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A sobrevivência do teatro angolano na persistência dos irmãos Adelino e Enoque Caracol

É na arte de representar e de dar vida a personagens que, há mais de 30 anos, os irmãos angolanos Adelino dos Santos Caracol, 60 anos, e David Enoque dos Santos Caracol, 51 anos, encontram o propósito das suas existências, ao proporcionar a um público heterogéneo momentos de gargalhadas carregadas de muito ensino sobre cultura angolana.

Filhos do casal Jeremias dos Santos Caracol e Domingas Diogo Manuel Soares, os irmãos Caracol são dos artistas mais premiados no teatro, tanto a nível nacional quanto internacional. A título de exemplo, Enoque foi distinguido como Melhor Ator, em Las Palmas, em 2016, e é um dos protagonistas do filme Ar Condicionado (Fradique, 2020), com pelo menos cinco prémios e dezenas de apresentações em festivais de cinema. Adelino é um dos atores de teatro mais homenageados em Angola, em eventos como CIT, “Duetos N”Avenida, no CEART, Festival de Teatro do Cazenga, entre outros.

Persistentes e resilientes na arte, que outrora despontava insegurança sobretudo no olhar dos pais, por julgarem que não levaria os filhos a lado nenhum, hoje, o teatro rende-lhes reconhecimento, homenagens e títulos que humildemente procuram não ostentar para não passarem a mensagem de envaidecimento. É na arte da performance que encontram a possibilidade de mergulhar “no idealismo, na consciência, no humanismo e no amor”, sem descartar a sensação de estarem a viajar sempre que estão em palco a representar um personagem. “Torna-se uma viagem quase de sono, é como se tivéssemos apagados no sono (…) são viagens muito emocionais, (…) são viagens muito bonitas, porque cada espetáculo, cada personagem é um personagem com características diferentes e elas levam-nos a emoções muito fortes, muito linda”, descreveu Adelino.

Este ano, o irmão mais velho, Adelino Caracol, foi o grande homenageado na 8ª edição do Circuito Internacional de Teatro (CIT), pois, apesar das dificuldades e desafios da área, “mostrou-se persistente no panorama sociocultural através do teatro, na capacitação de novos fazedores e na promoção da cultura angolana”, dissera Adérito Rodrigues, director do CIT, durante o evento. Adelino considera esta homenagem um reconhecimento do trabalho que tem desenvolvido há décadas e que organizações como estas têm a responsabilidade de levarem os trabalhos artísticos de um circuito fechado para um circuito aberto. É nesse movimento que outros são motivados e inspirados a criar arte, no sentido de trabalharem mais para que amanhã sejam também reconhecidos.

Em entrevista à BANTUMEN, os irmãos contaram-nos um pouco do percurso que têm trilhado nestas últimas três décadas, as dificuldades e as suas perpetivas sobre o panorama atual das artes no país.

Os primeiros passos

Foi Adelino Caracol que começou primeiro, nos anos 1980. Embora tivesse uma ligação forte com o desporto, a motivação para subir aos palcos surgiu por intermédio de um amigo, Ezequiel Issenguel, já falecido. Juntos, fundaram o coletivo de artes “Horizonte Nzinga Mbandi”, em 1986. À BANTUMEN, Adelino contou que o nome foi sugerido por Celmira Pinto da Cruz e o termo Horizonte carrega o facto de os fundadores verem no coletivo algo que os levaria além dos lugares de onde são originários. Nzinga Mbandi surge como homenagem à rainha que deu nome à escola que os aceitou e acolheu o projeto.

Na altura, Ezequiel já estava ligado às artes como cantor, pintor, dançarino e ator. Adelino foi motivado pela paixão que nutria pelo cinema, juntamente com a influencia que sofreu através dos filmes que assistia, os atores que via na televisão e a admiração que nutria pelo mundo das imagens cinematográficas. Atualmente, trabalha como diretor de elenco, encenador e preparador de atores.

Tempo depois, Enoque Caracol, o irmão mais novo, ainda adolescente, sentiu-se influenciado por regularmente assistir o irmão mais velho a ensaiar em casa com os amigos, na altura, na Vila Alice, em Luanda. Aos poucos, Enoque apaixonou-se também pela arte e, apesar da resistência dos pais, os dois irmãos começaram a trilhar o mesmo caminho. Tudo começa quando Adelino entende que devia dar um personagem para Enoque interpretar, depois de perceber que o irmão tinha qualidades que precisavam ser despertadas. De lá para cá, os palcos transformaram-se nas suas arenas.

“Não acredito que resistimos tanto tempo”, Adelino

Na altura quando começaram, segundo contaram, o país mergulhava numa guerra civil e as artes não representavam nenhuma esperança para um futuro risonho. Pelo contrário, representavam perigo naquele contexto, pois os artistas envolviam-se com as suas artes na política. Por isso é que “nem o meu pai aceitava que os filhos fossem artistas”, confessou Enoque, sem descurar o facto de que as artes eram consideradas uma atividade de vagabundagem.

