiver com alguém que tenha dúvidas sobre como encontrar alguma coisa, mando o logo o link e é aquela partilha 

É isso, tenho que me curar para curar as minhas filhas. A minha filha pergunta “mãe então como é que tu eras?” E explico. Hoje em dia, vejo as minhas filhas, elas gostam da roupa, gostam da comida, comem com a mão sim senhora. Vejo-as a prepararem-se, elas vão ao espelho, acham-se tão giras e dizem “o meu cabelo é tão giro”, e uso as massas como exemplo: temos a massa longa, o teu cabelo pode ficar longo se quiseres esticar, temos a massa encaracolada, o teu cabelo pode ficar assim se molhares. 

Elas vão para a escola, vão falar, tanto que tem uma mãe de uma colega da minha filha que disse que a minha filha ajudou a filha dela. “A minha filha agora fica no espelho a dizer ‘i’m so kind, i’m so beautiful’”.

Vamos construindo e elas vão sabendo. Digo sempre às minhas filhas “independentemente de seres preta, podes estar onde tu quiseres. Podes estar aqui no meio de brancos, mas és preta. Podes estar no meio de pretos também. N ão quero que penses que tens que estar ali no meio dos pretos porque és preta, não! Quero que tu expandas a cabeça. Vai, voa. Não te quero fixa ali. Quero que saias para que passes a mensagem. 

E sentes que com crianças é mais fácil esse trabalho. As crianças são muito puras. Não é só ter filho. Não é só vestir roupa bonita. Há um trabalho ali ou um processo. Mesmo sendo mãe preta há um processo porque o mundo em que estamos não está fácil. O país em que vivemos não ajuda. Então, é importante sentarmo-nos com a criança, quebrar os tabus, conversar.

Temos o dia do livro em Inglaterra, então todos os anos as minhas filhas iam com as roupas das princesas brancas, mas um dia disse “porque é que elas não têm as princesas delas?” Mandei fazer um vestido, soltei-lhes o cabelo, foram de afro e disse “filhas, quando a mãe abrir esse portão, vocês vão ver pessoas diferentes de vocês mas quero que vão para a escola com a cabeça erguida e lembrem-se quem são vocês?” E elas respodem: “A Queen Zinga, não é mãe? Como a nossa querida Angolana”. São rainhas, são pretas lindas. Vão, levem a vossa boneca e digam o que é que vocês vêem, o que é que vocês são.

Então, já não preciso falar. Elas automaticamente já sabem porque também já se reconhecem e já aceitam. E é uma coisa muito bonita. 

Voltando outra vez ao livro, disseste que é muito inspirado nas tuas filhas. As personagens têm os nomes delas?

Elas têm segundo nome: Sofia e Teodora. Está lá o nome delas no livro, no final tem lá as minhas três filhas também para que elas cresçam e possam ver “nós temos um livro, nós estamos lá na fotografia, é a nossa cara ali”. São elas mesmo.

E agora que estamos a terminar, quais são os teus planos para o futuro? Vamos ter uma segunda versão de Negravilhosas, vamos ter um livro mais voltado para meninos, pensas voltar a escrever outro livro? 

Penso. As pessoas que forem ler agora as Negravilhosas, vão perceber que ela é também para os Negravilhosos porque a mensagem que está ali dentro serve para os meninos também. Tanto que tem uma mãe que comprou quatro livros, um para cada filho. E ela diz que ficou emocionada com a história, que os filhos ficaram emocionados com a história. Então sim, futuramente quero escrever mais livros, se Deus quiser. 

Quero escrever um livro também para os pais, que é super importante. Não é só para as nossas crianças, não é? Por isso, se quero que os pais se curem, também tenho que ajudar ali.

Sabes que é necessário, mas só quando vês o feedback é que percebes a importância, quando parece que é a colheita. É isso, demorou mas valeu a pena esperar esses anos.
Então, vão chegar mais livros sim! Tem muitas surpresas!

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