Entretanto, além de haver resistência por parte de quem deviam receber o maior apoio, o pai, as dificuldades eram maiores em relação aos dias de hoje, sobretudo no que se reflete à inexistência de espaços e equipamentos necessários para espetáculos. Os Caracol acreditam que se aguentaram até hoje, foi por uma razão divina. “Acredito que se ficamos é por chamamento de Deus. Porque [ainda] não acredito que resistimos tanto tempo”, contou Adelino nostálgico. Contudo, essas dificuldades, levaram Enoque a considerar como heróis todas as pessoas que persistiram no sonho das artes naquela época e crê que, atualmente, os pais estariam orgulhosos deles. “Considero todas aquelas pessoas daquela época, heróis. Porque fazer com que esta arte, hoje, se tornasse persistente e resistente foi um trabalho muito árduo. Então, na visão dos nossos pais, acredito que se eles hoje estivessem vivos e assistissem a este momento, não vou dizer só nosso, mas o momento da arte, acredito que eles haveriam de ficar muito honrados com a persistência dos filhos”, lamentou.

De acordo com Adelino Caracol, o período de transição política, do monopartidarismo para o multipartidarismo, que o país sofreu nos anos 1990, atrasou, de certa forma, o avanço das artes. Atualmente, em termos jurídicos, não se sabe se os grupos teatrais se encaixam na denominação de uma associação ou de uma micro empresa. O alinhamento dessas definições, para o artista, são cruciais para garantir apoio financeiro estruturante, por via de, por exemplo, empréstimos bancários, aos grupos e companhias de teatro. É um fenómeno que “acontece em várias partes do mundo. Acho que teremos que caminhar por aí, então, ainda é um processo que está a acontecer com muita lentidão”, reconheceu Caracol. O artista reflete ainda sobre o aumento do número de consumidores e pessoas que gostam de teatro e que, por não existir um mercado regulamentado, esse crescimento não imprime mudanças significativas na área. “Hoje precisamos dar passos mais seguros, mais concretos em termos de políticas culturais, isso fará com que toda a pessoa que decidisse ser artista tivesse a esperança de vida como a do engenheiro, médico ou como alguém de outra profissão”, explica. Contudo, é “um processo que temos que estudar todos em conjunto para que tenhamos esse desenvolvimento unificado, para que as gerações vindouras não tenham que passar pelas experimentações que nós passamos”, acrescentou.

Diferente de há quase 40 anos, hoje, os irmãos Caracol acreditam que o público começou a compreender, respeitar, inteirar-se e a contribuir em grande, ajudando a arte a crescer, o que os leva a julgar que há uma percepção do público sobre a necessidade da existência dos artistas, que consiste em ajudar nas trocas sociais com o público e procurar manter o equilíbrio da sociedade através da arte. Esta constatação faz com que os irmãos Caracol se preocupem em deixar um legado que orgulhe as pessoas.

Novos desafios e perspetivas

Para os irmãos, o teatro deu-lhes tudo e olham para esta arte como um “suporte de vida”. Afinal, “é daqui que satisfazemos as nossas necessidades, as nossas vontades, vamos dizer que é um meio de sobrevivência”, confessam.

Contudo, se o teatro permite a sobrevivência de uma cultura, quando se fala de subsistir os factos são outros. Um dos desafios dos irmãos Caracol é precisamente lutar para que, no futuro, em Angola, seja possível viver do teatro. “É difícil. Não considero que as pessoas consigam viver da arte, se calhar, uma minoria (…), mas nós não, nós sobrevivemos”, referiu Enoque visivelmente triste e justificou. “Eu digo sobreviver porque viver é muito mais do que sobreviver, viver não é desenrascar, é ter garantia de que as coisas podem acontecer”. Sobre esse assunto, Adelino garantiu que, a nível da companhia Horizonte Nzinga Mbandi, têm tido discussões internas sobre a prosperidade das pessoas ligadas ao teatro.

Embora reconheçam algum desenvolvimento, dado à existência do Instituto Médio de Artes, o CEART, e outras instituições que contribuem ativamente para o desenvolvimento da arte, os principais entraves são a falta de estruturas para a realização de espetáculos e esquematização de políticas culturais. “Falta haver essa política que precisa ser sistematizada, entre grupo, Estado e todo o mundo que faz isso”, exaltam. Um dos exemplos dessa colaboração é o facto de os grupos teatrais servirem de ferramenta para disseminar melhor, traduzir e interpretar políticas não percebidas pela população em geral.

A ambição é “melhorar para continuar a fazer as coisas com regularidade, com outra dinâmica; continuar a trabalhar para que alguns atores possam expandir-se do teatro para o cinema; colocar o nosso pedaço de arte dentro do pedaço da cultura universal e expandir”, segundo Enoque.

Contributo do teatro no turismo

Tal como vários angolanos visitam outros lugares por intermédio do que a mídia mostra, através das artes de representar, os irmãos Caracol entendem que Angola tem um potencial cultural muito forte que, se for bem expandido, o turismo do país poderá conhecer outra realidade. “Hoje, andamos num processo de lutas para crescimento turístico isto não vai acontecer sem a envolvência artística, (…), se nós não compreendemos isso e, mesmo que tenhamos espaços para oferecer, ninguém virá aqui para investir ou conhecer os lindos lugares que temos aqui”, contou Enoque.

Coletivo Horizonte Nzinga Mbandi

De quuinta-feira a domingo, de todas as semanas infalivelmente, o colectivo apresenta peças de teatro. Quando não é o grupo principal responsável pelas apresentações e atividades, um outro toma as suas vezes. Além das produções teatrais, o Horizonte realiza várias oficinas, de cine-técnicas, cenografia, figurino, maquilhagem, e também oferecem formações para atores, apresentadores, operadores de câmara e de outras áreas. São apoiados por professores angolanos e estrangeiros, contando com a forte ligação e colaboração que têm com a escola do Brasil, Martins Pena, e algumas individualidades portuguesas.

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